O FILME - UMA CONTRA-ANÁLISE DA SOCIEDADE?

FERRO, Marc. In: LE GOFF, J.; NORA, P. História: novos objetos. 3. ed. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1988. p. 201 e 202.

*Marcia Santos da Silva

O artigo “O Filme - Uma Contra- análise da Sociedade?”, de Marc Ferro, historiador e professor francês, autor de livros célebres como “A Grande Guerra, uma História da Medicina ” e “Como Contar a História às Crianças”, traz alguns questionamentos sobre o filme enquanto documento histórico e o aproveitamento que tem sido feito dele.

Segundo Ferro (1988), “o cinema não tinha nascido quando a história adquiriu seus hábitos, aperfeiçoou seu método, cessou de narrar para explicar.” Não é fácil mudar uma tradição secular, principalmente quando se trata de assuntos que envolvem e despertam tantos interesses, já que o historiador tem como função narrar o que aconteceu e, de acordo com a época vivida ele privilegiou/escolheu fontes e métodos que lhe fossem mais eficazes e que acabam por formar, “no presente, um corpus que é tão cuidadosamente hierarquizado como a sociedade à qual destina sua obra”. (FERRO, 1988, p. 200).

Alguns documentos recebem maior ou menor prestígio, ou seja, estão classificados em categorias específicas para a construção da memória histórica, refletindo as relações de poder presentes na sociedade: “Os documentos de Estado, manuscritos ou impresssos, documentos únicos, expressão de seu poder, daquele das Casas, Parlamentos, Câmaras de contas; segue-se a corte dos impressos que não são mais secretos: textos jurídicos e legislativos, inicialmente expressão do Poder; jornais e publicações em seguida, que não emanam somente dele, porém de toda a sociedade culta. As biografias, as fontes de história local, a literatura dos viajantes, formam a cauda do cortejo”, segundo Ferro, 1988.

No início do século XX, o filme era considerado apenas como uma atração para as classes inferiores. O anônimato estava garantido aos “homens da câmera” e o direito de autor era conferido ao roteirista.

Ferro (1988), diz que, “para os juristas, para as pessoas instruídas, para a sociedade dirigente, para o Estado, o que não é escrito, a imagem não tem identidade; como os historiadores poderiam a ela se referir, sequer citá-la? Sem vez nem lei, órfã, prostituindo-se para o povo, a imagem não poderia ser uma companhia para esses grandes personagens que constituem a Sociedade do historiador. (...) Como se fiar nos jornais cinematográficos quando todos sabem que essas imagens, essa pretensa representação da realidade, são selecionáveis, modificáveis, transformáveis, porque se reúnem por uma montagem não controlável. Um truque, uma falsificação? O historiador não poderia apoiar-se em documentos desse tipo.”

A sociedade acostumou-se a confiar no documento escrito e confere a ele credibilidade. Embora saiba-se que nas narrativas históricas há uma dose de ficcionalidade e em alguns casos, um certo folclore, a missão do historiador é reproduzir narrativamente os fatos, buscando a maior fidelidade possível aos acontecimentos.

Para Veyne (1995), “a história é conhecimento mediante documentos. Desse modo, a narração histórica situa-se para além de todos os documentos, já que nenhum deles pode ser o próprio evento; ela não é um documentário em fotomontagem e não mostra o passado ao vivo como se você estivesse lá”.

Atualmente, com os avanços tecnológicos e a facilidade de deslocamento, é possível estar em locais onde acontecem eventos que certamente farão parte da história, como, por exemplo, filmar em tempo real o acontecimento de guerras, ataques terroristas, golpes de estado, assassinatos de líderes como Indhira Gandi, John Kennedy, etc.

Nesses casos, como negar que o filme seja aceito como documento histórico se ele consegue guardar um momento que na maioria das vezes é único?

O fato das pessoas irem ao cinema como simples espectadores em busca de diversão, para verem fiilmes que reúnem, segundo Ferro (1988), “anedotas, ficção, informações censuradas, modas de inverno e mortos do verão não tem feito do cinema um instrumento nas mãos da ideologia dominante para transformá-lo numa fábrica de sonhos?”

Por mais fictício e/ou despretensioso que um filme possa parecer, ele traz implícito em seu roteiro, em suas imagens, os traços de uma época, um momento político, um comportamento social. O texto de Ferro sintetiza alguns exemplos que ratificam isso: Mister West, de Kulechov, tematiza o surgimento da URSS e o regime bolchevista; O imprevisto, de Jack London, trata de um dilema entre fazer justiça com as próprias mãos ou aguardar até que se possa cumprir as formalidades da lei; Dura Lex, também de Kulechov, mostra a revolta de um homem que se sente inferiorizado e humilhado por ser imigrante e pertencer a uma religião contrária a de seus opositores. Nesses filmes e em tantos outros, o visível e o não-vísivel comunicam por meio de imagens, escolha de ângulos e planos da câmera, fazendo uma leitura diferente do texto escrito ao qual as pessoas estão habituadas, provocando um certo estranhamento por não encontrarem no filme as mesmas pistas, a mesma linguagem e o mesmo direcionamento dos livros; ou seja, “o realizador transpõe (consciente/inconscientemente) uma narrativa da qual ele inverte inteiramente o argumento (sem o dizer, sem que seja dito, sem que ninguém o queira ver)”,conforme Ferro (1988).

O filme é poderoso porque serve como testemunha, pois possui a capacidade de destruir imagens construídas, além de reproduzir a realidade, causando desconfiança e ameaçando a estabilidade de instituições representativas da sociedade. Para Ferro (1988), “A idéia de que um gesto poderia ser uma frase, esse olhar, um longo discurso, é totalmente insuportável: significaria que a imagem, as imagens, esses passantes, essa rua, esse soluço, esse juiz distraído, esse pardieiro em ruínas, essa jovem assustada, constituem a matéria de uma outra história que não a História, uma contra-análise da sociedade.”

Parafraseando Botelho (2009), dizemos que “para entender bem um filme é necessário relacioná-lo com o momento que o produziu, sabendo-se que o mesmo não é um documento subalterno do texto escrito”.

Em seu texto, Ferro não aborda a temática do filme como obra de arte, nem trata da estética ou da história do cinema, e sim, de um produto que vale pelas imagens que testemunha.

*Marcia Santos da Silva é licenciada e bacharelanda em Letras pela Unijorge

REFERÊNCIAS

BOTELHO, Marcos.Notas de aula. Unijorge. Salvador, 2009.

VEYNE, Paul. Introdução. Apenas uma narrativa verídica: In: - Como se escreve a história; Focault revoluciona a história. Brasília: Ed. UNB, 1995. p. 07-15.