Clarice Lispector e os “laços de família” presentes em “Feliz aniversário”
Cinthia de Oliveira Andrade
Internacionalmente conhecida, Lispector é uma das mais importantes vozes da narrativa brasileira. Começou a publicar na década de 1940, que nos revela também um outro ficcionista magnífico, Guimarães Rosa. Porém entre os dois, há mais do que uma afinidade cronológica, pois ambos conseguem imprimir, pela experiência inventiva da linguagem, uma dimensão maior ao questionamento de zonas profundas da condição humana.
Contudo, em todos os seus textos, pode-se notar uma constante: a experiência da linguagem, sempre ousada, cerca-se de um uso inteligente do coloquial, da frase inesperada, numa dicção original que faz com que suas obras não sejam jamais um ato de reprodução do mundo à sua volta, mas acima de tudo, um ato de sensível intuição criativa.
Clarice Lispector tem um lugar privilegiado na literatura brasileira contemporânea, por ser notável a sua originalidade de estilo, e ao mesmo tempo, até certo ponto, marginal, pois se observa em sua ficção a presença implícita de uma inédita e densa reflexão em torno do ato criador e do lugar das criaturas no mundo.
Em sua obra observa-se uma total ausência de valores, seja ele religioso, moral, ético, entre outros, isto em decorrência do ceticismo e pessimismo que atravessa o universo ficcional criado pela escritora. Sendo assim, a existência humana representa um esforço inútil em busca da unidade e da coesão.
Publicado em 1960, Laços de família é um dos pontos máximos da prosa de Clarice Lispector. As narrativas dessa obra usam constantemente o fluxo de consciência, por meio do qual conhecemos o universo mais íntimo das personagens. É um recurso que possibilita sua literatura a ser chamada ora de psicológica, ora de introspectiva. Acabamos nos deparando com histórias de exteriorização do oculto, em que o protagonista termina buscando, nos elementos exteriores, o seu interior. Ou seja, a busca da identidade passa pela busca do outro.
Sua obra se localiza na terceira fase do Modernismo, que muitos preferem chamar de Pós-Modernismo. A maneira de fazer literatura de Clarice Lispector marca-se pela originalidade e pelo modo anticonvencional com que organiza o texto; sempre foge das convenções estabelecidas e da linguagem estereotipada, o que, aliás, já vai expressando o conteúdo temático de sua obra - tirar a máscara das formalidades e revelar a verdade subjacente.
A realidade brasileira, em que sempre se embasa a literatura modernista, pode ser detectada em Laços de Família em que traços da nossa cultura podem ser vislumbrados.
O homem aqui é visto como ser humano na sua dimensão universal: é o homem moderno, de qualquer espaço, alienado e esmagado pela rotina, descaracterizado e perdido no anonimato dos grandes centros urbanos.
O quinto conto, do livro Laços de família, Feliz aniversário, retrata a festa em comemoração aos 89 anos de D. Anita, que mora com a filha Zilda, a única que tinha condições de hospedá-la. Neste dia toda a família reúne-se, todos ali gerados da matriarca; porém esses laços de família são apenas formais, pois o grupo está presente apenas por obrigação. Não há mais carinho em relação à velha, muito menos entre si. Tudo é artificial, forçado. D. Anita percebe que todos ali lhe são indiferentes, não parecendo ser seus filhos. É quando sente nojo e em meio à festa, cospe no chão. Um ato escandaloso, mas que acaba sendo relevado em nome da idade da senhora. Nesse momento D. Anita triunfa sobre sua família. Um dos seus filhos, empolgado em fazer discursos, no final da festa despede-se com um "Até o ano que vem". O que indicava de que, apesar da mediocridade de sua família, a velha os superava.
Laços de família é uma Coletânea com algumas das obras-primas do conto brasileiro, onde os personagens são sempre surpreendidos por uma modalidade perturbadora do incomum, no meio da banalidade de seus cotidianos. Aqui constatamos que, autora trata do mergulho trágico em uma festa familiar nos 89 anos da matriarca, e notamos algumas lições de vida, como por exemplo, o preocupar-se com o outro, a disponibilização de tempo para os mais velhos e o relacionamento familiar, na prosa definitiva e transcendente de Clarice Lispector.
Como salienta o crítico Massaud Moisés, provavelmente este é o conto mais irônico e satírico do livro, o que visualiza a vida com mais negativismo. Observa-se uma perversidade implícita na forma da velhice e da vida. Na qual a rotina deixa de ser habitual para ser constante; e sua ruptura é anual. Há uma perversidade implícita na forma da velhice e da vida. A rotina deixa de ser habitual para ser constante, existencial. E a ruptura dela é anual, vem de fora do mundo cansado que nos envolve.
Neste conto nos deparamos com a superficialidade do tratamento fraterno, as diferenças entre noras, a desarmonia entre os irmãos, a educação dessemelhante dos netos e bisnetos, os presentes imbecis e sem proveito, as conversas vazias e forçadas, e as aparências para “manter os laços” que vão surgindo no conto e evidenciando a deterioração da instituição familiar. Tudo isso deprime e escangalha a aniversariante, que, rancorosa, desabafa o seu ódio e a sua angústia: “— Que vovozinha que nada! explodiu amarga a aniversariante. Que o diabo vos carregue, corja de maricas, cornos e vagabundos!”(p.231).
Em suas obras Clarice tem como objetivo atingir as regiões mais profundas da mente das personagens para aí sondar complexos mecanismos psicológicos, como se pode observar no conto Feliz aniversário; e é essa procura que determina as características especificas de seu estilo.
Na narrativa de Lispector predominam o tempo psicológico, visto que o narrador segue o fluxo do pensamento, como podemos ver neste fragmento: “Será que ela pensa que o bolo substitui o jantar, indagava a velha nas suas profundezas”(p.233); e o monólogo interior das personagens, como o da velha construído após cantar parabéns, que sem dúvida é uma decorrência da introspecção, em que a personagem se revela de dentro para fora, mostrando-se mentalmente, numa total desarticulação com o real.
Como vimos no conto estudado, o enredo pode fragmentar-se, e a narrativa quase sempre se “quebra” por um momento de lucidez da personagem, o que constitui uma espécie de clímax do conto. Depois tudo volta à normalidade, quando, quase sempre, se percebe a problemática apresentada. . O espaço exterior tem importância secundária, uma vez que a narrativa concentra-se no espaço mental das personagens. Características físicas das personagens ficam em segundo plano. Muitas personagens não apresentam sequer nome, ex: a nora de Ipanema, a nora de Olaria.
As personagens criadas por Clarice Lispector descobrem-se num mundo absurdo; esta descoberta dá-se normalmente diante de um fato inusitado - pelo menos inusitado para a personagem, tomemos, por exemplo, o momento em que a velha, no conto Feliz aniversário, percebe que “seus filhos e netos não passavam de carne de joelho”... Com exceção de Rodrigo, o único neto a ser “carne de seu coração” (p.230). Aí ocorre a “epifania”, classificado como o momento em que a personagem sente uma luz iluminadora de sua consciência e que a fará despertar para a vida e situações a ela pertencentes que em outra instância não fariam a menor diferença. Esse fato provoca um desequilíbrio interior que mudará a vida da personagem para sempre.
Em um determinado momento do conto a velha constata que seus descendentes não lhes são dignos e decide desprezá-los. Ela encontra-se frustrada por sua família e busca uma redenção e apenas Cordelia percebe durante um breve instante. Reflete-se então sobre a existência do homem que deveria ser pautada não pelas convenções, mas pela busca do homem por aquilo que realmente é.
Observa-se que o conto é uma narrativa descritiva, composta por diálogos e um discurso direto, ex: “.... nada que a própria aniversariante pudesse realmente usar ...uma economia: a dona da casa guardava os presentes, amarga, irônica”(p.228). E depois todos se vão, e a aniversariante, quase nonagenária, permanece “sentada à cabeceira da mesa, ereta, definitiva, maior do que ela mesma... Será que hoje não vai Ter jantar, meditava ela. A morte era o seu mistério”(235).
Vê se que nesse conto cada personagem possui características que os constituem como uma família, com ressentimentos e angustias. Observa-se também, três pensamentos mesclados ao do narrador: o de Cornelia, a nora moça, o de Zilda , a filha , e o da velha mãe, quase imóvel e com suas considerações sobre a vida.
Quase todas as personagens dos contos são femininas; sem dúvida, isso tem um sentido na obra, pois a rotina é o principal tema dos contos de Clarice, e a mulher é vitima do dia-a-dia da existência. De um modo geral, suas personagens são seres fracos, frustrados, que se escondem por trás de uma casca que os envolve de náusea e angústia e quase sempre têm um momento de lucidez, despertando-se da rotina que as cega e esmaga, quando se revelam frágeis e inseguras. Sendo a única solução refugiar-se na rotina, onde se escondem das próprias fraquezas, ambições e frustrações.
No conto trabalhado o espaço e o tempo em que a história ocorre tem importância secundaria, pois “sua literatura não é realista, mas simbólica, o texto é instaurador de seus próprios referentes, e não se interessa em refletir o mundo exterior de um trabalho mimético” (SANT’ANA. 1990:161).
A partir de uma cena corriqueira e natural, um aniversário em família, Clarice cria um turbilhão de pensamentos e cenas que se vêem para evidenciar no conto a necessidade de refletir sobre o espírito feminino, a sensibilidade, posição social e espaço que a mulher ocupa. Com suas personagens femininas ela nos faz observar as impressões que a mulheres possuem e o meio em que estão inseridas. Um exemplo é o pensamento de Zilda ao trazer o bolo com uma vela, na qual esta colada um papel com o número que representa 89 anos. Observamos que o discurso do narrador se constrói em torno do pensamento dos personagens e isso ocorre sem qualquer marca textual de transposição.
O enredo tem importância secundária e as ações - quando ocorrem - destinam-se a ilustrar características psicológicas das personagens. Comumente podemos nos deparar com histórias, escritas por Clarice, que não conseguimos definir seu começo, meio ou fim. Por isso, ela se dizia, mais que uma escritora, uma "sentidora", por registrar em palavras aquilo que sentia e em seus livros observava-se mais que histórias, seus livros apresentam impressões.
Os “laços”, que envolvem o titulo, não passam de uma grande ironia, o que não deixa de estar coerente com a casca de suas personagens: os “laços” são apenas ilusórios e disfarçam a artificialidade do relacionamento humano.
É assim que o homem, fechado na prisão de seu próprio comodismo, vai enfraquecendo e destruindo os laços que o unem à própria vida. Estruturados sobre o artificialismo, fingimento e interesses, os laços de família tão delicados e tão desgastados que atestam a desestruturação de uma sociedade doente.
A leitura de Clarice é reveladora, tanto da parte interior dos personagens, quanto do vislumbre instantâneo que o leitor capta, ela auxilia o leitor a compreender o complexo e indefinido pensamento humano. Clarice Lispector não se preocupa em contar uma estória. Sua preocupação maior é com as impressões, como ela própria observa: “os meus livros não se preocupam com os fatos em si, porque para mim o importante é a repercussão dos fatos no indivíduo”.
Por meio da linguagem cuidadosamente empregada, ela vai levando-nos pelos caminhos de sua sensibilidade a identificar as enfermidades e a deterioração de nossas estruturas e valores. O livro enfoca o desmoronamento de todo um complexo de instituições, fórmulas e convenções sociais; homem como um mero espectador de sua própria vida.
Podemos relacionar, ainda, o estilo literário de Lispector ao de James Joyce: que prima tanto pela linguagem, como pelos seus jogos morfológicos, sintáticos e semânticos, quanto pelos seus pensamentos e idéias expressos com precisão dentro do texto, Joyce buscou demonstrar uma idéia e com ela todas as imagens e sensações que se gerariam dela aperfeiçoando o fluxo de consciência e resultando em narrativas densas e profundas. Igualmente o fez Clarice Lispector no Brasil, com teor ora muito próximo, ora muito vago, acabou criando uma literatura de equivalência com seu antecessor. Ambos aproximam fixão e realidade.
Em suma tudo o que até aqui discutimos ocorre por que a lógica de Clarice é pautada na originalidade e a imprevisibilidade, o que exige do leitor capacidade de extrapolar o texto para fazer viver o texto em outras dimensões. O leitor de sua obra deve preparar-se para o inusitado, que o fará refletir criticamente sobre sua história, em que passado e presente se cruzam no ato constante de recriar, ele (o leitor) deve estar apto a viver em um mundo que ainda não aprendeu a olhar/ler.
Referências:
MOISÉS, Massaud. A literatura brasileira através dos textos. 23ª edição.SP:Cultrix, 2002.
------------------------ História da literatura brasileira. Vol. 5. Modernismo. 3ª edição. SP: Cultrix, 1996.
SANT’ANNA, Afonso Romano de. Análise estrutural de Romances Brasileiros.SP: Ática, 1990.
LISPECTOR, Clarice. Laços de Família. 12ª edição. SP: Ática, 1996.