Diálogo com a poesia de Eliane Accioly

Resenha de Eliane Accioly Fonseca

de Poemas na Arena

Ed.Mulheres Emergentes Editora Alternativa, Belo Horizonte, 2001

Por Sandra R. S. Baldessin

Qual o lugar da poesia? O lugar do poeta? A arena do cotidiano e, subjacente a esta, a arena interior, aquela onde os conflitos se travam, onde as palavras não bastam para nomear a coisa. “Poemas na arena”, da psicanalista e escritora Eliane Accioly Fonseca nos remete ao espaço da luta, evocando os antigos circos romanos, lugar do encontro entre os homens e as suas feras: “no lugar/ de riscos e perigos/formas vivas e primitivas/do meu bicho”.

Nesse lugar “palavras pulsam/mitos acordam meninos/nas cavernas ancestrais”. O conceito de ancestralidade permeia a poética de Eliane, nos lembrando que não começamos pensando, mas sentindo. Mesmo a abelha e a aranha, signos do feminino eleitos pela poeta para traçar os caminhos da sua poética, aludem às narrativas míticas e heróicas que simbolizam as forças da sexualidade e outros aspectos da condição humana, como transparece na bela “Primórdios”: “o sexo da rainha,/caverna templo/câmara matrimonial/arena/de um encontro indissolúvel/entre a fêmea e o macho”.

Na colméia: “cidadela animada” onde “os personagens apresentam-se na flor da carne” vislumbramos “operárias guerreiras/amas curandeiras sibilas, em mutirão”, todas as mulheres de nós, que se constroem cotidiana e milenarmente entre o sensível e o inteligível, à margem de quaisquer interpretações, vivendo: “entre temperos e palavras/a voz e o indomável,/o campo dos seus embates”.

Eliane Fonseca esculpe, letra a letra, a mulher-abelharanha, plena e sensual: “entre a casca e a vulva/o hímen perfumado,/amanhecer de flor/e laranjeira,/se antecipa à boca ao ímpeto à gula”, que “caminha entre as barras/de um sonho, universo/úmido e rarefeito”. A mulher-abelharanha possui ‘mana’ – a força mágica presente nos seres animados e inanimados, que a torna, na linguagem da poeta, “múltipla e si-mesma”.

O que mais me atrai na poética de Eliane Fonseca é a nítida transposição de termos e significados de um determinado sistema para outro, configurando-se uma bricolage que harmoniza, de modo súbito e imprevisível, mundos aparentemente irreconciliáveis, arquitetando uma ponte, por exemplo, entre o pensamento mágico e o refletir intelectivo, como fica claro nos versos: “poeta/extraio lucidez/da loucura/e do bruto,/loucura liquefeita,translúcida”.

Há lucidez na construção do poema enquanto objeto artístico, revelada no cuidado com o arranjo dos planos fônicos e semânticos, o som e o sentido; e há loucura, revelada na relação totêmica com a abelharanha, à qual a poeta suplica: “atrás de histórias sem fim/ ata-me Aracnídea/ânsias de matá-la/e ela se rindo de mim”.

A poética de Eliane constrói imagens afetivas, manifestando com palavras um jeito sensitivo de experimentar-se e experimentar o mundo exterior, na busca do infinito, da totalidade e, sobretudo, das coisas que só se desvelam através da poesia: “a abelha entrevê/não as coisas,/o vão entre elas”. Leitura imperdível para os amantes da boa poesia.

*O livro Poemas na Arena integra a Coleção Milênio – Mulheres Emergentes, projeto da escritora Tânia Diniz.

Sandra R. S. Baldessin