Leite Derramado, Chico Buarque
O que te importaria? Esta é a pergunta que ficou perambulando a minha mente desde que acabei de ler o novo livro do Chico, Leite derramado. Para mim, o melhor que li este ano.
É uma história tão comprida, tão rica de detalhes e ao mesmo tempo breve, a obra não passa de 200 páginas e mesmo assim, segundo o próprio Chico, porque editaram em letra grande, se num formato padrão, seria um conto, um contão. Piadas feitas na FLIP, para disfarçar o grau de exigência que o autor se impõe.
São cem anos da vida de Eulálio Montenegro d'Assumpção, ou melhor, mais que isso. Mesmo nós, reles mortais, não personagens de uma obra prima, trazemos a história de nossos antepassados e os sonhos dos nossos descendentes, a nossa vida transcende a nossa morte ou nascimento.
De rico, aristocrata, viajado, em casa só se falava em francês, Eulálio conta, a um pobre coitado dependente de favores de parentes traficantes ou da igreja protestante da periferia onde mora. Seus bens, seus credos, um a um se desmoronam ou se desmentem no longo da vida. E não há nada que se possa fazer, o leite é derramado. Este leite se derrama dos seios da mulher que ele amou e o abandonou, na qual fez uma filha. Se derrama no barraco que habita e assim percorre o entremez.
Várias passagens guardam um fino humor, no aniversário de cem anos, Eulálio bêbado sai pelas ruas do Rio e vê policiais negros, tenta comentar com eles como a vida deles mudou, no seu tempo, eles eram escravos. Tentava simplesmente puxar papo, nos costumes de hoje, tal comentário é crime de preconceito. E quando fala da cocaína, aprendida a usar com o próprio pai, em momentos num fino hotel de Paris, quando lhe deixava escolher uma entre as prostitutas que com eles estavam no quarto. O pai iniciava o filho, quanta coisa mudou. "Chico cutuca e devassa com olhar cortante as mazelas da vida brasileira: a desigualdade obscena; a promiscuidade público-privada; a subserviência colonizada; o preconceito velado pela cordialidade", indica o cientista social Eduardo Gianetti.
Ao fim de tudo, do que viveu se certo ou errado, se covarde, calhorda, sobrou a história de Eulálio, do Brasil desde o império e a minha que escrevo e a sua que lê, de tanta história: o que no final importa?