Os conceitos-vivências de Eliane Accioly
Resenha de Eliane Accioly
Publicada na Revista de psicanálise Percurso,
Sedes Sapientiae, São Paulo
Corpo-de-sonho: arte e psicanálise
São Paulo: Annablume, 1998, 148 páginas
Doralina Rodrigues Carvalho
Psicanalista
Mestre em Psicologia Clínica pela PUCSP
Professora convidada do Centro de Filosofia Instituto Sedes Sapientie
Rua Bartira, 243, AP 182, Perdizes, CEP 05009-000
São Paulo, SP Fone: 11-3872-7609 email dora.r@uol.com.br
Resumo: Transversaliza os planos da clínica, da arte, da filosofia, da biologia e, é através de uma dimensão estética, ética e política que produz os conceitos encontrados em Corpo-de-Sonho. É um processo de constituição de uma clínica que passa pela criação de um outro modo de subjetivação, dissolvendo-se enquanto essência e mergulhando nas circunstâncias da vida, cartografando a produção do desejo e a diversidade.
Abstract: Transversalizes the plans of the clinic, of the art, of the philosophy and of the biology, and it is through an estethical, ethical and political dimension that the concepts, which are found in “Body of Dream”, are produced. It is a process of the constitution of a clinic, which passed through the creation of another way of living, dissolving itself as essence and plunging into the circunstances of life, cartographing the production of desire and diversity.
Palavras: 2.771
Caracteres (sem espaços): 15.104
Caracteres (com espaços): 17.902
Eliane Accioly Fonseca em um denso processo de criação de conceitos – conceitos-ferramentas – que a auxiliam na construção de novas possibilidades clínicas e de outros lugares enquanto psicanalista, procede a um processo de transversalização entre distintas elaborações teóricas – Freud, Deleuze, Fédida, Guattari, Winnicott, Zumthor, Benjamim, dentre outros. Assim, o seu trabalho dá lugar à diferença e a uma híbrida produção em rede de pensamentos e práticas múltiplas. Os “outramentos” a que a autora se entrega, tiram-na de lugares estratificados e a conduzem a um modo de pensar que opera com criatividade, como pensamento-artista.
Deleuze percebe o pensamento como um componente da vida. Quanto mais liberto for de totalidades, unidades, princípios, pressupostos e fundamentos, mais o pensamento é livre para percorrer o campo do virtual. Sem a “espessura desses abrigos”, o pensamento irá se compondo através de movimentos insólitos, por incursões temporárias. A autora, a nosso ver, faz esse percurso em um processo criativo de invenção de novos conceitos, que se expressam como um conjunto de singularidades e não como um parâmetro universal.
Não trabalha os conceitos como universais teóricos e sim os produz de tal maneira, que a consistência dos mesmos se dá pelo seu uso singular: cada diferente contexto pede uma transcriação conceitual. Ela foge à reflexão e à razão cartesiana e se deixa contaminar, se misturar e se hibridizar. Tem como sustentação para a existência dos conceitos que cria, as funções singularizantes que lhes dão vida via clínica ou arte, corporificados nos afetos e intensidades.
Transversaliza os planos da clínica, da arte, da filosofia, da biologia e, é através de uma dimensão estética, ética e política que produz os conceitos encontrados em Corpo-de-Sonho. É um processo de constituição de uma clínica que passa pela criação de um outro modo de vida, de um outro modo de subjetivação, dissolvendo-se enquanto essência e mergulhando nas circunstâncias da vida, cartografando a produção do desejo e a diversidade.
Os conceitos que elabora não são simples e sua complexidade reside em que eles são engendrados a partir de múltiplos componentes, que não os tornam rígidos e/ou com alto grau de precisão. Ao contrário, não podem (e não “querem”) amarrar tais componentes que por serem fruto da diversidade, não se fecham, não se totalizam, não caem numa condição de transcendência. Passam por um permanente movimento de diferenciação, sem que ao longo do contato-contágio com eles seja dado ao leitor a possibilidade de totalizar e homogeinizar as suas partes.
Produção teórica atravessada por múltiplos sentidos. Pelos sentidos de uma proposta de clínica que se cria e se recria permanentemente, que produz rupturas, que decompõe, que desnaturaliza os lugares de neutralidade do terapeuta e o implica numa condição de encontro, flexibilizando as fronteiras por vezes rígidas da clínica. Entrecruzamento de vivências, eclosão do heterogêneo, ruptura do dualismo sujeito-objeto, constituição de planos de intersecção terapeuta-paciente, nos quais percebemos uma condição construtivista a partir de estados de risco, sem garantias nem fundamentos, em que se misturam componentes estéticos, éticos, afetivos. O caráter processual inventivo desta clínica se evidencia na cartografia que vai sendo traçada dos conceitos e das vivências, ou seja, dos conceitos-vivências. Senão, vejamos.
A autora nos apresenta uma clínica-crítica pensada como possibilidade para a emergência do novo. O campo da prática clínica é colocado em questão, enquanto um campo problemático que se determina por condições de contingência, contextualizadas e finitas: o que se nos coloca a necessidade de reinvenção permanente do universo da clínica e de seus operadores.
Vai até à Biologia do conhecimento de Humberto Maturana e Francisco Varela, que recusam o modelo da representação e rompem com a biologia tradicional e traz o conceito de autopoiése, enquanto auto-produção permanente e auto-engendramento de singularidades. Estes autores partem de uma biologia em que os seres vivos teriam como principal atividade produzir mudanças em si mesmos, articulados uns aos outros sob a forma de redes (as células, por exemplo). Segundo Eliane, o ser humano, porém, será autopoiético, não instintiva ou naturalmente, mas uma autopoiése que vai sendo construída junto com um outro, que pode ser, por exemplo, o analista. Em suas palavras: “Autopoiése é a criação de diferenças, o engendramento e desmanchamanento de formas de subjetivação que se articulam para dar conta de maneiras diferenciadas de viver, assim como para desmanchar formações que não mais suscitem questões criativas”. (pg 33)
O conceito de vida (que vai do biológico ao simbólico) é usado por ela na confluência com a questão do ser, a partir dos variados modos de se estar no mundo, através de múltiplas formas de subjetivação, dentre elas a assunção da face trágica da vida, com sua ausência de garantias e sua produção auto-poiética e poética. Considera a poética constituída por infinitas multiplicidades, criando-se entre o virtual e o atual. Em suas palavras: “tear no qual se tecem e se engendram os fios auto-poiéticos. O virtual seria o invisível e o indizível, que a princípio se constituiria de potenciais, de vir-a-ser. Do atual fazem parte as formas de subjetivação ou de existência que puderam ganhar expressão, se manifestar”. (pg 24)
Vê o sujeito enquanto processo, enquanto permanente ruptura de equilíbrios estabelecidos, processos de subjetivação. Sendo a autopoiése – em seu engendramento de diferenças – a lógica do sujeito enquanto processo, e não uma lógica da identidade – homogeneizante. O trabalho analítico seria produzido com aquele que não se percebe ainda como processo, quando não existe ainda a experimentação de uma “continuidade de ser”. Este sujeito-processualidade, encontra-se em permanente constituição, vive um permanente vir-a-ser. É autopoiético, no sentido da existência de um auto-engendramento de suas singularidades e de suas potências em movimento perpétuo. Haveria um processo de “humanização autopoiética”, no sentido de o sujeito ter-se a si mesmo como seu primeiro objeto de conhecimento, o que lhe possibilitaria partir também para o conhecimento do outro. Sujeito e meio se articulariam simultaneamente, sem uma existência que os antecedessem e neste intervalo se daria o encontro entre o paciente – sujeito autopoiético – e o analista – o meio, que se propõe como campo de escuta e de ressonância afetiva.
Indica que a poética coincide com a vida: a vida como um campo de virtualidades, como uma reserva de acontecimentos que se engendram nos intervalos do encontro entre o sujeito-processo e o meio, criando espaço para a estranheza, para dar forma ao informe, para atualizar o potencial.
Traz ainda uma outra questão, a do saber que deixa sonhar, cuja concepção de inconsciente não se liga a uma idéia de repressão e sim à concepção de um inconsciente virtual ligado à vida. Indica que: “O conhecimento que deixa sonhar é autopoiése, é consentimento no abandono do controle racional discursivo, processo que abre caminho para a vivência de articulações criadas a partir de experiências da continuidade de ser. O saber que deixa sonhar possui movimentos próprios, que nos escapam, e quando ele é o estado vigente, não precisamos fazer nada Precisamos, antes, descobrir o não fazer das coisas. São movimentos que se fazem muitas vezes enquanto dormimos ou quando sonhamos.(...)” (pág 38).
A questão da confiança é um dos temas que lhe são caros no decurso de seu trabalho, pois percebe a confiança como uma condição para se alcançar a potência do consentimento no abandono do controle racional. Passa por Winnicott para tratar a relação entre confiança e potência de vida. Estados de risco precisam ser experimentados pelo paciente na presença do analista, para que esses não sejam vividos como estados de terror, o que deixaria o paciente paralisado pelo terror inominado. E assim, no contexto analítico passe a nomeá-lo e em nomeando-o possa elaborá-lo em sua passagem para a dimensão trágica da vida.
Em relação à clínica do estranhamento destaca que, seja na arte, na vida, no sonho, no mito ou na sessão analítica, o Estranho será sempre singular, incomum, pois é de sua natureza ser irrepetível. Compreende o Estranho, como um fenômeno da vida em seu cotidiano (um cotidiano trágico) que possibilita através de linhas de fuga descobrir novas formas de subjetivação, novos modos de existir. Isto se faria possível conqüanto nos descobríssemos sujeitos-processos.
Ao tratar da clínica do estranhamento, recupera a questão psicanalítica das repetições, enfocando as variações e diferenças que se criam a partir destas: a eficácia das repetições encontra-se na ressonância de uma escuta que cuida de inserir a diferença – a escuta do analista. E, então, lança mão do conceito de repetição com diferença de Gilles Deleuze, que ela liga a um conceito de memória prospectiva: uma memória que não existiria a priori, mas que poderia ser criada para que o sujeito–processo pudesse captar o conhecimento não pensado. A memória prospectiva só poderá ser instaurada junto a um outro que se ofereça como campo de ressonância para que se estabeleçam as diferenças. Portanto, uma repetição prospectiva que tem por função criar novas articulações e registros inexistentes anteriormente. Uma repetição que se cria como autopoiése.
Traduz unheimlich por íntima-estranheza e com Pierre Fédida diz que o analista ocupa o lugar do estrangeiro quando se transporta para um estado de atenção sonhadora, atenção distraída do banal e do comum, impossibilitando que a familiaridade se instale na linguagem, usurpando a intimidade da palavra: “a intimidade do qual fala Fédida representa a possibilidade de elaborar psicanaliticamente a significação, de não permitir que a familiaridade se instale na sessão e perverta o enquadre, pervertendo a potência da palavra, assim como a potência da compreensão analítica”. (pg 63). É na vigência da intimidade que sujeito e objeto se desmancham resguardando, contudo, na mútua estranheza, a lucidez analítica ou artística e a potência para a compreensão psicanalítica.
O que vem possibilitar as mutações, nas quais vão estar implicados o paciente e o analista, é o encontro. Ressalta: só quando uma análise se permite ser campo de multiplicidade e mutações pode-se falar que aquele par analítico não envelheceu.
Eliane Accioly Fonseca, através de P. Zumthor nos introduz, também, no universo da voz e da materialidade da linguagem, quando tematiza que a voz revela muito mais o que se poderia dizer através de palavras. A voz, em suas ressonâncias, cria imagens esclarecedoras ou vazios, pois embora sendo um signo invisível é tátil, ressoa, vibra, pois possui materialidade. O analista, através de uma escuta que ressalte o privilégio da voz, se deparará com “a continuidade de ser do paciente”, assim como também poderá vislumbrar “impossibilidades de ser”. O uso da voz é, por excelência, o lugar da inserção do outro, lugar de ressonâncias e de escuta, do estrangeiramento, em que o seu uso (da voz) guarda dependência da presença do outro – o estrangeiro.
A função poética tornar-se-á existencialização ou um modo de viver, quando, se ultrapassa a estrutura da linguagem, sem no entanto, abandoná-la. Então a função poética deixa de ser um conceito abstrato, transformando-se em corpo-de-sonho, corpo-de-afecções, corpo imaterial que, ao mesmo tempo, possui materialidade. A vivência do dia a dia na dimensão trágica da vida, diz a autora, é o uso da poética como um modo de vida, é a passagem do racional-discursivo para a lógica da poética, do campo das representações para o plano da imanência.
Já na elaboração do conceito corpo-de-sonho, busca incorporar-lhe as vivências que lhe são indissociáveis, edificando suas múltiplas faces: processo, processualidade, vir-a-ser.
Mas quando haveria corpo-de-sonho?
A autora responde: “Há corpo-de-sonho quando alguém, ao abandonar as garantias do suposto saber, vive o estado de risco de se deixar arrebatar pelo que lhe é alheio e maior, experimentando o que não sabe e não conhece. Ora, o corpo-de-sonho é procedimento estético, artifício dentro de artifício e, como tal, o corpo-de-sonho é inesgotável” (pg 113).
Como a obra de arte, o corpo-de-sonho pode passar por um processo de atualização retirando-se do virtual e se materializando e se compondo através de movimentos insólitos, fazendo-se atualidade e acontecimento, criando outras formas de subjetivação e existência. Porém nunca perdendo a sua condição de virtualidade, forma significante que é, como a arte, o mito e o sonho.
A construção do corpo-de-sonho passa pela ausência de garantias na condição trágica do cotidiano, num devir criativo que opera rupturas em relação ao controle racional e se deixa levar pela potência da confiança, que possibilita a travessia do informe e do estranho. O corpo de sonho é o vir-a-ser, é este informe que ainda não é, mas que se pressente, é o sujeito-processo no cotidiano trágico.
O modo como Eliane Accioly Fonseca compreende e usa a transferência vincula esta a um inconsciente virtual, à memória e à repetição prospectivas, que não estariam depositadas em uma instância inconsciente, prontas para virem à tona, mas esperando serem criadas. É a formação trágica do analista que o liga à proposta teórica do inconsciente virtual, distinto do recalcado. Para a autora, o invisível virtual pode ser compreendido como campo de imanência, como a poética ou como a própria vida em sua reserva de acontecimentos.
E, como bem elucida: “o corpo-de-sonho, por um lado, é chave para a entrada na dimensão trágica da vida; por outro, ele se cria nessa própria dimensão. Não surge ao acaso, nem é inato, é parte do potencial de todo ser humano mas, para se atualizar, precisa ser construído. Não se entra de graça na dimensão poética da ausência de segurança ou de garantias. Paga-se o preço e o corpo-de-sonho é, ao mesmo tempo, o sonho e o preço” (pg 116).
Reafirma que o corpo-de-sonho se constrói a partir de uma condição de confiança, que surge e se desenvolve sob os cuidados do outro humano, o que possibilita, via experimentação da “continuidade de ser”, que o sujeito possa se constituir como processo, deixando-se atravessar pela dimensão trágica da vida. Corpo-de-sonho enquanto devir-artista, dimensão trágica da vida, vigília poética.
Após este percurso pela obra de Eliane, podemos constatar que a invenção de novos conceitos não se constitui a partir de um modelo de análise fechado num sistema conceitual. Assim como para Deleuze e Guattari, para a autora os conceitos seriam como que efeitos de atualização de um certo campo problemático, constituído essencialmente de agenciamentos em vias de se fazer, desfazer, refazer. Conceito com tempo de validade limitada, determinada por seu grau de eficácia relativa à sua condição de resolução de um campo problemático no contexto em que ele foi criado.
Essa obra nos põe em contato com uma clínica onde a transferência se constitui enquanto campo de estranhamento, no qual, o analista se deixa afetar, embora de modo diferente de como o paciente é afetado. Nesse campo de estranhamento emerge uma clínica das intensidades, que se permite experiências e experimentações, que lhe dão uma outra consistência na conexão de múltiplos agenciamentos, na invenção de novas práticas analíticas.
Ao ver a clínica como um processo permanentemente se constituindo, outra perspectiva não poderia ter, senão a da construção também permanente dos dispositivos. A clínica assim proposta, parte de uma lógica das multiplicidades. Parte da processualidade que se conecta às singularidades e ao desenvolvimento dos devires.
Eliane desloca-se do campo das representações para um campo de produções teóricas, em que se preserva a condição de virtualidade dos conceitos e suas possibilidades de atualização, via afetos, sensações, vivências. Coloca-se em estado de risco – mergulha no inusitado, no estranho. Não foge à materialidade dos processos e movimentos permanentemente se fazendo. Nem da experimentação, desde os terrenos mais conhecidos às regiões mais desconhecidas no campo do pensamento, das formas de vida, dos modos de subjetivação. Em Corpo-de-sonho, a expectativa de finalidade se vê desconstruída: o desmanchamento de formas e figuras até então constituídas leva, tão somente, a novos desmachamentos e outras construções: um processo auto-poiético.