Pedagogia do Oprimido: dicotomias (inter)ligadas

Universidade Federal do Tocantins - UFT

Campus Universitário de Araguaína - CAMUAR

Curso de Letras – 5º Período Noturno

Eduardo Amorim Coelho

Pedagogia do Oprimido: dicotomias (inter)ligadas

Este trabalho está assentado naquela que é concebida como a obra-prima de Paulo Freire: A Pedagogia do Oprimido, cuja principal característica observável é a dicotomização dos processos objetivos e subjetivos da vida em sociedade, quem em si, já é uma dicotomia indissociável. Entretanto, observaremos como estes elementos heterogêneos, que são intimamente associáveis, aparecem na pedagogia freireana. Tal identificação e separação acarretariam criticidade, por ele apresentada como o principal elemento para uma conscientização que resultaria na libertação do oprimido, de seus semelhantes e, por conseguinte, de seus opressores.

A mais facilmente identificável das dicotomias apresentadas durante o livro é a de opressor vs oprimido, que é enfaticamente repetida nas discussões por ele propostas. Para Paulo Freire, opressor seria o indivíduo que, tendo consciência de sua condição ontológica de ser mais condiciona seus semelhantes – seres humanos – a ser menos(1) através da “violência”, ou seja, instaura uma ordem autoritária que faz com que os demais tornem-se alienados, acabando na subjugação daquilo que os torna humanos(2).

O opressor, com isto, passa a ser produto da própria violência, sofrendo um processo denso de desumanização, em que torna-se impotente diante da própria situação, tendo uma concepção humanista distorcida, que torna-se humanitarista e, por conseqüência, alienada e alienadora(3). Esta preocupação do opressor em oferecer algo aos oprimidos seria uma tentativa de acalmar as pressões que sofre de seus resquícios humanos – sua consciência -, que serve-lhe também como ferramenta para manter a massa oprimida grata por sua “generosidade”, logo, submissa.

O que até agora, através da discussão inicial, pudemos perceber, é que o autor deixa claros pontos opostos, que estão sempre unidos de maneira a “manter a ordem”, ordem essa que, ao oprimido, parece indissolúvel, mas que, para Freire, podem ser superados através de um posicionamento do indivíduo oprimido como um “observador externo”, em cuja posição poderia ver, criticar, historicizar-se e comprometer-se. Tal comprometimento seria a porta de entrada para novos patamares do pensamento, resgatando sua condição de ser mais, opondo-se a sua condição anterior, de “imerso” em uma série de acontecimentos que lhes partiam do externo e que eram por ele introjetadas, e que agora passam a ser projetadas por ele em relação ao seu ambiente.

O comprometimento, segundo Freire, seria um imprescindível passo para a prática que, aliada à reflexão crítica, seriam os pilares para a formação do sujeito livre e que, em sua liberdade, vê-se preso, assim como seus companheiros e, por isso, fortalece seu comprometimento com a busca da superação da própria condição de oprimido, momento em que torna-se, efetivamente, humano(4).

Este momento de ruptura, para o autor, seria uma espécie de “parto”, de onde se origina um homem livre, que abandona a condição de “servil” e atira-se na, até então desconhecida, liberdade. Aqui percebemos mais um conceito bipolar que ocupa o mesmo espaço: o homem livre vs homem servil. Esta relação ambígua é que torna a libertação um momento “doloroso”, e que compromete a libertação de muitos oprimidos(5). É neste momento que o sujeito oprimido perpassa todas as dicotomias que envolvem sua condição: revolução/ imersão, ontologia/ ordem, engajamento/ alienação, diálogo/ prescrição, ser/ ter, projeto/ destino, realidade/ mito, consciência/ ingenuidade.

Todas as oposições aqui representadas aparecem de maneira mais ou menos claras no texto, podendo ser, através de uma leitura crítica, facilmente inferidas. As escolhas realizadas pelo desumanizado durante o próprio parto determinarão o nível de liberdade que o novo sujeito que nasce desfrutará, além de servirem como parâmetros para aqueles que o sucederão, tornando-se referência para os libertos recém-nascidos.

A relação entre oprimido e opressor é extremamente complexa, pois, se por um lado, o opressor acha “natural” praticar a violência, o oprimido acha normal sofrê-la. O oprimido, em determinados casos, deseja igualar-se ao opressor e/ou supera-lo. Isto não se caracterizaria um problema novo, não fosse a idéia do oprimido tornar-se um opressor ainda mais violento que o anterior(6). Tal concepção implica a idéia de que o opressor está, indubitavelmente, fundido ao oprimido que, de tão desumanizado, busca o melhor apenas para si, aderindo a grupos que se apartaram da grande massa para buscar os próprios interesses e, adiante, fracionando-se até mesmo de seus companheiros(7). Este fracionamento seria um dos principais empecilhos para a mobilização das massas em busca da liberdade.

Entretanto, o instrumento de opressão mais eficaz do sistema regente (que, novamente dicotômica, contém também a passagem para a libertação) é a educação. Esta é concebida por Freire como o grande trunfo da sociedade opressora, sendo por ele denominada como “concepção bancária”, que tem como ator solitário, o professor: agente que tem a incumbência de “depositar” o conhecimento nos arcabouços “vazios” dos educandos. O professor teria, portanto, status superior aos demais, tendo sua palavra como algo a ser acatado sem discussão em detrimento de qualquer outra concepção anteriormente estabelecida. Para Freire, esta aceitação e incorporação de conceitos só acontece por haver uma consciência “ingênua” por parte do oprimido, que deve ser substituída por uma consciência crítica. Esta ingenuidade só pode, para o autor, ser superada através de uma racionalização do oprimido em relação a si mesmo, sobre seu papel social, cultural, humano e histórico, para que se descubra oprimido e, a partir daí, busque comprometidamente sua liberdade.

É neste contexto que a figura do professor, como sujeito livre, passa a estender sua liberdade aos seus semelhantes, abandonando a posição vertical dos opressores e tornando-se professor-aluno. Este novo educador deve fazer-se dialógico, problematizador, instigador da consciência de seus companheiros, organizando o “pensar”, que não se dá nem num homem só, nem no vazio, mas em e entre os homens, sempre referindo-se à realidade(8). Para o autor, ser alfabetizado não deve ser apenas para ler, mas para dizer a sua palavra. Neste momento, Freire usa um conceito de alfabetização que remete-nos aos princípios de letramento(9).

Segundo Freire, o oprimido que liberta-se tem como responsabilidade comprometer-se com a libertação de seus semelhantes oprimidos, precisa ser um revolucionário do pensamento. Somente um sujeito livre pode posicionar-se como “humano”, pois não é desumanizado nem por oprimir nem por ser oprimido, podendo ajudar o opressor a libertar-se, para que este busque o ser mais em vez do ter mais e, na sua prática reflexiva, mantenha-se livre, num processo contínuo, sabendo-se um ser inacabado, mas inquieto na sua imcompletude(10).

O autor acredita que uma pedagogia que liberte os oprimidos não pode ser realizada por seus opressores, mas que deve ser elaborada por eles próprios, baseada na realidade dos oprimidos, que se proponha e comprometa a modificar sua situação, tendo como pilar principal a criticidade na educação: a prática aliada ao pensamento crítico são a pedagogia da liberdade, são a Pedagogia do Oprimido.

Notas de rodapé:

1. O ser mais aqui é entendido como uma busca contínua de auto-superação do indivíduo através da reflexão de tudo o que, de qualquer forma, tenha influência sobre ele, tendo como oposto o ser menos, que seria uma introjeção de idéias que aprisionam o indivíduo, minimizando-o de forma a torná-lo oprimido.

2. O autor considera que a desumanização seria, por parte do oprimido, a perda da criticidade, de sua condição natural de buscar sua plenitude, ciente de que jamais a alcançará. Quanto ao opressor, esta ocorre quando ele deixa de ver seu semelhante como “humano” e passa a tê-lo como “objeto” que deve servir aos seus propósitos, considerando isto um exercício de sua condição de ser mais, quando torna-se ser incapaz de considerar que os oprimidos merecem o que ele considera justo apenas para si e, por isso, desumano.

3. Aqui o autor nos traz conceitos de pseudo-generosidade, onde o opressor oferece aos oprimidos engodos na forma de subsídios (bolsas assistenciais, etc.) que são irrisórios no que tange à superação de suas reais necessidades, mas que auxiliam na manutenção da “ordem”, ou seja, da “alienação”. Freire diz que a verdadeira generosidade estaria num engajamento consciente e que busque, acima de tudo, sanar a origem dos problemas que afligem as classes desprestigiadas.

4. Neste momento, Freire toma o conceito dicotômico de Marx sobre objetivismo e subjetivismo. Entendemos como objetivismo tudo aquilo que está no plano físico, que é perceptível aos sentidos, ao passo que subjetivismo seria o plano das intenções, do pensamento.

5. Paulo Freire apresenta o oprimido como “hospedeiro” do opressor, fundindo-se a este e, a partir de determinado ponto, querendo igualar-se a ele.

6. Para o autor, o oprimido que supera sua condição sem passar pelo processo de libertação torna-se um opressor ainda mais violento que seu predecessor, tornando-se insensível às condições daqueles que, até pouco tempo, foram, são e serão violentados no processo de opressão.

7. “Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão”. (FREIRE, 2008 p. 58)

8. “Ninguém educa ninguém, ninguém se educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo”. (FREIRE 2008, p. 78)

9. Sobre letramento, ler ROJO, Roxane. Letramentos múltiplos, escola e inclusão social. São Paulo: Parábola, 2009.

10. “O homem, como um ser inconcluso, consciente de sua inconclusão, e seu permanente movimento de busca do ser mais”. (FREIRE, 2008 p. 82)

Referências Bibliográficas

Freire, Paulo. Pedagogia do Oprimido. São Paulo: ed. 47 Paz e Terra, 2008.

ROJO, Roxane. Letramentos múltiplos, escola e inclusão social. São Paulo: Parábola, 2009.

Eduardo Amorim
Enviado por Eduardo Amorim em 19/10/2009
Reeditado em 22/10/2009
Código do texto: T1875382
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