SATANÁS, de Mario Mendoza
Estupro, assassinato, possessão demoníaca, matricídio, infanticídio, sadismo, luxúria, arrogância, ganância, prepotência. Satanás (Planeta do Brasil, 2009) é um livro de cenas fortes. Tem de ser, pois para falar sobre o Mal nada melhor que mostrá-lo em todas as suas facetas. E mostrando o que há de pior no comportamento humano, o escritor colombiano Mario Mendoza levanta sutilmente diversas questões: De onde vem o Mal? Seria ele uma provocação de um ser espiritual invisível, uma capacidade latente em todo ser humano ou ainda os atos alheios vistos sob uma ótica particular? Nós o provocamos ou ele nos provoca? Se a procura pelas respostas a estas indagações já seria interessante por si só, quanto mais demonstrá-las, indo além da discussão meramente filosófica ou teológica, no cotidiano de um padre, um pintor, uma golpista e um ex-soldado. Pessoas que passaram por situações que poderiam ocorrer com o leitor, pois ninguém está imune ao que acontece (de ruim) na ficção, quando esta imita a vida real.
Mendoza intercala nas mesmas cenas violência, fé, vingança, amor, desespero, caridade, etc., e o seu estilo econômico e certeiro nas palavras remete a imaginação a situações propositalmente carregadas, impossíveis de não causarem uma impressão marcante. A alternação rápida nas três histórias paralelas traz agilidade à narrativa e a rapidez temporal torna o fluxo da história ágil: se em um parágrafo combina-se algo para fazer, seja em outra hora ou dia, no próximo parágrafo a ação já acontece. Esta técnica geralmente agrada os mais acostumados às sequências rápidas da tevê e do cinema.
Em uma das histórias, o padre Ernesto se revela um homem que luta para manter a fé diante de pressões, externas e internas. Externas, pois o padre encontra-se com os tipos mais sinistros, capazes de, senão abalar as crenças mais fortes, ao menos provocar sérias reflexões sobre a fé, a igreja e a maldade. Internas, pois a decisão de negar o sexo e uma família própria são martirizantes. O padre se pergunta como alguém que se autoconsidera impuro e pecador pode aceitar ser chamado de santo e dar conselhos com uma consciência tranquila? De longe, entre todos os personagens do livro, Ernesto é o que traz maior riqueza ao debate filosófico sobre o Mal que nos rodeia, e o poder deste sobre nós.
“- Vemos frequentemente genta má, Enrique, invejosos, assassinos, ladrões, enfim, há para todos os gostos. Mas são pouquíssimas as ocasiões nas quais temos a oportunidade de ver gente realmente boa possuída pelo mal contra a sua vontade.” (pg. 57)
A segunda história traz o pintor Andrés frente a duas decisões difíceis para continuar a sua arte: largar a namorada, por quem é apaixonado, e deixar de pintar retratos, por causa de uma recém adquirida habilidade fantástica. Mas, estaria a arte acima da vida real e deveria suplantá-la? Quanto um pintor, escultor, músico ou escritor estariam dispostos a sacrificar pela fama e reconhecimento, mesmo que posteriores? Assim como ocorre com o padre Ernesto, a narrativa sobre Andrés revela aspectos da literatura fantástica, tão famosa na tradição colombiana.
A terceira história paralela é a de Maria, uma órfã de vida dura desde a infância, porém honesta. Quando convidada a aplicar golpes no estilo “boa noite Cinderela” em homens ricos, vê a oportunidade de mudar de vida. Mas acaba sofrendo as conseqüências por se envolver em um ambiente que nunca foi o seu, fingindo ser quem não é. A reflexão gerada pelos infortúnios da moça e a atitude que ela toma diante destes, leva o leitor a raciocinar se um ato seria mau quando praticado contra a nossa pessoa, mas deixaria de sê-lo quando nós o praticamos? Estaria certo Sartre ao dizer que “o inferno são os outros”?
O personagem principal, e único não-fictício, aparece somente na metade do livro, e apenas em dois capítulos curtos, mas decisivos, pois ele é o elo entre todos os outros. Campo Elias é ex-combatente do Vietnã e não consegue adaptar-se à sociedade colombiana em que vive. Apesar de ocupar o seu tempo dando aulas particulares de inglês, as suas constantes brigas com a mãe idosa e com os vizinhos o tornam mais misantropo e misógino a cada dia. O fascínio de Campo Elias pelo homem-duplo, que possui dentro de si o bem e o mal, retratado na história de O Médico e o Monstro, dá vida ao terror da ficção de Stevenson.
“Não sei o que acontece comigo. Vejo que as pessoas têm amigos, namoradas, colegas de trabalho, e me pergunto como fazem para se relacionar e fazer parte do grupo social. Minha sensação é o contrário disso: estou por fora, flutuante, periférico, e observo da minha posição distante o comportamento daqueles que me rodeiam e com os quais não me identifico. Vejo-os como bichos de outra espécie, animais estranhos cujo comportamento não para de me surpreender.” (pg. 116)
O título do livro pode assustar os religiosos mais conservadores, porém não deveria. Conhecer um problema que assola a todos (o Mal) e discuti-lo deveria ajudar tanto quanto um jogador de xadrez que estuda as jogadas do adversário. Contudo, tratar o Mal, ou qualquer outro assunto sério, como um tabu, não beneficia a ninguém. A tradução e revisão do livro são primorosas e, tirando um pequeno erro que só os mais fanáticos pela língua portuguesa perceberiam (um “obrigado” quando deveria ser “obrigada” na pg. 189), demonstram um jeito moderno e descomplicado (e porque não dizer nipônico?) de aprender o que mudou com a nova ortografia, sem esforço algum.
Acima dos dramas pessoais retratados acima, faz-se uma crítica direta aos problemas e a cultura colombiana, como a sujeição dos governantes do país ao controle externo em troca de comissões e subornos, o que acaba lembrando muito um certo país vizinho deles. E, vale ressaltar, o livro, apesar de trazer personagens fictícios, se baseia em um fato real ocorrido em 1986, em Bogotá, que mais tarde ficou conhecido como “O Massacre de Pozetto”. A adaptação para o cinema, Satanás (Colômbia, 2007), ganhou vários prêmios e traz poucas diferenças, a principal talvez seja a exclusão total da história do pintor Andrés, provavelmente para deixar a narrativa cinematográfica mais ágil e menos fantástica.
(publicado originalmente em 16.10.2009 em www.jefferson.blog.br)