CÂNDIDO OU O OTIMISMO
Cândido, ou O Otimismo, ("Candide, ou l'Optimisme") (1759) é uma comédia romântica de autoria do filósofo iluminista Voltaire. Voltaire jamais admitiu abertamente ter escrito o controverso Cândido; o trabalho foi assinado por um pseudônimo: "Monsieur le docteur Ralph", literalmente, "Senhor Doutor Ralph".
François-Marie Arouet (Paris, 21 de novembro de 1694 — Paris, 30 de maio de 1778), mais conhecido pelo pseudônimo Voltaire, foi um escritor, ensaísta, deísta e filósofo iluminista francês conhecido pela sua perspicácia e espirituosidade na defesa das liberdades civis, inclusive liberdade religiosa e livre comércio.
O mote do livro Cândido ou o Otimismo é a filosofia de Gottfried Wilhelm von Leibniz (Leipzig, 1 de julho de 1646 — Hanôver, 14 de novembro de 1716), filósofo, cientista, matemático, diplomata e bibliotecário alemão. Segundo este filósofo, vivemos no melhor dos mundos possíveis. E é exatamente o que Voltaire quer refutar por toda a extensão de sua obra.
Cândido era discípulo de Pangloss (nome inventado por Voltaire para designar Leibniz), cria em tudo quanto o seu mestre dizia, apesar de todos os infortúnios pelos quais passava. Através da história de Cândido, Voltaire exercita sua metralhadora crítica e não poupa nenhuma instituição organizada da sua época.
Logo nos capítulos iniciais, o autor já faz uma ácida crítica à metafísica dominante de seu tempo chamando Cândido de “jovem metafísico, muito ignorante das coisas deste mundo” na parte em que o rei dos búlgaros concede-lhe clemência e o livra da morte, isso após ser chicoteado até ficar com os músculos e nervos à mostra.
Voltaire critica fortemente a tendência dos europeus para as guerras e nos seus escritos é possível perceber que a ele as lutas por terras, por riquezas e por poder são absurdas e somente fazem deixar milhares de pessoas mortas, mutiladas, crianças abandonadas, mulheres estupradas e todas as desgraças inerentes às guerras.
Não deixa também de lembrar que toda a barbárie é cometida conforme o direito vigente, ou seja, o que era para garantir a harmonia, a paz e a concórdia entre os homens, justifica e legitima seus atos violentos, o que para o autor soa como um enorme contra-senso.
Junto a toda essa avalanche de críticas, nosso autor não poderia poupar a instituição que ao mesmo tempo era a mais respeitada e temida, mas também a mais contraditória e cruel. Em seu tempo ainda eram levados à fogueira os hereges; pessoas que ousavam desafiar as convicções cristãs então vigentes. Não podia Voltaire, com a mente brilhante que tinha, ver tamanha crueldade e hipocrisia travestidas de fé e de vontade de Deus sem denunciá-las.
A “santa” Igreja Católica Apostólica Romana fez milhares e milhares de vítimas, e o pensamento da época ainda sofria muito a contaminação de um cristianismo às avessas, que julgava, torturava, matava, vendia indulgências e estava acima de todas as coisas, pois a eles pertencia o monopólio da palavra de Deus, a eles era dado o poder sobre a vida e a morte das pessoas. Bem diria Nietzsche, no vindouro século XIX que “o evangelho morreu na cruz”, pois somente Cristo foi um autêntico cristão. Esses que invocam seu nome não passam de pretensas cópias ridículas de uma tentiva frustrada de um comportamento ideal, que é como supostamente procedia Jesus Cristo.
Tanto era a decepção de Voltaire com a religião, que em seu texto cria um pagão mais benevolente que os cristãos da época. Tiago, o anabatista, que ajudou Cândido em vários episódios. E não é só na ficção que existem pessoas não religiosas que sabem bem proceder com decência e ética. O que há de mais imoral do que proceder bem apenas por medo dos castigos? (Digesto D.1.1.1.1, Ulpiano). Por medo de uma danação eterna?
Voltaire aponta para o que era tido como banal, não deixando de ver na escravidão a maldade do homem que subjuga o seu semelhante. Numa passagem descreve os horrores a que eram submetidos os negros na América para que os europeus pudessem usar o açúcar. Açoites, mutilação de membros, e tudo, absurdamente, legitimado pelo direito vigente. A perspicácia de Voltaire não para por aí. Percebe ele também que muitas vezes os criados são mais inteligentes e articulados que os seus amos. Que era o caso entre Cândido e Cocambo, respectivamente amo e criado.
No capítulo que fala sobre a cidade na América chamada Eldorado, lugar em que as casas e muitas outras coisas eram repletas de ouro, prata e pedras preciosas, e, ao contrário do esperado por nossa cultura, seus habitantes não davam o valor que os europeus atribuem a essas coisas. Ou seja, não há um valor intrínseco nas coisas, mas é o homem que valora, este é que atribui valor às coisas e aos fatos.
Quebra-se também o eurocentrismo, pois o autor não deixa de mostrar uma cidade de pessoas virtuosas, bondosas e desapegadas, que não são europeias. Em Eldorado não há religiões, não há padres, não levam ninguém à fogueira, não há disputas nem orações, mas somente agradecimento. Voltaire cria uma cidade idealizada para demonstrar o absurdo em que está imersa a civilização europeia do século XVIII.
Cândido viaja por todo o mundo e por onde passa, menos em Eldorado, só encontra a maldade, a cobiça, a deslealdade, a crueldade e todo tipo de comportamento infame. A crítica de Voltaire é muito pungente, pois ele não apenas fala do homem do seu tempo e do seu país, mas do homem desde tempos imemoriais, de todos os tempos e lugares, desde seu surgimento até a sua inafastável extinção, do homem atemporal. Pensa sobre questões que os homens primitivos já pensavam e que nós no século XXI ainda nos debatemos sem respostas definitivas.
Em suma, o melhor dos mundos possíveis é uma ficção de um homem ingênuo. Voltaire influenciou Nietzsche e Schopenhauer, este último é considerado o verdadeiro antípoda de Leibniz. Sua filosofia é considerada pessimista e poderia muito bem servir de fundo para as aventuras de Cândido.
Contudo, Schopenhauer não é pessimista porque tem prazer nisso, a realidade dramática da vida humana confirma a todo tempo o seu caráter trágico, sofredor e finito, como é possível confirmar na ficção verossimilhante de Voltaire.
A obra em questão apenas mostra que o universo, os astros, Deus ou quaisquer outras entidades são indiferentes ao nosso destino humano. Não nos controlam ou interferem em nossas pequenas vidas. Começa aqui a surgir uma dúvida radical, uma franca desconfiança quanto à possibilidade metafísica. Ideia inusitada dentro de um pensamento preponderantemente antropocêntrico e cristão.
Termino com a frase de Martin, personagem do livro, que parece sintetizar a ideia da obra em questão: “O homem nascera para viver nas convulsões da inquietude ou na letargia do aborrecimento”.