A ILUSÃO AUTOBIOGRÁFICA (Texto de Wander Miranda)

O autor de "A Ilusão Autobiográfica", Wander Melo Miranda é professor titular de teoria da literatura na UFMG e supervisor do projeto de reedição da obra completa de Graciliano Ramos.

Miranda constrói seu texto com base em "vozes" de autores como Maurizio Catani, Michel Foucault, Silviano Santiago, Lejeune, Starobinski, Sêneca, entre outros, o que requer uma leitura mais apurada a fim de favorecer seu entendimento.

No texto, Wander Miranda discute as relações de diferenças e semelhanças entre enunciados com as mesmas particularidades. Inicialmente ele conceitua autobiografia como sendo a “vida de um indivíduo escrita por ele mesmo”.

O texto cita considerações de Juliete Raabe para pois segundo a autora citada, a autobiografia surge da necessidade do indivíduo expor sua ideologia numa espécie de manifestação pela perda ou enfraquecimento da identidade em decorrência da incerteza que é o momento presente na relação “eu-outro”.

Essas incertezas surgiram no século XIX com “o fim da hegemonia ocidental e do colonialismo; a deterioração da integridade do eu provocada pela fragmentação inerente à estrutura dos meios individuais; o freudismo, que realça o embate das forças do consciente e do inconsciente, do desejo com a sua realização”, entre outros. É como se a partir daquele momento o sujeito passasse a “se olhar com outros olhos”, trazendo à tona um narcisismo até então não revelado.

Foucault ressalta que a missiva(carta) dá lugar ao exercício pessoal porque age sobre aquele que a envia e sobre quem a recebe. “Escrever é mostrar-se, fazer-se ver e fazer aparecer a própria face diante do outro”. Logo, a correspondência nada mais é que uma forma de alguém permitir a outrem que perscrute sua intimidade, favorecendo a reciprocidade.

Segundo Miranda, “o objeto profundo da autobiografia é o nome próprio, o trabalho sobre ele e sobre a assinatura”. Significa dizer que o que está em jogo é a exposição da intimidade por ele mesmo.

Outra definição possível para autobiografia é “narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando focaliza especialmente sua vida individual, sobretudo a história de sua personalidade”.

O texto autobiográfico revela a relação de um indivíduo com os fatos que permeiam sua história pregressa. Ao escrevê-lo, o autor oferece a sua versão, o seu olhar sobre sua vida. É como se ele “saísse de si” para observar e selecionar os principais acontecimentos de sua existência, de forma que o leitor, se o quiser, possa apurar a veracidade dos fatos, embora não o faça em respeito a um “pacto” com o autor. Entretanto, pode ocorrer deslizes do autor ao ficcionar o texto, de modo a privilegiar e/ou valorizar excessivamente alguns fatos, numa tentativa de elevar e/ou mentir sobre sua imagem perante o seu público leitor.

Conforme Miranda, “escrever uma autobiografia justifica-se apenas se houver uma intervenção, mudança ou transformação radical na vida do autor, pois, do contrário, os fatos narrados seriam apenas relatos de eventos anteriores e exteriores que não acrescentariam nada e nem tampouco mostraria a diversidade do eu reevocado em relação ao eu atual”.

A autobiografia diferencia-se de outro gênero textual, o diário, pelo fato de o autor do mesmo, como o próprio nome revela, datar precisa e cronologicamente os diversos momentos de sua vida, conforme os fatos ocorrem, estabelecendo um tempo mínimo entre ocorrência e registro, enquanto que o autobiógrafo recorre ao retrospecto seletivo da memória para compor seu texto. No primeiro caso o objetivo é lançar um olhar reflexivo sobre si mesmo, revelando o seu eu, enquanto que no segundo o intuito é guardar/reter os principais e fugazes momentos de uma vida.

Outros gêneros literários como o autorretrato e o memorial também mergulham na individualidade do autor, porém de diferentes ângulos: o autorretrato tem um caráter lapidar. O autorretratista experimenta os extremos entre o vazio e a ausência de si e depois o excesso que é deflagrado no processo da escrita, enquanto que nos textos memorialistas a narrativa da vida do autor entrelaça-se aos acontecimentos por ele testemunhados.

Infere-se do texto “A ilusão autobiográfica”, que a diferença entre os vários estilos de textos que propõem-se a discorrer sobre o autor por ele mesmo, são marcados por uma linha divisória muito tênue. A distância e a proximidade são definidas pelas marcas encontradas na abordagem do autor, pelo grau de subjetividade que ele confere aos escritos e pelo tratamento dado ao texto.

REFERÊNCIAS

MIRANDA, Wander Melo. Corpos Escritos: Graciliano Ramos e Silviano Santiago. São Paulo, Ed. USP; Ed. UFMG, 1992.