FÁBULAS PERVERSAS

Dimas Carvalho, em seu livro de contos Fábulas Perversas, faz um mergulho na intimidade do ser humano, expondo suas complexidades, carências, medos, desvios e toda sorte de emoções, utilizando-se de uma percepção criativa privilegiada, sem se deter às amarras da lógica, construindo numa dimensão atemporal e onírica suas estórias. O autor trabalha ao mesmo tempo os elementos da lucidez e da insanidade, da realidade e da fantasia, do material e da abstração, da consciência e da letargia, expondo suas personagens a situações inusitadas, provocando-lhes reações insólitas e inesperadas.

Uma característica marcante da obra é a desumanização, quando animais e seres inanimados tomam o lugar do homem ou o próprio homem cede esse lugar, zoomorfizando-se, por exemplo, dentro das narrativas. Muitas destas personagens são simples imagens, representações, impressões. Em Fábulas Perversas, é como se as personagens fossem apenas invólucros, recipientes de fluxos de sentimentos.

Há também uma evidente carência afetiva, emocional das personagens, o que as leva a tomarem atitudes extremas, desesperadas, como podemos perceber em “Sertão”, onde atendendo a um pedido irredutível da mãe, os filhos matam um inimigo apenas para presenteá-la com as orelhas dele. O mesmo acontece em “Zé tatu”, onde para agradar o coronel que a adotou, a personagem de mesmo nome do conto comete parricídio sendo depois assassinada pelos próprios irmãos.

As narrativas se processam quase sempre em cenários ilimitados ou etéreos, sendo apenas adereços, sem maior relevância do que a relegada ao cenário de um sonho, uma visão, um delírio. Quando não, as personagens são confrontadas com um mundo tomado pela sordidez, com valores pervertidos e que, diante desta realidade, ou o homem cede aos assédios deste meio corrompido, ou se isola refugiando-se em seu íntimo numa tentativa de resguardar-se.

Logo no primeiro conto “Desaniversário” nos deparamos com a presença de animais e seres inanimados protagonizando um diálogo cujo objeto é o tempo, trabalhado de maneira metafórica, quase poética. O relógio torna-se a problemática central do conto por ser a confirmação da passagem do tempo, do envelhecer. Em “O Manuscrito”, o personagem principal Epaminondas encontra sua desdita quando movido pela ambição à imortalidade, o derradeiro triunfo do homem sobre o tempo e sobre o seu maior temor: a morte. Já em “Aqui do meu quarto” o personagem-narrador diz ser capaz de viajar no tempo e no espaço, além de fazer muitas outras coisas humanamente impossíveis.

Enquanto na primeira e na segunda narrativas citadas as personagens discutem maneiras de destruir o tempo ou procuram formas de subjugá-lo, na terceira narrativa citada o autor nos deixa uma sugestão menos impraticável ou perigosa: utilizarmos a imaginação como passaporte para todos os tempos, espaços e dimensões que desejemos, pois somente no universo fantástico o tempo não importa, não determina, não deteriora. Somente dentro deste universo o homem se sente seguro para ter qualquer idade, assumir qualquer forma, ser qualquer coisa, e não apenas um escravo de segundos, minutos, horas.

A temática dos contos gira em torno de dois eixos: o social e o existencial. O conflito do eu perante o mundo e do eu diante do eu. “Os quatro dragões azuis” é uma metáfora para a colonização, uma alegoria que demonstra a natureza desbravadora, dominadora e predadora do ser humano. Já em “Branca de Neve e os sete gigantes” o autor faz uma crítica à incapacidade do ser humano de decidir o que é melhor para si mesmo e para os outros, o que acabará inevitavelmente resultando na imbecilidade descrita em “As pérolas e os porcos” e, por fim, no exílio (voluntário ou não) como o apresentado em “Aqui, do meu quarto”, quando a apatia chega ao seu grau limite, e as pessoas passam a residir, resistir e, por que não, existir em mundos particulares construídos em suas próprias mentes.

O paradoxal é, sem dúvida, um dos elementos mais instigantes destas narrativas, as personagens em geral apresentam uma fragilidade e uma sensibilidade extraordinárias, em contraste com a aspereza, a violência, a vilania de um mundo que, se atormenta, não consegue destruir o bem mais precioso do ser humano que é a capacidade de sonhar.

José Dimas de Carvalho Muniz nasceu em Acaraú, Ceará, em 1964. Licenciado em Letras pela Universidade Federal do Ceará. Professor de Teoria da Literatura na Universidade Vale do Acaraú, em Sobral, ele já publicou livros diversos de poesia, contos e até um ensaio bibliográfico sobre seu avô. Foi vencedor de vários prêmios literários, como o Prêmio Literário Cidade do Recife (1996 e 2002), Prêmio Ideal Clube de Literatura (2001 e 2002) e Prêmio Literário Cidade de Fortaleza (2001, 2003 e 2004).

Como todo artista influenciado pelo surrealismo, Dimas Carvalho além de rejeitar os valores ditados pela burguesia, cria obras repletas de humor (negro), sonhos, utopias e qualquer informação aparentemente ilógica, fantástica ou absurda, seguindo a teoria freudiana de que o homem deve libertar sua mente da lógica imposta pelos padrões comportamentais e morais estabelecidos pela sociedade e dar vazão aos sonhos e as informações do inconsciente.

Assim como Franz Kafka que nunca permitiu a suas personagens o alívio de voltar à realidade depois de um sonho perturbador, Dimas Carvalho deixa suas personagens perderem-se e encontrarem-se em uma infinidade de delírios pungentes, como se sempre em vão procurassem a porta de ligação entre o real e o imaginário, estando no limiar de todos os paradoxos do universo que há na mente humana.

Referência Bibliográfica:

CARVALHO, Dimas. Fábulas Perversas. Acaraú. Expressão Gráfica, 2003.

Caterine Araújo
Enviado por Caterine Araújo em 10/08/2009
Código do texto: T1746610