Do delito e das penas(Cesare Beccaria).O Por que da existência do direito de punir?
Consultemos, pois, o coração humano; acharemos nele os princípios fundamentais do direito de punir. Ninguém faz gratuitamente o sacrifício de uma porção de sua liberdade visando unicamente ao bem público. Para satisfazer as necessidades que se tornavam cada dia mais numerosas, os primeiros homens, até então selvagens (será que ainda são?), se viram forçados a reunir-se. Formadas algumas sociedades, logo se estabeleceram novas, na necessidade em que se ficou de resistir as primeiras, vivendo em um contínuo estado de guerra entre si. As leis foram as condições que reuniram os homens, a princípio independentes e isolados sobre a superfície. Antes, os homens possuíam a liberdade de fazer o que bem entendem (isso existe até hoje, mas dependendo do ato, responde pelas consequências), mas cansados de só viver de temores e de encontrar inimigos, fatigados de uma liberdade que a incerteza de conservá-la tornava inútil, tiveram que sacrificar uma parte dessa liberdade para gozar do resto com mais segurança. A soma de todas essas porções de liberdade, sacrificadas assim ao bem geral, formou-se a soberania da nação e aquele que foi encarregado pelas leis do depósito das liberdades e dos cuidados da administração foi proclamado o soberano do povo.
Não bastava, porém, ter formado esse depósito; era preciso protegê-lo contra as usurpações de cada particular, pois tal é a tendência do homem para o despotismo, que ele procura sem cessar, não só retirar da massa comum sua porção de liberdade, mais ainda usurpar a dos outros.
Eram necessários meios sensíveis (porque a experiência fez ver quanto a maioria está longe de adotar princípios estáveis de conduta),e bastante poderosos para comprimir esse espírito despótico,que logo tornou a mergulhar a sociedade no seu antigo caos.Esses meios foram as penas estabelecidas contra os infratores das leis.Quando as paixões são vivamente abaladas pelos objetos presentes,os mais sábios discursos,a eloquencia mais arrebatadora,as verdades mais sublimes,não passam,para elas,de um freio impotente que logo despedaçam.
Por conseguinte, só a necessidade constrange os homens a ceder uma parte de sua liberdade; daí resulta que cada um só consente em pôr no depósito comum a menor porção possível dela, isto é, precisamente o que era preciso para empenhar os outros em mantê-lo na posse do resto.
O conjunto de todas essas pequenas porções de liberdade é o fundamento do direito de punir. Todo exercício do poder que se afastar dessa base é abuso e não justiça; é um poder de fato e não de direito; é uma usurpação e não mais um pode legítimo.
Dos delitos e das penas(1764),Cesare Beccaria(1738-1794),
Versão para eBook,Agosto de 2001.