A CRISE DAS CIÊNCIAS E SEU ESTADO ATUAL - Uma visão sobre a obra “Um Discurso sobre as ciências” de Boaventura de Souza Santos.
Boaventura de Souza Santos é sociólogo de escol, reconhecido internacionalmente por pensar a ciência social, a influência do conhecimento científico no cotidiano, o movimento estudantil face às revoluções sociais e a busca do saber. Voltado para a questão do aprimoramento intelectual da humanidade, não poderia deixar de ministrar quanto à crise metodológica-científica na sociedade hodierna. Isso se dá devido uma passagem do método estritamente positivo e marcado pelo mecanicismo, que ao ver do autor português gerou cientistas absolutamente específicos e não interdisciplinares, bem como um povo leigo, no extremo da generalização. O livro escrito a partir de um discurso de abertura das aulas da Universidade de Coimbra entre 1985 e 1986 traça, portanto, o percurso do estudo científico ao longo da história até chegar nos dias atuais, justificando-os.
Vê-se –conforme o discurso que ainda soa como muito atual- que há uma discrepância sobre o estudo das ciências na sociedade. Tal fato foi o estopim para que o autor ministrasse o tema. Também corroborou para este alvo, as “questões ingênuas” proferidas por Jean Jaques Rousseau em seu “Discours sur les sciences et les arts” (1750), onde questiona a influência da ciência no dia-a-dia e sua praticidade, dando resposta negativa às indagações. Assim, percorre as estradas conflituosas do conhecimento, perpassando a saída da Revolução científica com Copérnico, Galileu e Newton, para o “Século das Luzes”, o século XVIII, onde se acentuou um método para as ciências sociais influenciadas pelas naturais.
As hipóteses de pesquisa que norteiam o trabalho sob exame são esquematizadas em cinco pontos. Argúe que deixa de fazer sentido a diferenciação entre ciências sociais e naturais, sendo aquelas catalisadoras destas. Mesmo propondo que o positivismo ou o materialismo deve ser totalmente rejeitado no estudo das ciências sociais não é apresentada uma nova teoria geral sobre o método, mas uma mudança de ideologia. Dessa forma, quanto mais o entendimento de uma visão holística sobre a ciência seja aceito tanto mais desaparecerá a distinção entre conhecimento científico e vulgar.
Demonstrando uma estrutura sistêmica do problema proposto, e para acurar o entendimento, a obra se pauta em três quesitos básicos: a ordem hegemônica; os sinais da crise da hegemonia, e o perfil da nova ordem científica emergente. É assente que a novel racionalidade científica é um modelo totalitário querendo apregoar muitas vezes uma regra imutável no campo social olvidando-se de sua subjetividade. Desacredita as evidências imediatas e exacerba a experiência ordenada (novum organum). Foi Déscartes quem iniciou esse conceito que acabou sendo exasperado, de que as idéias confluem para as coisas, e não o inverso, tal deu origem à metafísica. Também numa ótica bem linear, Galileu pensou o livro da natureza como inscrito em caracteres geométricos. Esse pensador contribuiu para o entendimento de que é relevante apenas o que se quantifica, já Déscartes teve a tese de “dividir para resolver”, entretanto, ambas privilegiam o olhar racional, desligado das emoções.
Desde à ascensão burguesa, com a ideia de “mundo-máquina” o mecanicismo vem sendo incorporado pelos mais variados campos do saber, numa junção do estado positivo de Comte, da sociedade industrial de Spencer e da solidariedade orgânica de Durkheim que via os fatos como coisas. Também influenciou sobremodo o campo das ciências sociais, especialmente a sociologia do Direito, Montesquieu, quando equipara as leis humanas às da natureza. Daí também emerge a física social, um conhecimento universalmente válido, estudando fenômenos sociais como se naturais fossem.
Contudo, a despeito dos estudos profundos quanto à logicidade das ciências sociais, jamais poder-se-ia julgá-la como objetiva, dadas constantes mudanças das organizações humanas. É nessa esteira que surge a “crise do paradigma dominante” preconizada por Einstein e a Teoria da relatividade que explica a simultaneidade de acontecimentos no mesmo lugar e em locais distante, nem sempre obtendo-se o mesmo resultado. Essa tese ligada à mecânica quântica acabou ocasionando uma revolução cientifica. Pois, se até os fenômenos físico-matemáticos poderiam sofrer alterações, quanto mais os sociais.
Ora, ante o exposto, sob o respaldo da obra em comento, o paradigma dominante, do estudo das ciências sociais sob o prisma das naturais, sofre profunda e irreversível crise – vez que o próprio aprofundamento do conhecimento permitiu a percepção da fragilidade de suas bases -. Como nova proposta ao sistema é apresentada uma forma de estudo das ciências sociais aberta à intervenção consistente na sociedade, visando, inclusive, a participação do povo e o não desprezo ao inconsciente coletivo, ou conhecimento vulgar, quer desmistificando, quer aperfeiçoando ou até mesmo incorporando à ciência.
Referência Bibliográfica
SANTOS, Boaventura de Souza. Um discurso sobre as ciências. Edições Afrontamento. Pt. 13ª Ed. 2002.