Pedagogia da autonomia
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 29 ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
Freire (1996), ao discorrer sobre o papel do docente como transformador de mentalidades e instigador do pensamento crítico no discente, ressalta a interação entre aprender/ensinar, sendo tais atos uma conjunção ao invés de dicotomias. Educar não é transmitir conhecimentos, visto ser o homem um ser “inconcluso”; educar é antes de tudo propiciar argumentos, dúvidas, curiosidade crítica.
A falsa idéia de que a tecnologia tudo alcança e tudo abarca vem comprometendo os rumos da educação por um lado, quando pressupõe que o homem é um ser voltado exclusivamente às exigências do mercado capitalista, um ser que vive para a “produção e consumo de bens”. Isto pode ser facilmente observado pela ênfase que se dá aos cursos técnicos em detrimento das graduações, do status que se dá às exatas em detrimento das humanas.
Contrário à educação bancária, em que o professor supõe “transferir informações” ao aluno, e muitas vezes o faça de forma a tolher a imaginação, a criatividade e o senso crítico do corpo discente, já que utiliza tal “mestre” os métodos decorativos, Freire (1996, p.22-23) aponta:
Se, na experiência de minha formação, que deve ser permanente, começo por aceitar que o formador é o sujeito em relação a quem me considero o objeto, que ele é o sujeito que me forma e eu, o objeto por ele formado, me considero como um paciente que recebe os conhecimentos-conteúdos-acumulados pelo sujeito que sabe e que são a mim transferidos. Nesta forma de compreender e de viver o processo formador, eu, objeto agora, terei a possibilidade, amanhã, de me tornar o falso sujeito da “formação” do futuro objeto de meu ato formador. É preciso que pelo contrário, desde os começos do processo, vá ficando cada vez mais claro que, embora diferentes entre si, quem forma se forma e re-forma ao formar e quem é formado forma-se e forma ao ser formado. É neste sentido que ensinar não é transferir conhecimentos, conteúdos, nem formar é ação pela qual um sujeito criador dá forma, estilo ou alma a um corpo indeciso e acomodado. Não há docência sem discência, as duas se explicam e seus sujeitos apesar das diferenças que os conotam, não se reduzem à condição de objeto, um do outro. Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender (...).
Para que haja educação, deve haver diálogo, pois onde impera monólogo impera a opressão e o fracasso dos menos “aptos”, em detrimentos de produções intelectivas, do estudo das essências humanas por meio da filosofia, sociologia, filologia e tantas ciências importantes para o entendimento “da vida”. A amizade com o saber é algo que advém da troca de experiências, da humildade para reconhecer as falhas, do cuidado que se tem para não cair em clichês e automatismos. Como observa, a esse respeito, Freire (1996, p.135):
Como professor não devo poupar oportunidade para testemunhar aos alunos a segurança com que me comporto ao discutir um tema, ao analisar um fato, ao expor minha posição em face de uma decisão governamental. Minha segurança não repousa na falsa suposição de que sei tudo, de que sou o “maior”. Minha segurança se funda na convicção de que sei algo e de que ignoro algo que se junta a certeza de que posso saber melhor o que já sei e conhecer o que ainda não sei. Minha segurança se alicerça no saber confirmado pela própria experiência de que, se minha inconclusa, de que sou consciente, atesta, de um lado, minha ignorância, me abre, de outro, o caminho para conhecer.
Educar é “educar-se” e desconstruir tabus, preconceitos, aceitando o novo, analisando o tradicional, é decidir quebrar barreiras e correr riscos, não para marcar a história como “revolucionário” ou para que vejam neste indivíduo desafiador um ser propício à idealização e às utopias, mas acreditando de verdade nas transformações estruturais da sociedade por meio da “palavra”, da luta sem uso de material bélico. Educar é deixar legados para a humanidade no sentido de refletir acerca dessa “humanidade”. Conforme Freire (1996, p. 30-31):
Por que não discutir com os alunos a realidade concreta a que se deva associar a disciplina cujo conteúdo se ensina, a realidade agressiva em que a violência é a constante e a convivência das pessoas é muito maior com a morte do que com a vida? Por que não estabelecer uma “intimidade” entre os saberes curriculares fundamentais aos alunos e a experiência social que eles têm como indivíduos? Por que não discutir as implicações políticas e ideológicas de um tal descaso dos dominantes pelas áreas pobres da cidade? Porque, dirá um educador reacionariamente pragmático, a escola não tem nada que ver com isso. A escola não é partido. Ela tem que ensinar os conteúdos, transferi-los aos alunos. Aprendidos, estes operam por si mesmos.
Os homens são autônomos quando têm liberdade de expressão, sensibilidade para o diálogo, cabeça aberta às mudanças, e coragem para enfrentar obstáculos com firmeza de convicções, todavia aceitando sua “natureza falha”. Tal autonomia só é possível numa conjunção entre direitos e deveres, aprendizado e ensinamento, razão e sensibilidade, amor e paixão pelos próprios atos e pela existência do “próximo”.
As falhas de comunicação são as vilãs, uma vez que produzam discórdias, opressão, marginalizados. E é notável a deficiência do ato comunicativo nas ações mais cotidianas em que deveria reger o direito de cidadania. Por exemplo, os atendentes de “serviços ao consumidor” são “treinados” (adestrados) a nunca pensar, daí sempre passarem as reclamações a numerosas ramais, de modo a frustrar as reclamações do cliente, que chega à conclusão de que não será ouvido por ninguém. Situações como estas são lugar comum na lei do consumo, em que se trabalha numa lógica sádica, de fatigamento do próximo para satisfação dos próprios desejos. Quanto aos discursos ideológicos, ressalta Freire (1996, p.132):
É exatamente por causa de tudo isso que, como professor, devo estar advertido do poder do discurso ideológico, começando pelo que proclama a morte das ideologias. Na verdade, só ideologicamente posso matar as ideologias, mas é possível que não perceba a natureza ideológica do discurso que fala de sua morte. No fundo, a ideologia tem um poder de persuasão indiscutível. O discurso ideológico nos ameaça de anestesiar a mente, de confundir a curiosidade, de distorcer a percepção dos fatos, das coisas, dos acontecimentos.
Ratificando de forma sucinta o que foi já dito, nas palavras de Freire (1996), ensinar: exige rigorosidade metódica, pesquisa, respeito aos saberes dos educandos, criticidade, estética e ética, corporeificação das palavras pelo exemplo, risco, aceitação do novo e rejeição a qualquer forma de discriminação, reflexão crítica sobre a prática, reconhecimento e assunção da identidade cultural, consciência do inacabamento, reconhecimento de ser condicionado, respeito à autonomia do ser do educando, bom senso, humildade, tolerância e luta em defesa dos direitos dos educadores, apreensão da realidade, alegria e esperança, convicção de que a mudança é possível, comprometimento, compreender que a educação é uma forma de intervenção no mundo, liberdade e autoridade, tomada consciente de decisões, saber escutar, reconhecer que a educação é ideológica, disponibilidade para o diálogo, querer bem aos educandos.
É fundamental ao educador a interpretação dos silêncios e das palavras, da entonação destas palavras ao serem proferidas pelos alunos de modo a interagir com esse corpo discente, e de forma mais humana que “investigadora” penetrar na realidade deste aluno, sem entrar como um agente social, mas aproveitando espaços de tempo significativos para o combate a discriminação, colocada de maneira por vezes “sorrateira e medíocre” nos discursos das pessoas: “Maria é negra, mas é uma boa profissional”, “Esse sujeito é um bom cara. É nordestino, mas é sério e prestimoso”, “Você, desempregado, seja grato. Vote em quem ajudou você. Vote em fulano de tal”.
O professor precisa professar junto aos alunos a fé na educação, na cultura, na humanização, na criação conjunta, no pronunciamento do mundo com palavras que tenham som e sentido ao mesmo tempo. A ontologia, a política, a ética, a epistemologia, a pedagogia entre outras ciências que se prestam ao estudo das relações humanas, não precisam apenas ser “estudadas”, antes precisam ser vividas, tocadas, sentidas e debatidas.