Metamorfose: Aspectos Metafóricos do Adoecimento Psíquico e a Relação Familiar
por:
Aryane Martins,
Cleber Rodrigues
e Núccia Gaigher
“Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregório Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco inseto.” KAFKA (1912)
O presente relatório refere-se à renomada obra de Franz Kafka, intitulada “Metamorfose” (1912), apresentada como conteúdo da disciplina Psicopatologia II, que traz referências metafóricas sugerindo forte possibilidade de adoecimento psíquico do personagem central e discute a complexidade da relação familiar e a necessidade da reestruturação dos papéis desempenhados, além de retratar o convívio familiar alterado com este “ser transformado”que acaba produzindo um afetamento nesta relação.
O livro narra a experiência mais complexa e “estranha” vivenciada por Gregório Samsa, mas antes de falar sobre essa experiência, é preciso conhecer um pouco do perfil de sua família que era composta pelo pai, a mãe e a irmã Grete, sendo que também compuseram o cenário literário a criada Ana (ficou na casa somente até saber do que estava acontecendo por lá), o chefe de escritório, o patrão (ficou apenas nas citações, nas referências que lhe eram direcionadas como um grande opressor), 3 (três) hóspedes, e uma empregada que surge na última parte do livro. Todos, de alguma forma, contribuíram à sua maneira contextual com o desenrolar do enredo fatigante e ao mesmo tempo espetacular que é toda a obra acima citada.
Com a ruína de seus negócios, o pai de Gregório, antes ativo embora envelhecido, tornou-se um inválido que vivia à custa do filho. Vivia de pijama, o que denotava desleixo consigo próprio, desamor com sua imagem e auto-estima baixa.
A mãe era uma adoentada que sofria com a asma e sentia-se incapaz e dependente. Todos esses elementos favoreceram seu abatimento e até uma certa anulação materna em muitos momentos desta complexa relação familiar.
A irmã, ainda muito jovem com seus 17 (dezessete) anos; era uma moça amedrontada que viva apenas para as atividades sem grande importância próprias da sua idade. Também era uma dependente do sacrifício do seu irmão Gregório, pois a consideravam jovem demais para trabalhar. Era a única que tinha maior intimidade com ele.
Gregório era o filho mais velho da família Samsa, um jovem ativo, sadio e muito trabalhador, que, após ver os negócios da família fracassar, abdicou da própria liberdade, da própria vida para entregar-se a um trabalho que garantisse a manutenção de todos. Era caixeiro-viajante e vivia para o seu trabalho, mas não por uma questão de sentir prazer com o que fazia, ao contrário, essa rotina o irritava e cansava, mas esse era o meio de sustentar a família e pagar uma dívida do seu pai contraída no período desgastante do colapso. Sentia-se como um escravo, um objeto de propriedade do seu patrão, que deveria trabalhar qual fosse uma máquina, houvesse o que houvesse. Gregório não tinha horário para coisa alguma: nem dormir, nem alimentar-se e muito menos um envolvimento amoroso. Desejava então quitar a dívida o quanto antes para se libertar desta “prisão” que sugava-lhe todo esplendor da vida, todos os sonhos, inclusive no que se referia a ter a sua própria família, pois a vida de caixeiro-viajante não permitia a permanência prolongada em qualquer lugar que fosse senão correr-se-ia o risco de se comprometer os negócios de seu patrão, o que retardaria seus planos de liberdade.
A obra de Franz Kafka divide-se em três partes favorecendo melhor compreensão da história como um todo, sendo que, a primeira parte trata-se da narrativa da transformação de Gregório neste grande inseto; a segunda parte mostra certa resignação com a nova forma, seria um processo de adaptação a essa forma, a perda da dimensão humana; a terceira fase seria o isolamento e perecimento.
PRIMEIRA PARTE – A TRANSFORMAÇÃO
A primeira parte refere-se ao período em que Gregório percebe seu novo corpo, sua nova forma e entra em pânico (acreditando ser tudo um pesadelo) anunciando que tempos ainda mais difíceis seriam enfrentados por aquela família. Apesar da “novidade” ele não deixa de pensar no compromisso profissional e então reflete sobre seu descontentamento com o trabalho, que sugava-lhe todas as forças; ele narra sua chateação com a vida profissional, o desejo de libertar-se de tudo isso para viver uma vida melhor, mais feliz. Tamanha era sua preocupação com o seu patrão que mesmo sentindo-se mal e atordoado com toda a visão delirante, ele ainda pensava em cumprir este compromisso para não sofrer repreensões ou pior, fazer com que o patrão reiniciasse a cobrança da dívida de seu pai (Gregório era visto como uma máquina, um objeto que pertencia a seu patrão e que não poderia parar a produtividade). Toda a família se assusta com as mudanças ocorridas e a partir daí, toda a estrutura familiar sofre igualmente um choque que impõe novas formas de lidar com esta situação-problema que se tornara Gregório. A família não sabia como lidar com isso e nem o próprio Gregório. Essa “transformação” provocou mudanças inesperadas, chegando ao ponto de Gregório ser agredido físico e verbalmente por seu pai.
SEGUNDA PARTE – READAPTAÇÃO À NOVA FORMA (RESIGNAÇÃO)
Nesta fase Gregório tenta se reorganizar com essa nova estrutura biológica que agora o compõe (ao menos em sua percepção). Percebe mudança no paladar e a irmã tenta suprir suas necessidades básicas e assume para si a responsabilidade de cuidar do irmão sendo que, a partir de então, ela era a única que entrava e saía de seu quarto, servindo como mediadora entre Gregório e os pais. O pai reúne a família para falar da situação financeira e a revelação do pequeno capital trás surpresa e alívio a Gregório, que desconhecia essa situação. Ele sentia-se envergonhado pela invalidez que a nova forma lhe impunha. Percebeu que a nova forma causava repulsa na irmã e passa a se ocultar sob um lençol. A família se habitua à nova forma de Gregório, bem como ele próprio. A retirada da mobília de seu quarto foi um fato que repercutiu na intimidade de sua mãe e em si mesmo, pois a ausência dela fazia com que perdesse a identidade humana, mas Grete tratou de convencer a mãe da necessidade dessa atitude para o bem do irmão. A mãe tinha esperança de ver o filho curado e temia que esse ato impedisse o “retorno”, mas ela não tinha voz de comando com a filha quando o assunto era Gregório. Nesse período todo tipo de ato violento que ocorresse o pai culpava seu filho e a mudança no comportamento dele fora sentida por Gregório, que na verdade percebera a forma violenta como o pai o tratara, desde o primeiro dia após a “metamorfose”, e então ele evitava todo confronto com o pai para ser atacado ou para não atacá-lo. Gregório sofrera muito com o último ataque do pai e a ferida que carregava era uma recordação viva da agressão.
TERCEIRA PARTE – ISOLAMENTO E PERECIMENTO
A sequência dos fatos permite que o leitor deduza que a vida do personagem central está esvaindo-se sem que os familiares se deem conta. A agressão sofrida por Gregório causara impacto tão forte que fez com que o pai se recordasse de que ele era igualmente um membro daquela família e não deveria ser tratado como inimigo. A família estava cansada de lidar com todo aquele trabalho que o problema de Gregório produzia; ele tornara-se empecilho até na realização de uma mudança de casa e todos se sentiam intensamente infelizes com tal sorte que os acometera. Cada um se arranjava como podia: o pai levava almoço aos empregados de menor categoria do banco; a mãe confeccionava roupa interior para estranhos e a irmã trabalhava atrás de um balcão. Grete não escondia o desprezo que sentia pelo irmão que trouxera tamanho infortúnio à família; ela não admitia ver a mãe cuidando da limpeza do quarto dele, e dizia ser este um serviço para a empregada que estava acostumada a lidar com ele. Na verdade, essa empregada o provocava muito, chamando-o por vários nomes, inclusive de “barata-velha” e quando ele tentava correr atrás dela irritado ela ameaçava espancá-lo. Tentando melhorar a renda a família aluga um quarto para 3 (três) homens que apreciavam em demasia a limpeza onde quer que estivessem, daí, todo lixo era descartado no quarto de Gregório, que já contava com um acúmulo absurdo de pó, era como se estivesse entregue à própria sorte. Ao ouvir sons de mastigação Gregório pôs-se a refletir sobre a fome que sentia, mas não a fome pelo alimento que os hóspedes ingeriam; que fome seria essa? Ao ouvir o som do violino ele planejou ingenuamente um modo de se aproximar da irmã, mas foi mal sucedido e isso causou grande confusão que provocou a ira de Grete e passou a ter um único desejo: livrar-se de Gregório. Para isso ela usou de toda lábia para manipular a opinião dos pais, que no fundo, desejavam que ele estivesse em condições de fazer algo diferente. Seu irmão fora então trancafiado no quarto e lá, sozinho na escuridão, Gregório dá seu último suspiro e se vê então de braços com a desejada liberdade. A empregada chega a bater com força o cabo de vassoura para verificar se ainda estava vivo e então correu a anunciar a morte daquele homem-inseto. O pai então expulsa os hóspedes e planeja com a esposa e a filha, um passeio para um “merecido” descanso. Então eles escrevem cartas aos patrões para justificar a ausência e enquanto escreve, o pai percebe que a empregada poderia ser o próximo estorvo, e imediatamente ele planeja despedí-la para que pudessem gozar de tranqüilidade depois de tudo. A família então, agora ativa e sem motivos para apatia, faz novos planos de vida, o que nos remete à pergunta: quem de fato metamorfoseou?...
O livro produz alguns inevitáveis questionamentos sobre o comportamento de seus personagens, além de instigar reflexões sobre a relação familiar que por si própria já possui certa complexidade pelas diferentes personalidades dos seus integrantes que pode estabelecer uma estrutura positiva, portanto sadia, como também negativa, o que denotaria um adoecimento na relação. A constatação de um problema como o que acometeu a família Samsa, leva o leitor a perceber que qualquer mudança numa relação familiar, provoca outras novas mudanças em todo contexto.
A família de Gregório era passiva e apática, o que nos faz pensar se não estariam apenas “passando pela vida” ou invés de vivê-la. Quando Gregório assume para si a responsabilidade de mantenedor da casa, o pai relaxa em seu compromisso como direcionador da família. A mãe passa uma imagem de mulher que se permite manipular (consciente ou inconscientemente) para não assumir o papel de zeladora desta família. A irmã, ao longo dos seus dezessete anos, transmite a imagem de uma jovenzinha mimada pelos seus, que ocupava com pequenas tarefas domésticas e algumas frivolidades juvenis.
A nova condição de Gregório muda todo este cenário, e todos são convocados a se tornarem ativos por si mesmos. Mas isso não seria o bastante, muito mais que ser ativo, no que tange a questão financeira, a família precisaria reestruturar toda a visão sobre a relação familiar em si para buscar a compreensão do que estava se passando com o filho/irmão e então, promover um ambiente menos hostil e mais propício aos cuidados que se faziam necessários.
Tristeza é o sentimento que acompanhou Gregório do primeiro dia da mudança até o derradeiro instante de vida, o que nos leva a refletir sobre a questão maior que é o despreparo da família para lidar com essa possibilidade do enfrentamento de um adoecimento mental na família. A ausência de uma relação familiar estruturada impediu que eles se organizassem para cuidar do filho adoentado e acabou promovendo um ambiente extremamente hostil. O pai era um que acreditava que só poderia tratar Gregório com atos violentos para repreendê-lo e esse lado extremamente agressivo do pai fez com que ele se mantivesse sempre acuado para não ser agredido ou agredir. Todos tentavam ocultá-lo para que ninguém soubesse o que se passava no interior daquela casa, como se aquele “problema” fosse algo contagioso, fosse motivo de vergonha que trouxe grande desonra para a família. Gregório simplesmente acatava tudo o que lhe acontecia, como se não houvesse outra coisa a fazer, pois a visão que trazia de si próprio não se diferenciava da que sua família carregava, e talvez isso explique sua resignação ante o comportamento dos seus. Gregório, após assimilar a “transformação”, aceitava todo desprezo e ira contra sua pessoa, pois ele próprio a si não mais reconhecia merecedor de outras atitudes que não fossem estas.
Enfim, “Metamorfose” é uma obra com muitas possibilidades de interpretação, mas que no fundo, nos leva a questionar se o homem só teria valor enquanto se mostrasse produtivo social e profissionalmente. A obra toma essa sentença como verdadeira, e tanto é que sequer a família Samsa se preocupou em procurar auxílio médico para entender o que se passava com Gregório, foi logo “rotulando” (não foi dito, mas de certa forma ficou explícito pelo comportamento que mantinham) e isolando-o do contato familiar e social; não havia mais vínculo afetivo e aquele ser, que não era Gregório, segundo palavras de sua irmã, era então tratado como um animal que só merecia o desprezo daquela gente.
A obra facultou muitas reflexões sobre a visão distorcida que a desinformação produz e como isso fere quem serve de “alvo”. Particularmente, o que mais espanta é saber que ainda na atualidade (a obra é do ano de 1912!) a mídia trás à tona esse padrão de comportamento em algumas famílias que possui um sofredor mental; são quartos escuros, jaulas, todo tipo de humilhação humana, no afã de manter encoberto a verdade que os atinge.
A equipe composta por Aryane Martins, Cleber Rodrigues e eu, Núccia Gaigher, indica a leitura deste livro para que nunca nos esqueçamos que, independente da nossa condição psíquica, ainda assim, somos humanos e temos o direito a cuidados médicos específicos e, sobretudo, ao respeito.