"Interpretação e Ideologias": funções, história e crítica da hermenêutica na visão de Paul Ricoeur

RESUMO

O presente artigo foi elaborado a partir da leitura e análise das quatro partes que compõem a obra Interpretação e ideologias (1988), de Paul Ricoeur, prefaciada por Hilton Japiassu em “Paul Ricoeur: filósofo do sentido”. As partes em que a obra se divide são: “A tarefa da hermenêutica” (p. 17-42); “Ciência e ideologia” (p. 63-95); “Crítica das ideologias” (p. 99-149); e “Sinal de contradição e de unidade?” (p. 149-172).

PALAVRAS-CHAVE: Ideologia; Hermenêutica; Paul Ricoeur.

ABSTRACT

The current article was elaborated from the reading and analysis of the four parts composing the masterpiece Interpretação e ideologias [Interpretation and Ideologies], by Paul Ricoeur, prefaced by Hilton Japiassu in “Paul Ricoeur: the philosopher of meaning”. The parts in which the masterpiece is divided are: “The task of hermeneutics” (p. 17-42); “Science and ideology” (p. 63-95); “Criticism of ideology” (p. 99-149); and “A sign of contradiction and unity?” (p. 149-172).

KEYWORDS: Ideology; Hermeneutics; Paul Ricoeur.

Em certas revistas que circulam no meio acadêmico, pode se encontrar artigos resenhando determinadas obras. Por conta desta assertiva é que o presente trabalho se propõe a apresentar uma resenha da obra Interpretação e ideologias, do filósofo francês Paul Ricoeur.

Com formação nas áreas de Filosofia e de Letras, Paul Ricoeur (1913-2005) se tornou marcante no meio intelectual por ser uma espécie de seguidor da fenomenologia proposta por Husserl e também do existencialismo religioso. A partir da década de 1950, o filósofo passa a publicar suas teorias com mais assiduidade e a participar da organização e direção de revistas voltadas para sua área de estudos.

Suas obras principais, por ordem de publicação são: A filosofia da vontade: I. O Voluntário e o Involuntário; História e Verdade; Filosofia da Vontade. II. Finitude e Culpabilidade: 1. O homem falível. 2. A simbólica do Mal; Da Interpretação. Ensaio sobre Freud; Ensaios Políticos e Sociais; Ensaios de Hermenêutica I (O conflito das Interpretações) e II (Do texto à ação); Metáfora Viva; Teoria da Interpretação: O Discurso e o Excesso de Sentido; Leituras. 1. À volta da Política; O si mesmo como um outro e A memória, a história e o esquecimento.

Em suas obras, percebe-se claramente a intenção de relacionar a fenomenologia com a análise lingüística, por meio da teoria da metáfora, do mito e dos modelos científicos. O filósofo também direcionou seus estudos para compreender a forma pela qual a realidade do ser é configurada de acordo com a percepção individual de eventos mundiais. Uma de suas grandes contribuições filosóficas é a conceituação de ação enquanto legado humano. A partir de 1989, Ricoeur procura centrar sua reflexão sobre o sujeito, a alteridade e questões ideológicas.

Sobre a obra Interpretação e Ideologias é pertinente ressaltar que esta surgiu por conta de um encontro entre o filósofo francês e o escritor brasileiro Hilton Japiassu, ocorrido em 1976. Este último, na apresentação do referido livro de Ricoeur, comenta que o fez compreender a importância de organizar certos artigos publicados, de maneira esparsa, sobre hermenêutica e ideologia, para destiná-los ao público universitário. Segundo Japiassu, foi ele mesmo quem fez a seleção dos artigos que fariam parte do corpus do livro e posteriormente os apresentou ao filósofo, que aprovou os textos escolhidos.

Hilton Japiassu afirma que a organização dos artigos ocorreu com base numa unidade de inspiração, por conta de que todos fazem referência a uma problemática essencial: a conversão do método hermenêutico, em uma tentativa de salvar o indivíduo do cientificismo. O livro foi dividido em quatro partes, que abordam respectivamente:

• 1ª parte – “A tarefa da hermenêutica” (descreve o problema da hermenêutica na atualidade) e “A função da hermenêutica do distanciamento” (dedica-se à elaboração de categorias textuais para tentar explicar e compreender a problemática em questão).

• 2ª parte – “Ciência e ideologia” (estuda as funções da ideologia para permitir a compreensão do fenômeno ideológico e faz uma análise, apresentando vínculos e contradições, sobre as ciências e a ideologia).

• 3ª parte – “Crítica das ideologias” (procura elaborar uma reflexão de teor crítico sobre a hermenêutica e as ideologias cientificistas presentes nas ciências humanas).

• 4ª parte – “Sinal de contradição e de unidade?” (estuda os conflitos e neoconflitos presentes na atualidade, mascarados por ideologias, e propõe uma estratégia que sirva para a compreensão de tais eventos).

É, portanto, sobre essas partes acima referidas que se trata este artigo.

PARTE I – Funções da Hermenêutica

No início de seu artigo “Funções da Hermenêutica”, o autor caracteriza, primeiramente, esta como uma “teoria da compreensão em sua relação com a interpretação dos textos” (p. 17), mostra sua opinião contrária aos pensamentos de neutralidade, e coloca como duas preocupações básicas a questão de mesclar a hermenêutica regional e a geral e a relação desta com a epistemologia.

Segundo o autor, o primeiro lugar onde se dá a interpretação é na linguagem, preferencialmente na linguagem escrita. Caracteriza a polissemia e afirma que o primeiro e mais importante trabalho de interpretação é justamente a produção de um discurso unívoco com termos polissêmicos e a intencionalidade do caráter unívoco desse discurso na recepção da mensagem.

Para Ricoeur, Kant é quem está mais próximo da hermenêutica, principalmente de uma hermenêutica romântica e crítica, por oposição à teoria do conhecimento e à teoria do ser. Segundo o filósofo, a hermenêutica recebeu sua mais fundamental convicção da filosofia romântica, cujo “espírito” “(...) é o inconsciente criador trabalhando em individualidades geniais” (p. 21). Cita Schleiermacher, que relaciona a interpretação gramatical com a interpretação técnica, visando atingir a subjetividade do ente que fala e se esquecendo da linguagem, e se refere também ao excesso de comparativismo e contrastes que marcam a obra do teólogo alemão, que para Ricoeur deve ser superada.

Em outro momento, o autor apresenta Dilthey e sua teoria do encadeamento textual marcado pelo historicismo. Para Dilthey, a explicação da natureza e a compreensão da história estão relacionadas ao conhecimento do homem e à compreensão dos sinais, implicitamente marcando uma relação interdisciplinar entre a história e outras áreas. Ricoeur alega que “os sistemas organizados que a cultura produz sob a forma de literatura constituem uma camada de segundo nível, construída sobre esse fenômeno primário da estrutura teleológica das produções da vida” (p. 25). Contrapõe as teorias de Schleiermacher às de Dilthey, e afirma a importância da hermenêutica para a filologia. Ainda analisando a teoria de Dilthey, o autor afirma que a hermenêutica se constitui como uma camada objetiva da compressão por meio de estruturas fundamentais de um texto e que se esta está relacionada com a psicologia, acaba por se tornar a sua derradeira justificação e responsável pela sua própria compreensão. Diz também que a história universal acaba por se tornar um campo apropriado da hermenêutica e relaciona o que Hegel afirma sobre o espírito relacionado com a vida, ou, nas palavras do autor, “a vida apreende aqui a vida” (p. 29). Ao concluir as considerações sobre Dilthey, afirma que é preciso renunciar ao vínculo da hermenêutica com a psicologia enquanto transferência de via psíquica estranha e concentrar-se com mais propriedade no texto, mas não em direção ao autor e sim no sentido imanente e em um tipo de mundo “aberto” e “descoberto”.

Para tratar da epistemologia e da ontologia, o autor argumenta que o modo de ser de determinado ser só existe diante do ato de compreender, e já parte para o estudo das teorias de Heidegger, em que demonstra que a tarefa filosófica proposta por este é explicitar a própria constituição do ser por meio de um método que privilegie as ciências históricas do espírito. Afirma que para Heidegger o outro é ainda mais desconhecido e que a questão de mundo se torna a questão do outro, que ao tentar compreender o mundo em si, o filósofo o “despsicologiza”. Trabalha ainda com os conceitos de fenômeno do discurso, pré-compreensão e preconceito. Por fim, postula que uma filosofia que não dialoga com as ciências, dirige-se apenas a si mesma.

Outro autor muito citado por Ricoeur é Gadamer, que apresenta a experiência hermenêutica dividida em três esferas, a estética, a histórica e a da linguagem. Apresenta a contraposição entre verdade e/ou método e salienta a importância de não retomar conceitos românticos quanto a esse assunto. Nesse ponto, Ricoeur coloca um dilema: “como é possível introduzir qualquer instância crítica numa consciência de pertença expressamente definida pela recusa do distanciamento?” (p. 40), e o responde pelo fato de a consciência histórica não repudiar o distanciamento e sim empenhar-se em assumir tal postura. Conclui esta primeira parte do artigo, recapitulando temas como alteridade, fusão dos horizontes e a distância (que seria a coisa do texto).

Ao tratar sobre a função hermenêutica do distanciamento, o autor retoma alguns tópicos da análise anteriormente referida e recusa-se à tentativa de ultrapassar a oposição entre o distanciamento alienante da pertença. Ricoeur alega que entende o texto como o legítimo paradigma do distanciamento da comunicação e que é por esta razão que se revela um caráter imprescindível da historicidade da experiência humana, que é a comunicação na e pela distância.

O autor pede para que se observe a questão da escrita e do texto e salienta a tríade entre discurso, obra (que no caso, refere-se à literatura) e a escrita. Propõe, para organizar esta problemática, cinco temas, a saber:

O primeiro é a efetuação da linguagem como discurso: afirma que todo discurso passa pela dialética do evento e da significação. No que se refere ao evento, afirma que sempre acontece algo quando alguém fala e contrapõe a lingüística estrutural à teoria do discurso. Caracteriza evento como um fenômeno temporal de troca e estabelecimento de um diálogo passível de alterações em seu caráter temporal e presencial, contrariando a língua e seu sistema, que são virtuais e atemporais. Sobre a significação, o autor afirma que o discurso deve ser compreendido como tal e que o ato do discurso se constitui em três níveis de atos subordinados, que são respectivamente o nível do ato locucionário, do ilocucionário e o perlocucionário.

O segundo trata sobre o discurso como obra: para o autor, a obra é uma sequência maior que uma frase e que suscita outro problema de compreensão, relacionado à totalidade finita e cerrada que a constitui e que a transforma em gênero (no caso, gênero literário). Outro fato é o estilo, aqui entendido como a configuração única da obra e que se assimila a um indivíduo. Por fim, o discurso e a obra formam categorias de produção e trabalho, correspondendo a uma atividade prática. Segundo Ricoeur, “a noção de obra aparece como uma mediação prática entre a irracionalidade do evento e a racionalidade do sentido” (p. 50). Depois, aborda a noção de sujeito do discurso, que no caso em questão, pode ser denominado como o autor da obra, pelo fato de todo estilo trazer uma marca de individualização, que corresponde à própria assinatura do homem relacionado com a sua obra.

O terceiro tema versa sobre a relação entra a fala e a escrita: inicialmente o autor afirma que transcrever o que é falado dá um caráter de fixação ao discurso, protegendo-o de certa forma da destruição, mas que é muito mais que isso, pois é preciso ressaltar a importância da significação verbal e da mental. Para o autor, “a libertação da coisa escrita relativamente à condição dialogal do discurso”, é justamente o mais notável efeito encontrado na escrita. Finaliza argumentando que a fala e a escrita alteram o discurso.

No quarto tema, o autor aborda o mundo do texto: para fundamentá-lo, sugere o afastamento de teorias românticas e estruturais e liga a noção de mundo à de texto, compreendida, de certa maneira, como referência ou denotação do discurso, marcado pelo sentido e pela referência. Ao utilizar esta definição, Ricoeur constata que o discurso acaba por se opor à língua, pois apenas o discurso se aplica à realidade e exprime o mundo e que a referência é responsável por situar o interlocutor numa rede de tempo e espaço única. Ricoeur também afirma que o papel da maior parte da literatura é justamente o de destruir o mundo, pois “não há discurso de tal forma fictício que não vá ao encontro da realidade” (p. 56). Utiliza o conceito de “ser-no-mundo”, postulado por Heidegger, no qual considera que é por meio da ficção e da poesia que novas possibilidades se abrem para o poder-ser no mundo e que a hermenêutica deve incorporar a experiência do distanciamento em seu contexto.

O quinto e último tema trata do fato de “compreender-se” diante da obra: para o autor, o texto é o elo de mediação que serve para que se possa compreender a si mesmo. Trata do problema da apropriação (aplicação) do texto à situação presente do locutor, relacionando-a com o distanciamento da escrita, que seria a compreensão pela distância. Afirma que nada poderia ser de conhecimento do homem se não passasse por algum processo lingüístico, que é o que estabelece o sentido. Segundo Ricoeur, para compreender o texto retoma-se ao tema do mundo do texto, do poder-ser e se compreender pelo texto. Apesar de salientar a questão da apropriação, constata que a mesma altera a metamorfose do ego, por implicar num momento de distanciamento na relação consigo próprio; isso caracteriza também uma desapropriação. Conclui seu artigo afirmando que a hermenêutica não pode se opor à crítica das ideologias, porque esta “é o atalho que a compreensão de si deve necessariamente tomar, caso esta deixe-se formar pela coisa do texto, e não pelos preconceitos do leitor” (p. 59), e que o distanciamento é o maior responsável pela compreensão.

PARTE II – Ciência e Ideologia

Em “Ciência e Ideologia”, Paul Ricoeur afirma que, para Aristóteles, a política diz respeito a uma série de coisas e os raciocínios nem sempre são verdadeiros, pois deve-se procurar ser verdadeiro de acordo com as suas possibilidades, sendo isto tudo um problema de ordem prática. Ricoeur insiste a respeito da importância de se saber interpretar o significado do termo “ideologia”, que pode, quando empregado no sentido de “dominação” ou de instrumento de poder, tornar-se negativo; para o autor, a ideologia pode ser compreendida como “(...) o pensamento de meu adversário; é o pensamento do outro. Ele não sabe, eu, porém, sei” (p. 65).

Sobre os critérios do fenômeno ideológico, o filósofo relaciona o que foi dito anteriormente com a doutrina de Karl Marx, e para isso procede em três etapas, fazendo as seguintes caracterizações: a função geral da ideologia, que é vista no âmbito das relações sociais como um meio de identificação de um grupo, de uma imagem de si mesmo ou do grupo no qual se insere ou ainda como uma opinião; a função de dominação, sobre a qual o autor traça um paralelo entre ideologia, autoridade e dissimulação, e, no que se refere à autoridade, deixa claro que é necessário que a mesma seja legitimada para que se torne uma crença; e a função de deformação, na qual faz referência abertamente à teoria marxista, que visualizava a religião como manifestação por excelência da ideologia.

Ao finalizar a apresentação dessas funções, Paul Ricoeur alega que, na realidade, o correto seria delimitar o significado (isto é, o sentido do termo) por conteúdo. No tópico seguinte, no qual aborda mais especificamente a relação complicada entre as ciências sociais e a ideologia, o filósofo francês afirma que, por mais que ambas tenham sentidos contraditórios, podem sim se ligar em determinados momentos, utilizando para isso, como exemplo, a própria teoria de Karl Marx, que se impunha contra uma ideologia, mas que acaba por se tornar uma.

No que se refere à dialética da ciência e da ideologia, o autor entende ideologia como “uma estrutura de pensamento vinculada a um grupo, a uma classe social, a uma nação” (p. 87). Em seguida, diferencia “ideologia” de “utopia”, e afirma que ambas são importantes para a construção do pensar, e que sem as mesmas nada mais poderia haver. Formula ainda algumas proposições, relativas à aceitação do encontro entre ciência e ideologia: para Ricoeur, todo saber é precedido por uma relação de pertencimento, embora objetivamente essa relação também possa ser autônoma; apesar disso, o saber não é de todo “completo”, pois se baseia numa relação de interesse e emancipação que requer certo distanciamento. Por isso, é necessário que se atente para uma visão crítica das ideologias e para o fato de que essa crítica não deve romper de todo o seu vínculo com o pertencimento.

PARTE III – Crítica das Ideologias

Em “Crítica das ideologias”, Ricoeur diferencia hermenêutica e crítica e mostra ao leitor as três esferas da experiência hermenêutica: a estética, a histórica e a lingüística. Além disso, empenha-se em diferenciar a hermenêutica romântica da histórica. Para o autor, “o preconceito é aquilo de que precisamos nos desembaraçar para começarmos a pensar” (p. 106), ou seja, para um ato reflexivo é preciso não se deixar guiar por qualquer tipo de preconceito ou influência externa. Cita ao longo do texto diversos autores, tais como Gadamer, Dilthey, Heidegger, Habermas, etc.

Ao se referir a Gadamer, Paul Ricoeur alega que nem sempre autoridade tem a ver com obediência cega, e sim com um “ato de aceitação e de reconhecimento” (p. 111), e que:

Tudo o que é consagrado pela tradição transmitida e pelo costume possui uma autoridade que se tornou anônima, e nosso ser historicamente finito é determinado por essa autoridade das coisas recebidas que exerce uma poderosa influência sobre o nosso modo de agir e sobre nosso comportamento (RICOEUR, 1988, p. 112).

O autor apresenta quatro temas que, segundo ele, “parecem concorrer para essa categoria de consciência da história da eficácia” (p. 114): a distância histórica, sobrevôo, horizonte e fusão de horizontes. Em seguida, apresenta “três significações para essa moção de universalidade” (p. 117): a pretensão da hermenêutica de ter a mesma amplitude da ciência, a universalidade como empréstimo e a utilização da linguagem. Aprofundando a questão, Ricoeur traça um paralelo entre as teorias de Gadamer e Habermas e apresenta a divisão dos interesses da seguinte forma: técnico / instrumental, prática e emancipatório.

Na construção de diversos paralelos, apresenta as diferenças do gesto da hermenêutica e da crítica das ideologias, e faz uma breve explanação sobre semiótica. Por fim, faz uma rápida recapitulação de tudo o que disse anteriormente.

PARTE IV – Sinal de Contradição e de Unidade?

A intenção inicial de Paul Ricoeur, na quarta parte de seu livro Interpretação e ideologias, é a de apresentar os novos conflitos sociais, as atitudes ideológicas frente aos neoconflitos e sugestões teóricas e práticas para a busca de uma nova estratégia de conflito.

Ao introduzir o comentário sobre os neoconflitos nas sociedades industriais avançadas, o autor confessa só conhecer com mais propriedade os problemas pertinentes ao meio universitário, e afirma que isso não o impede de tecer considerações sobre causas que, de certo ponto de vista, são globais. Para Ricoeur, “as novas contradições, as que se originaram do desenvolvimento, são mal colocadas e difíceis de ser resolvidas, porque cruzam sobre o solo das contradições anteriores herdadas do século XIX” (p. 150). Logo após tecer este argumento, o autor passa a apresentar a análise das seguintes contradições: a primeira é a ausência de projetos coletivos na sociedade: isso se deve, em grande parte, segundo o filósofo, ao desinteresse e esgotamento dos países desenvolvidos, que polarizam a situação para ilusões de dissidência, que seriam causadas pelas próprias organizações das instituições e pela repressão que há por trás da liberalidade. Além disso, há também tentações da ordem, a respeito das quais Ricoeur critica as democracias liberais e apresenta um aspecto da reação moral exemplificada pela doutrina do cristianismo; a segunda contradição é o mito do simples, caracterizado como algo perigoso e ufanista, por se basear numa crença de que não haverá complicações futuras, e que não leva em consideração o avanço tecnológico nem a “massa” de intolerância acumulada pela sociedade; a terceira e última contradição é o esgotamento da democracia representativa, em que o filósofo expõe o desânimo da sociedade frente à democracia e a afirmação de que a tolerância reverte em intolerância.

Na segunda parte, em que trata dos anteparos ideológicos, o autor recapitula brevemente as ideias apresentadas anteriormente e caracteriza as motivações-anteparos como ideologias, para, logo em seguida, apresentar dois tipos destas. O primeiro tipo é a ideologia da conciliação a todo preço, oriunda da crença cristã de amor a Deus e ao próximo. Ricoeur declara que tal ideologia nega o conflito entre a humanidade e tenta combatê-lo como uma tentativa ingênua de tomada de consciência; para sua filosofia, é algo absurdo negar a existência de elementos conflitantes, por isso Ricoeur sugere que se questione o tipo de sociedade que se quer ter. Com base na resposta e no fato de os povos não acreditarem e não se unirem para um projeto global fica evidente que essa teologia do amor se constitui num dos maiores, senão o maior, paradoxo existente; para tanto, faz referências a Hegel e Marx, dentre outros. O segundo tipo é a ideologia do conflito a todo preço, que se constitui de dois tipos de fatos: atenuação de um dos tipos de conflito que perdura até os dias atuais e “a tendência das grandes potências nucleares a evitarem, até o fim, a escalada nos conflitos armados” (p. 163). Refere-se, ainda, a uma fonte de patologia social que corresponde a quatro palavras: provocação, marginalização, teatralização e não-comunicação.

Na terceira e última parte do texto, Ricoeur apresenta as ideologias do ponto de vista do impedimento de se visualizar a realidade e faz as seguintes réplicas: a réplica empírica (que trata da preparação do espírito para as situações de conflito); a réplica teórica (que postula a necessidade de reflexão e analisa os motivos pelos quais “liberdade” e “instituição” são vistas separadamente); e a réplica prática (na qual mostra novas estratégias dos conflitos baseadas em experimentação selvagem e lealdade, conscientização e mediação social, e por fim, reforma e revolução).

Após leitura, reflexão e análise dos artigos de Paul Ricoeur, reunidos por Hilton Japiassu, no livro Interpretação e Ideologias, e que neste trabalho surgem na forma de resenha, constata-se, portanto, o contexto no qual todo o material filosófico se compõe que é o da tentativa de decodificar a hermenêutica, presente no universo dos signos, que antecede o ato de elaborar o discurso cientificista, principalmente no que tange às ciências humanas e sociais; e ao mesmo tempo, um estudo crítico e interpretativo dos discursos ideológicos que atuam em todas as esferas do conhecimento.

REFERÊNCIAS

JAPIASSU, Hilton. Apresentação – Paul Ricoeur: filósofo do sentido. In: RICOEUR, Paul. Interpretação e Ideologias. Org. e trad. Hilton Japiassu. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988.

REAGAN, Charles. Paul Ricoeur: biography. Acesso em: 05 jun. 2009. Disponível em: <http://www.fondsricoeur.fr/index.php?m=21&lang=en>.

RICOEUR, Paul. Interpretação e Ideologias. Org. e trad. Hilton Japiassu. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988.

RICOEUR, Paul. Moral, ética e política. Trad. Adna Candido de Paula. Revista OAB – MG, 4ª subseção, nº. 03, Set/Out. 2008, p. 12-18.

Ana Claudia Brida
Enviado por Ana Claudia Brida em 05/06/2009
Código do texto: T1634304
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