UMA OUTRA HISTÓRIA DAS FORMAS LITERÁRIAS
Corpo versus Imprensa: Os meios de Comunicação no Início do Período Moderno, Mentalidades no Reino de castela e Uma Outra História das Formas Literárias, in Gumbrecht, Hans Ulrich. Modernização dos Sentidos. SP: Ed.34, 1998, p. 67-108.
Neste ensaio inegavelmente original, HANS ULRICH GUMBRECHT sugere, uma conexão profunda entre o advento da imprensa e a definição da consciência enquanto espaço de significação e construção da subjetividade. Cabe esclarecer que o objetivo deste autor é a formulação de uma História das Formas Literárias, a partir de u O m estudo de caso: O Reino de Castela. É inicialmente na Espanha do séc. XV que, segundo GUMBRECHT, a substituição dos manuscritos em pergaminhos por livros impressos permitiu um deslocamento da mentalidade da época na medida em que esse novo meio de comunicação imprimiu-se na relação mantida entre as pessoas com os seus corpos, com a sua consciência e com as suas ações. Em outras palavras, a imprensa triunfante transferiu para a escrita a função principal de representar sujeitos na ausência de seus corpos alterando radicalmente o status da escrita e da consciência, ou seja, permitiu um deslocamento da cosmologia que definia a mentalidade medieval ao estabelecer uma cisão entre corpo e consciência, iniciando uma transição para aquilo que hoje identificamos como vida cotidiana.
O desenvolvimento do vernáculo em língua escrita associou-se a formação de um novo espaço social e comunicativo, fundamentalmente urbano, onde o sentido cosmológico dos fenômenos não era mais experimentado como auto evidente e intrínseco aos próprios fenômenos. Além, disso, com o impresso, o corpo humano foi aliviado de sua condição de veículo de constituição e fonte de sentido, papel transferido para o autor do texto que, a partir de então, torna-se responsável por um “sentido intencional” da obra. Tal intencionalidade, concebida como um ato individual, pressupõe, evidentemente, um certo deslocamento do ego para o centro da consciência tanto quanto uma redefinição do conceito de autor e da posição do homem no mundo e no universo.
Para GUMBRECHT, no plano epistemológico, com esse novo papel do autor, tem início a era do homem como intencionalidade. Podemos evidentemente tomar a filosofia Neo-Platônica Florentina como exemplo significativo deste processo, bem como associá-lo ao impulso para os descobrimentos marítimos. Afinal, compreender a mudança radical no destino espanhol no século XV, segundo o autor ora citado, pressupõe entender a profunda articulação entre meios de comunicação e mentalidades e, em meus próprios termos, a redefinição da imagem coletiva do Antrophos, do humano genérico através da construção de uma consciência individual como fonte de sentido e significado decorrente disso, pois,
“Alguém que é capaz de experienciar somente a consciência como fonte de sentido é capaz de imaginar o passado e o futuro como distintos do presente, e não precisa descartar a possibilidade, a exemplo de Isabel de Castela e, ao contrário do rei de Portugal, de que um visionário algo andrajoso originário de Gênova talvez seja capaz de encontrar um caminho mais rápido para as Índias.Esse foi um fator importante no apoio de Isabel à viagem de Colombo.” ( Hans Ulrich Gumbrecht. Modernização dos Sentidos. SP: Ed.34, 1998, p.89.)
Fernando e Isabel, no contexto ibérico, representaram a emergência de uma primeira subjetividade moderna, pois,
“...eles não só eram patronos da imprensa, mas sabiam, eles próprios, ler e escrever, algo bastante raro entre reis medievais; com efeito, fundaram uma Academia, dirigidas por um Humanista italiano, sob o princípio de que ler e escrever não só seria desfavorável ao serviço militar e a valentia cavaleiresca como podia mesmo servir a um propósito útil.”( Idem, p. 88.) .
Nada disso invalida a tese da vocação para o arcaísmo que marca a cultura ibérica e lhe cancela a tendência à modernidade e ao futuro. Como o próprio GUMBRECHT observa, a partir da segunda metade do séc. XVI há um declínio quantitativo na produção de livros impressos na Espanha, em contraste com os outros paises europeus. Também cabe considerar a ação da Inquisição durante o Regime de Fernando e Isabel. Indo além da formalidade da conversão de judeus e mulçumanos,
“... os novos inquisidores desejavam investigar e controlar o fundo da consciência do convertido, não compreendendo, como nós atualmente, que cada passo investigativo rumo a consciência dos outros é potencialmente uma trilha em direção a infinidade. Por isso, eles somente podiam descansar quando o pior estivesse confirmado, quando os conteúdos da consciência tivesse, sido “confessados” sob tortura, conteúdos talvez nem mesmo pertinentes aos hereges lançados à fogueira.” ( Idem, p.90)