Parte do livro "A ESCRAVA RITA PRETA" de: Flávio Cavalcante

A ESCRAVA

RITA PRETA

ROMANCE

DE

FLAVIO CAVALCANTE.

PREFÁCIO DA OBRA: A ESCRAVA RITA PRETA

Algumas vezes, em nossa vida, surgem em nosso mundo, pessoas que através da exatidão das idéias, sentimentos nobres, superioridade sempre acompanhada de humildade moral, evitando sempre julgamentos nos transmitindo sempre clareza o amor e a caridade, nos mostra evidentemente uma certa elevação em relação a nos outros e nos conduz a desejar seguir-lhe os seus passos, pensar e agir igual ou parecido a elas.

O nosso personagem da história que nos será relatada no transcorrer da leitura deste livro que tem por título a Escrava Rita Preta, nos mostra que possui muito amor e caridade em seu boníssimo coração, apresentando uma condição moral em grau supremo.

Lendo seus escritos, sentimos a influência que ela exerceu sobre o seu povo, através dos vários exemplos de renúncia e sofrimento que passou durante àquela reencarnação como escrava, sendo chicoteada, seviciada, humilhada, não só ela, como também toda sua família, mas diante de tanto sofrimento, conseguiu o crescimento espiritual tão almejado, nos mostrando que a vida encarnada é uma verdadeira escola, significando verdadeiro aprendizado para o futuro, seja nesta ou em outras vidas.

Naquela encarnação, por volta de 1822, ela, a Escrava Rita Preta, já sentia a necessidade do avanço intelectual; com apenas quinze anos já sentia a vontade surpreendente para época de aprender a ler, o que era totalmente anormal para um escravo.

Ela se sentia feliz, apesar de todos os sofrimentos pelos quais passava, nos transmitindo, uma verdadeira lição de amor, humildade e caridade, nos mostrando a importância do perdão em relação aos nossos semelhantes.

O autor desta e outras obras Flávio Cavalcante, é uma pessoa dono de uma cultura que tem arejamento para conviver com várias personalidades, discutindo religião, filosofia, artes teatrais etc., sem se exaltar, sem magoar e sem esmorecer o opositor, mas sempre defendendo a posição espírita com firmeza e educação, desenvolveu muito bem este trabalho, tornando-o muito interessante e de fácil entendimento para nós leitores.

Rio de Janeiro, 13 de fevereiro de 2002

Edgar Pacheco da Silva Filho

Intróito

Há muitos mistérios entre a ponte que liga o aqui, do além túmulo. O incômodo geral que turba o lado de cá e o lado de lá, trás muitas vezes dissabores e Deus-nos-acuda. Hoje, mesmo sendo fato palpavelmente abalizado e debicado pela ciência, se torna certeza se a vida carnal é de fato uma passagem para uns e improbabilidade para outros. As diversas religiões são responsáveis por conturbarem as cabeças das pessoas levando-as a crer em absurdos e impossibilidades, deixando de lado o fato natural e evidente.

A prova concreta das trans-comunicações via aparelhos eletrônicos ou dos meios naturais como os fenômenos mediúnicos, é de fato, um episodio marcante nas análises mediúnicas, deixando-nos a crer que as pesquisas de comunicação também são feitas do lado de lá. Mesmo tendo a mais absoluta prova de toda pesquisa, causa transtorno. O fanatismo fala mais alto. Religiosos ficam como cegos leigos, num tiroteio e sem bengala, por causa de rezas lucrativas e enganosas.

Ao escrever a escrava Rita Preta, aprendi pesquisando e me deu a certeza cada vez mais sobre a existência da vida pós-morte.

Imagine, caro leitor; o tormento de uma escrava, que apesar de enxergar horizontes além de sua época, sofreu com o desenvolvimento de sua mediunidade de vidência e audição. Tida como louca, pelo senhor seu dono, o Cavalera, Rita Preta sofre as mais diversas represálias e se atormenta pelo fato de não ter a mínima compreensão das coisas em si tratando de sua mediunidade. Era um espírito muito evoluído, que recebeu uma missão árdua de carregar nas costas uma cruz quase que insuportável.

Nesse texto, vemos as lições de vida para ascensão espiritual, mostra através desta simples escrava, que sem o amor e a caridade não há salvação.

A história principia com uma comunicação espírita, numa mesa mediúnica, onde o assistente mediúnico faz um trabalho doutrinário. Na mesa se encontram o assistente e uma médium que incorpora os desencarnados.

Os espíritos que estão sendo ajudados nesse momento de ternura e amor se curvam diante da áurea da escrava e abre o espaço para ela deixar marcada a sua história e concluir mais uma missão de evolução.

O autor

Agradecimentos

Um agradecimento por mais simples que ele seja, é um agradecimento. Uma forma de mostrar a satisfação do receptor e expor a gratidão pelo emissor.

Deve-se agradecer a Deus, pelo simples fato de estarmos vivos e gozando de total saúde. Pelo dom de rabiscar em papel uma história de luta, amor, paz e lição de vida, que por certo irá alegrar o coração de muito leitor.

É muito trivial agradecimento em livros a patrocinadores, parentes, amigos; mas além de seguir o corriqueiro, tenho outras pessoas que não poderia deixar de agradecer e dedicar a obra, que é a minha equipe espiritual que me dá toda inspiração para escrever as histórias com vários estilos e versatilidades. Dentre eles, há um irmão, que eu me sinto lisonjeado em tê-lo como meu mentor espiritual.

Ao mestre Machado de Assis, que sempre me acompanha e compartilha das horas que mais preciso de ajuda, me mostrando o caminho do bem e que intuitivamente me inspira a escrever o amor assim como o grande mestre Jesus Cristo deixou em pauta, mostrando o caminho aberto para ascensão do espírito. O meu muito obrigado.

Flávio Cavalcante.

ÍNDICE

1. Comunicação

2. Relato de Rita Preta

3. A humilhação

4. Último pedido

5. Diálogo com o médium

6. Descoberta que Rita Preta sabe ler

7. Rita diante de Cavalera

8. Revolta do negro Zibú

9. Zibú faz estratégia para a sua fuga

10. Rita Preta acorda e recebe a notícia que o negro Zibú fugiu

11. Rita Preta é avisada pelo Cavalera que o negro Zibu foi vendido

12. Desespero de Rita Preta na senzala

13. A caça ao negro Zibú

14. Reflexão do assistente mediúnico

15. Zibú tenta fugir, atravessando a ponte de águas correntes.

16. Cavalera ordena matar o negro Zibu

17. Rita recebe a notícia de que capturaram o negro Zibu

18. A fome

19. Rita Preta diante de Cavalera, pede para ler uma carta.

20. O arredor da casa

21. A opressão

22. Rita se apaixona pelo filho de seu dono

23. Rita fala pra Victor que o Cavalera matou o negro Zibú

24. Rita Preta fala mais de seu romance.

25. Victor fala da idéia da imperatriz de lançar uma lei de liberdade.

26. O primeiro passo para a mediunidade.

27. Rita Preta desconfia que o Victor é um desencarnado

28. A revolta de Rita Preta em coma de Cavalera.

29. A revelação

30. Rita Preta e a gravidez

31. Rita foge para proteger a criança

32. Rita vai ao tronco novamente

33. O reencontro

34. Um dia longo demais

35. O carroceiro

36. O casamento de Rita Preta

37. Uma visita inesperada

38. O desencarne da escrava Rita Preta

39. A decadência de Cavalera

40. A morte de Cavalera

41. A descida do espírito junto ao corpo

42. O dia do nascimento e o dia da morte.

(Momento solene para encarnados e desencarnados. Médium empresta seu corpo para trabalhos de esclarecimento a espíritos ainda duvidosos e indecisos. A penumbra provocada por uma luz azul escuro e mortiça e o som solfejante de uma musica envolvente, dá ao ambiente uma conotação ideal para aquele momento de ternura, amor e paz).

COMUNICAÇÃO

Começa então na mesa retangular, circundada por médiuns de experiências notáveis. Momento propício para uma comunicação do além túmulo. Os que estão fora da mesa, ficam observando na assistência, dando um equilíbrio maior no trabalho mediúnico. Os que estão na mesa neste momento, estão em transe, cada um fazendo o seu trabalho de elevação espiritual. Noutro ponto da casa espírita, vê-se uns escrevendo, outros pintando, outros ainda doutrinando os irmãos perturbados. Na mesa, ver-se um irmão desencarnado, incorporado em um médium, reclamando demais. O assistente mediúnico tenta doutrina-lo.

- “Por que está tão nervoso?”

Pergunta o assistente mediúnico que está à frente da mesa. Reponde o espírito furiosamente, dando a maior bronca no assistente mediúnico.

* Eu tou morrendo de raiva. "Eu vou destruir tudo isto aqui!

-Fique calmo, por favor, aqui é um ambiente de amor e conforto e estamos exatamente para tirar suas duvidas, pode falar; (Diz o assistente amorosamente para o irmão. Nesse instante a médium olha para o ambiente de um lado para o outro e fala com os olhos bem arregalados de espanto. “Que lugar é este? Eu não estava aqui, esta não é a minha casa!” Em um suspiro forte o assistente mediúnico precisava de alguma forma dizer que ele não pertencera mais a este mundo carnal. A missão para ele nesse momento é de intensa responsabilidade; pois, está diante de um espirito recém falecido e ainda não está sabendo do seu desencarne. “Por que o silencio?”, interrogou a médium espantada ainda com o ambiente. O médium levantou a cabeça, e disse: “Meu querido irmão”).

*Ih, já não tou gostando desse negocio de querido! (disse o desencarnado em tom de zombaria. O médium continua em silencio. O espírito continua falando para o médium, ainda sem nem pensar o que está se passando. "Esse seu silencio é que está cada vez me deixando mais nervoso ainda”.

- O que esta lhe atormentando?

(Interroga o assistente mediúnico com uma voz sempre amena tentando transmitir paz e amor. Eu não sei o porquê; lá em casa todo mundo me obedecia, meus filhos me temiam, minha mulher sempre me beijava antes de dormir, e só comia quando eu estava sentado à mesa! Agora tudo tá mudado; eu chego em casa e ninguém me liga, eu sento à mesa, todos saem sem me dar atenção... Ah, e quando eu vou dormir, minha mulher não me beija mais, eu falo com ela e ela não responde. É como se não tivesse ninguém do lado dela. Eu não lembro que fiz alguma coisa pra ela tá intrigada de mim! ” O assistente mediúnico ficou numa situação ali, que realmente era muito complicada; mas, ele não tinha outro jeito, a função dele era aquela mesmo e tinha que de alguma forma dar a noticia. Meus caros leitores, aparentemente é muito fácil falar que é banal uma situação como esta, mas, só estando na pele deste médium, para ver o quanto é difícil, os trabalhos num centro espírita. Não se sabe ao certo o que aconteceu. No meio do tumulto, ele, o assistente mediúnico, acabou revelando que ele não pertencera mais ao mundo carnal e só depois que mostraram que ele estava de saia e tinha seios, a partir daí, foi que ele caiu na real. Chorou muito, mas foi levado logo em seguida pelos espíritos mentores e assistentes. O silêncio pairou no ar. Uma paz repentina reinou no ambiente e incorporou um espírito diferente dos que eram costumeiros. Este não veio pedir, veio dar, ensinar. Assim que ele chegou cumprimentou a todos da mesa e abençoou. Disse que precisava deixar marcada a sua história, todos acharam estranho, mas compreenderam.

- Pois não, pode falar. Estamos aqui para ouvi-la! (Disse amavelmente o assistente mediúnico e ela começou a relatar a sua história).

* Era eu uma escrava ha três encarnações passadas, sofrida, humilhada pelo meu dono, apanhei quando jovem. Sofri a vida inteira. Não obstante, o meu sofrer não parecia ser realmente uma punição divina, mas, foi mais um crescimento de ordem espiritual. Hoje eu sei que tudo acontece e nada é por acaso. Tudo tem uma razão de ser. Reencarnei mais duas vezes, vivi de forma árdua até chegar ao nível de esclarecimentos que me encontro. Hoje, já não sou mais aquela pedra aparentemente embrutecida, dominada como um cavalo selvagem. Hoje eu sou serva, porque aprendi o que o grande mestre deixou para todas as nações, amar ao próximo como a nós mesmos.

(Palavras do autor). Aqui nestas singelas linhas, deixo marcado em um papel em branco e com uma tinta de coloração viva e quente, entranhada toda a historia de luta desta simples mulher negra, que passou por toda uma lapidação na vida espiritual e que depois de várias existências carnais, hoje, vivendo na espiritualidade, conta a sua bela história. Vamos fazer uma retrospectiva da vida da Escrava Rita Preta, já que todo o conteúdo de nossa história, começa nessa passagem em carne, sofrendo na pele um personagem vivido pelo sofrimento e aprendizado.

Relato de Rita Preta

13 de agosto de 1822. Cheiro de capim molhado. O nevoeiro da manhã dá a cena um presente de cenário natural, numa espécie de véu de noiva. Frio natural de um pé de serra. O sol começa a brilhar no horizonte. Com o calor, a nuvem que parecia de fumaça começa a se dissolver, mostrando gradativamente alguma coisa confundível para a nossa concepção ocular. Com impureza vista a olho nu. Devassidão num imenso verde ainda meio embaçado, que vai clareando aos poucos. Vê-se uma estrada de barro duro. Estrada estreita, a ponto de não passar mais ninguém além do carro barulhento puxado pela fileira de bois, separados em pares, por um pedaço de (pau). Entre a divisão de um matagal com folhagem um pouco seca. Ouve-se o grito do aboio do escravo que vem puxando a fila de animais inofensivos, carregando alguns fardos de feno para alimentar os cavalos do senhor todo poderoso, senhor do engenho. Dia árduo e pesado. Vê-se uma cancela, que ao abrir-se faz um rangido, do tipo que falta óleo em suas dobradiças. No fim do dia, numa certa distância a esta cancela, o cenário é muito cortês. Uma árvore frondosa e verde, marca a sua presença, não só fornecendo a sua sombra, mas também testemunhando o ato de crueldade em cima daquele escravo, obrigado a trabalhar forçado pelo homem que se diz seu dono. Ela marcava presença ali. Ao chegar embaixo da benévole árvore, o escravo repousa um pouco, tentando se aliviar do sol vil e causticante. Seria como se saísse do inferno e entrasse no céu. Até o clima parece que mudou. Claro, que é tudo psicológico. Na realidade o que se ver, não é nada demais do que uma luxuosa e espaçosa casa, pertencente ao senhor de engenho “Cavalera”. Era um sonho de casa, não se pode negar! Pertence aos Cavalera. Gritos do impacto das ferramentas cortantes, ao atingir as varas de cana de açúcar. Trabalho realmente desumano. Ainda era mês de agosto e o sol castigava por bastante tempo. Fazia tempo que não chovia no engenho. Todos estavam no trabalho duro, juntamente com os animais, sem ter direito a nenhuma piedade.

Na hora do almoço, os nossos donos saiam para suas mansões, enquanto nos íamos para senzalas cheio de capim, para comermos os restos se tivesse sobrado do banquete dos senhores patrões. Mas em termo de confissão. Apesar de todo aquele sofrimento eu gostava mesmo, era de estar junto do meu povo, pelo menos não havia a hipocrisia da grande fortuna. Ali, naquele simples lugar, conversávamos a respeito do futuro. Eu sempre fui aconselhada pelos meus pais. O meu maior sonho era aprender ler e no meu grupo não existia ninguém que soubesse. Eu era realmente atrevida. Consegui aprender depois de muito esforço. Os meus pais quando me viam juntando algumas letras entravam em pânico. Eu não sabia o porquê e quando eles me contaram, o pânico tomou conta de mim e fiquei tomada pela raiva. Chorei muito. Minhas lagrimas corriam como bica; aquela surra de palavras simples, ficara profundamente marcada em meu peito. A partir daquele momento foi que vim perceber a gravidade de aprender alguma coisa. Éramos taxados como incapazes, escravos jamais seriam capazes de aprender qualquer coisa, uns verdadeiros bichos, assim, eles pensavam que fôssemos. Verdadeiros bichos. Eu queria mudar este quadro. Não liguei para as conseqüências que pudesse vir para o meu lado. O meu pai se chamava Zibú. Negro cobiçado pelos senhores dos outros engenhos, pela qualidade de seu serviço e sua arcada dentaria, que era invejável. O que eu mais temia era perder o meu pai, que algum senhor de engenho comprasse caro o que era de mais de precioso para mim. E vendo ele, a minha persistência em aprender a ler, disse com um olhar apavorante, como que pedindo até pelo amor de Deus. Os olhos dele me diziam que eu não fizesse aquilo. E mesmo antes que ele dissesse qualquer palavra eu retruquei de imediato. "Mas meu pai veio, o que ha de mal nisso?" Ele me olhou e disse "Eu não quero lhe perder! Nesse mundo, minha filha; negro nunca foi gente e não pensa! Isso é coisa pra homem branco! Se ele descobrir que existe um negro que sabe pelo menos ler, de uma coisa eu tenho certeza. Por certo, nunca mais vou vê-la "Você é uma negra bonita! Não está cobiçada ainda, pois, com esse seu ato, não vai demorar alguém se interessar em lhe comprar por uma boa quantia e isso é muitos contos".

Apesar de sofrer com o conselho de meu pai eu não desisti. Eu era muito jovem, ainda, tinha apenas quinze anos e nunca me passara pela cabeça, que tudo que eu pensei em fazer para que no futuro viesse me trazer alguma benéfice, iria se transformar num mar revolto de terror e desespero. Finalmente consegui aprender a ler e a escrever, mesmo com algumas letras incompreensíveis. A partir dai, eu já estava estudando até as escondidas dos meus próprios pais; por incrível que pareça, tudo que eu estava fazendo era pensando num futuro para eles mesmos. A minha lida continuava e eu já estava conhecendo o evangelho de Jesus, que coisa linda eu achava quando conseguia soletrar alguma passagem. Eu levava o dia inteiro para entender alguma coisa que os doutores entenderiam num piscar de olhos. Cada vez que eu pegava o evangelho sentia algo muito forte dentro de mim. Era algo que hoje depois de tantos degraus já percorridos, é que consigo entender o motivo de tanto prazer. Só sei que a vontade de continuar aprendendo a ler e a escrever, era de uma grandiosidade que não pertencia a esta dimensão. Era maior do que todos aqueles meus donos, era maior do que eu, a ponto de não conseguia me dominar. Era como se alguma força do mal, tivesse entranhado em meu ser. O tempo foi passando e eu cada vez mais me interessava. Fui sentindo um certo desenvolvimento. O tempo que eu passava lendo uma pagina e compreendendo cada linha, já não era mais como anteriormente. Eu queria mais e muito mais. O prazer da descoberta era como o prazer do amor.

O tempo passava e a vontade de se tornar alguém era muito forte! Chegava hora, que eu me pegava exclamando em pensamento. "Tem coisas na vida que eu não entendo; os filhos desses coronéis têm tudo nas mãos e não sabem aproveitar a oportunidade que lhe são dadas. Queria eu, ter a oportunidade que eles têm”.

Eu gostava do lugar onde eu morava. Eu era feliz. Vivia feliz, apesar do sofrimento; mas, eu tinha o aconchego da minha família. A felicidade de negro sempre durou pouco, principalmente naquela região e naquela época, que os homens compravam homens como animais irracionais e eram tratados como tal. Lembro-me como hoje. Já era nos meados de agosto, final de tarde; a vista a frente, era de um dia mórbido. O morrer do sol me fizera ficar triste repentinamente. Estava eu, naquele momento, sentindo que algo ruim estava para acontecer. Ao chegar em casa estava mãe Preta no canto chorando e meus irmãos amontoados no canto do celeiro, também demonstrando no olhar, uma profunda tristeza. Minha mãe Preta, só estava me esperando para dar a triste noticia. “O que foi?” Perguntei, já querendo entrar em pânico. Meus dois irmãos se aproximaram fazendo um exemplo de partir o coração, um semiciclo dando idéia de aliança. Minha preta velha limpou os olhos e disse-me tropeçando a voz. " Seu pai vai partir, Rita”. Pra onde, disse eu, já praticamente em estado de choque. Antes de ouvir a resposta, minhas pernas cambaleavam demais. Eu piscava os olhos descontroladamente. Realmente veio a pedrada. A triste notícia de que meu pai iria ser vendido para um estrangeiro que estaria passando alguns dias no país. Naquele momento de tanta angustia e choro, algo de ruim tomou conta do meu ser novamente e dessa vez de uma forma horrenda. Não sei se era fraqueza, ou se era medo. Só digo uma coisa, meu irmão, o meu sofrimento transbordou naquele momento em forma de raiva do meu dono; era uma raiva tão grande que eu não conseguia me controlar. Chorei muito ao ver a minha mãe sofrendo. O meu pai foi entrando na sala e viu que aquele ambiente tão harmonioso acabara de tornar um cárcere de sofrimento e rancor. Minhas lagrimas não deixavam de rolar. Minha cabeça naquele momento passava como um filme, cenas ainda inéditas de um caso futuro e real. Via-me com um punhal preso fortemente entre meus dedos. Via-se claramente em meu semblante, a marca de uma vingança, que refletia nos meus dentes claros, que travavam com muita força no interior da minha boca. O meu pai insistia em permanecer em silencio, o que me deixava quase em estado de loucura. Pedi para ele que não se preocupasse comigo; pois, eu ia conversar com o Cavalera, meu dono e senhor. "Não se preocupe, papai! Eu vou tentar resolver isso” disse para o meu pai o ZIBU cheia de esperança. O pai negro me olhou e sorriu e a única coisa que falou, me fez refletir. Disse-me claramente em sabedoria. “Seja o que Deus quiser, minha filha. Afinal, sinto que o destino vai modificar as nossas esperanças. Rita Preta não falou, apenas chorou, chorou e chorou...

A HUMILHAÇÃO

Diante do grande homem calçado numa galocha de muito luxo, o temido senhor dos escravos, era conhecido não só pelo fato de ser um nobre senhor de engenho e sim pela sua crueldade e loucura. Mesmo sabendo desta raiva que Cavalera depunha em seus animais encarcerados dentro de uma senzala, aquela negra resolveu ir ao encontro da tão temida fera. Abriu a porta de entrada lentamente, porta esta, feita de madeira trabalhada no estilo gótico. A casa tinha uma varanda muito grande, que rodeava toda a casa. Rita pára diante de Cavalera e o observa sem dizer uma só palavra. Cavalera balança a sua rede, percebendo a presença de Rita Preta, mas se faz de desentendido, como uma cobra peçonhenta à espera quieta da sua presa. Cavalera provoca susto na Rita.

- O que é que tá querendo aqui, negra? Como ousa a se aproximar de seu dono? Coloque-se em seu lugar! (Em uma pausa, Rita fica assustada). Vamos saia daqui, antes que eu lhe mande para o tronco...

(Mesmo ouvindo aquelas palavras grotescas, Rita não desiste e desafia o temido, se aproximando cada vez mais).

* (Em tom de revolta). Eu não tenho medo do senhor! Eu sou negra, mas sou gente! (Cavalera levanta da rede em salto).

- Você é o que? (Dá uma gargalhada de loucura). Tem coragem de repetir o que disse, esse front diante do grande senhor, seu dono, negra?

Cavalera volta-se para a Rita, tomado por um ódio inominável.

- Você não vale nem a lavagem que come, Rita Preta! Você é negra! O seu valor está no seu trabalho e nos seus dentes; não, na sua cor! Saia da minha frente, antes que eu tenha uma má digestão e vomite aqui, no chão! Não me faça fazer você lamber gota por gota da porcaria que eu vomitar... (O assistente mediúnico ouve aquelas palavras sofredoras que o espírito da escrava insiste em deixar marcado na mesa mediúnica).

- Continue, irmã... A sua história é magnânima! É fascinante! (Disse o Médium, sentindo até meio constrangido, sem saber o porquê o espírito da escrava Rita preta, insistia tanto em deixar claro a sua história. Mesmo assim, a ouvia com muito respeito. Rita continua a história, que fizera crescer espiritualmente).

* Ele não queria fazer o bem! Era como vivesse vinte e quatro horas de sua vida grudado ao demônio. Era digno de pena, aquele que se dizia meu dono, aquele que me tratava como se eu fosse sua propriedade, um objeto qualquer sem valor nenhum. O que mais me impressionava, era que mesmo sabendo dos meus limites de escrava, apesar de ser carnalmente falando menor que ele, sentia dentro de mim, um crescimento altíssimo diante dele; não o querendo menosprezar, jamais. Mas é que eu conseguia enxergar longos horizontes. Talvez fosse por esse motivo que eu o encarava, mesmo sabendo que depois ia amargar sobre o sol causticante, presa e acorrentada num tronco fincado em frente a sua mansão. Mas cheguei a ponto de derramar lágrimas aos pés de Cavalera, pedi humildemente piedade, para que ele poupasse o meu pai das garras daquele estrangeiro. Mas foi em vão.

(Rita se aproxima de Cavalera e pede clemência, ajoelhando-se aos seus pés).

- Piedade, senhor! Peço-lhe piedade! Deixe meu pai em paz...

(Cavalera recusa, arrastando-a da sala pelos cabelos. Puxa-a até a rústica janela de sua casa e mostra o tronco posto na frente da casa grande. Olha bruscamente em seu olhar arregalado e diz).

- Está vendo aquele tronco ali, Negra? Olhe bem para ele!

(Rita fica sem dizer uma só palavra. O Cavalera continua interrogando-a de forma humilhante sagaz e cheio de ironia. O silêncio da escrava o faz ficar mais furioso ainda).

- Como é, negra? Não vai me responder? Então confirma o que eu falei! Você não vale nem a lavagem que come! Por causa desse seu silêncio e por invadir a minha privacidade, vou mandar lhe dar algumas chicotadas diante de todos! E espero que isso sirva como exemplo!

* Faça como quiser comigo, mas por piedade, lhe peço! Deixe meu pai em paz!

(Cavalera enlouquecido chama seu capacho, o Severo cinto de Couro e ordena que leve a escrava para ser chicoteada no tronco e pede que sirva de exemplo pra todos os negros do engenho. Chega o Severo na sala de Cavalera).

- Chamou Cavalera?(Disse o Severo).

Cavalera retruca sem nenhum dó da negra:

- Quero que ensine a esta negra a respeitar o senhor seu dono! Leve-a para tronco, juntamente com o negro Zibu! Chame os escravos para presenciar as chicotadas. Deixe marcas nas costas dos dois, para quando lembrar, nunca mais me desrespeitar.

* Meu pai não fez nada, senhor! (Disse a Rita com expressão de pavor. Em tom gritante, Cavalera fala).

- Mas vai para o tronco também. Nunca mais ouse me desafiar e me faltar com respeito. (Disse Cavalera com expressão de ódio).

Rita encara o Cavalera e suspirando muito forte, toma pulso e fala.

* Eu não lhe faltei com respeito, senhor!

(Com raiva, Cavalera mostra o seu lado bruto e torna-se concreto o seu ato brutal. Transiciona cheio de ódio em cima da escrava).

-Que atrevimento! Eu sou mentiroso, negra?

(Grita Cavalera tomado por um ódio, chegando até o ringir de dentes. Sem conter a raiva, criva os dentes como um cão doente e mete a mão na cara de Rita a qual cai em lágrimas. Cavalera insiste com seu capanga).

-Leve-a para o tronco e dobre o número de chicotadas. Vá depressa! Desapareça da minha frente! (Grita). Saia! Não esqueça de levar o negro Zibu, para ser chicoteado também.

(O Severo sai puxando bruscamente a escrava. Cavalera curte a solidão da sala, com o silêncio de seu ato animalesco, com expressão de mau, sem nenhum ressentimento. Rita é amarrada no tronco em pleno rubro e fervente sol. Todos vão se aproximando para assistir aquele espetáculo nada interessante! Um negro corre para avisar a mãe de Rita. O espírito dá uma transição em forma de pausa. Voltando à mesa mediúnica, Rita continua contando a sua bela história, já em fala tropa, parecendo estar muito presente na sua memória ainda muito dolente. Um silêncio novamente paira no ar).

-Rita, você ainda está aí?!

Pergunta o médium, preocupado com o silêncio.

-Sim, eu estou!

Retruca a Rita, se recuperando do seu silêncio. O assistente mediúnico continua a interrogação da escrava, pedindo para ela ficar à vontade, se quiser continuar a estória de luta que para ele, está sendo uma lição de vida estupenda. Continua a falar, o espírito iluminado.

ÚLTIMO PEDIDO

“Assim, o feito da Escrava estava prestes a advir e a certeza de que ia enfrentar uma barreira em sua lida frente à frente a uma grande fera, que estava sempre com a boca arreganhada esperando sua presa. Precisava de muita cautela para enfrenta-la sem ser devorada pelas presas afiadas daquela besta humana”. (O espírito continua).

Mas fui! Encarei-o dentro do olho! Não vi com olhos humano. Mergulhei mais profundo do que possa imaginar! Fui busca-lo dentro das profundezas da alma. Precisava dar uma lição espiritual nele! Assim como Jesus Cristo enfrentou o império Romano e terminou pregado numa cruz, sabia eu, que não ia ser diferente comigo. Apanhei no tronco, perante todos escravos da fazenda e meu pai também amargurou, como ele determinara. Gritava de dor, mas até que a dor da carne doía menos que a dor moral; pois, sabia que meu pai estava sendo castigado inocentemente. O calabrote estalava na minha pele, e o assobio do relho ainda grita em meu ouvido depois de todos estes anos e eu só conseguia gritar. Mas por incrível que possa parecer! Eu ainda lembrava de nosso senhor naquele momento de sofrimento e eu não o blasfemava; mas agradecia a ele pelo simples fato de estar tendo aquela oportunidade de vida. É uma dor indescritível, mas com a fé, essa dor foi um pouco amenizada. O calabrote rasgava os trapos que cobriam meu corpo, como uma espécie de roupa, mas, mesmo amortecendo a ida e vinda do balouçar cortante daquela açoitada, fizera em meu corpo, regos profundos e dolorosos. Estava eu, fraca e ao mesmo tempo anestesiada, e meu pai já desacordado. Confesso! Pensei que aquele dia seria o último dia da minha vida. Ainda consegui olhar para o lado e ver a minha mãe jorrando toda a sua lágrima, junto de meu pai, que não agüentando acabou desacordado. Minha mãe gritava!

“Pare com isso, pelo amor de Deus”... (Ela pedia clemência). “Não matem minha filha”...”

Através da médium, Rita derrama sua primeira lágrima.

-Se não quiser falar, pode ficar à vontade! (Disse o Médium que presidia a mesa. Mas Rita preta insiste em continuar a sua história, dizendo ser preciso).

* Eu preciso continuar! Desculpem-me, mas é necessária toda essa declaração; está chegando o momento de uma ascensão. De um passo para um futuro brilhoso! Eu posso até tá parecendo meio confusa, mas às vezes é de grande necessidade. É estupefato o caminho longo que vamos ter que percorrer. Não se pode gastar todas as energias no momento. Vamos precisar delas ao entardecer, para enfrentar o frio da madrugada.

-Fique à vontade, minha doce irmã! A nossa função aqui é exatamente esta. Ouvir e ser paciente! (Disse o assistente da mesa com muita calma e carinho).

DIÁLOGO COM O MEDIUM

Aquela mesa, naquele exato momento, parecia que tinha uma luz intensa e um cheiro de rosas pairava no ar. Era um momento de prazer e paz para o assistente mediúnico. Mesmo a luz ambiente estando um tanto mortiça, quase que escura, não dava pra perceber a penumbra; era como se eles tivessem anestesiados. A vontade que abraçava cada um deles na mesa mediúnica, era por demais, e a sensação naquele momento de ternura, era de ficar calado; só ouvindo aquela entidade com uma história tão fabulosa. Acho que aquela música suave, que inundava o ambiente, também contribuiu, ajudou o momento. A sensação que dava, era que estava ali, certamente, um espírito fidalgo de muita luz. Meus olhos incontrolavelmente deixaram escapar várias gotículas de lágrimas. Estava eu, emocionado, sem saber o motivo. A paz reinara de uma forma maravilhosa, que o tempo estava passando diante de nossos olhos, mas era como se aquela sessão fosse somente para a comunicação daquele espírito iluminado. Chamou a atenção de vários médiuns presentes, que nenhum espírito se comunicara naquele instante! O ambiente estava solene, numa calma perceptível por todos e mesmo invisível, notara uma luz muito incandescente através da sensação de paz, transmitida por aquela entidade de luz própria. Era um espírito de muita luz. Pelo silêncio dos outros irmãos desencarnados, que estavam recebendo ajuda espiritual, acredita-se que se curvaram diante da áurea de Rita preta. Que tipo de fluido carrega essa entidade? (Pensa o Médium. Imediatamente, Rita retruca, após ler o pensamento do Médium).

* Crescimento espiritual. Na vida tudo é uma escola; tudo significa aprendizado, crescimento. Se eu transmito isso de bom que você está sentindo, porque eu procurei. Quem procura acha.

Estático, o médium balança a cabeça afirmando e continua interrogando-a...

- Aí você saiu do tronco. Faleceu ali?

* Não, escapamos com vida. Fomos levados para a senzala e fomos tratados com ervas cicatrizantes. Mas como tudo na vida passa e só o tempo é quem cura as feridas abertas, o tempo passou diante dos meus olhos... Essa eu acho que foi a fase que mais serviu de aprendizado nessa existência, pois consegui supera-la sem guardar ressentimento.

O assistente mediúnico, vislumbrado com a história de Rita Preta, não se conteve em fazer todas perguntas, que não paravam de chegar em sua mente e mais uma vez, o espírito da escrava foi abordado pelas interrogações.

-E teve outra fase nessa mesma encarnação que marcou a sua vida?

* A escrava sempre paciente, lhe responde sem constrangimento, todas as pergunta.

* Acho que toda a minha existência nessa época fora inesquecível para mim. Lembro-me bem o dia que Cavalera descobriu que eu sabia ler e escrever.

- Nossa! Acredito que essa parte foi a que deve ter sido realmente uma barra para você. (Diz o assistente mediúnico).

DESCOBERTA QUE RITA PRETA SABE LER

* O que havia de mal nisso?! Não pensei que fosse repercutir tanto na minha vida, o fato da minha revelação para com o Cavalera! Aprendi a ler e a escrever o meu nome... Meu Deus! Que transtorno eu trouxe, para minha vida. Parece que o inferno desabou dentro de mim e dentro da minha casa. Meus pais quando souberam que eu estava escrevendo e lendo, sofreram como se eu tivesse furtado alguma coisa, tentado alguma fuga, sei lá, ou então matado alguém. Assim me senti, uma negra rejeitada pela minha própria família. Parecia que naquele momento, um punhal traspassava o meu peito me ferindo profundamente. Senti-me como se eu não fosse absolutamente nada. As cobranças eram imensas, meus pais não foram mais os mesmo de antes, e na realidade eu não estava sendo rejeitada, como assim pensara; eu estava sendo mesmo, era protegida da garra daquela fera indomada e sem coração. A minha imaturidade era que não deixava de hipótese alguma enxergar o grau de perigo que eu estava correndo. Confesso que eu era uma negra atrevida! Aquele corpo, que abrigava o meu espírito era de uma mulher sem instrução nenhuma, mas o horizonte que eu enxergava, ia além das fronteiras do pensamento. Apesar de que Cavalera se punha em um trono como rei, pelo dinheiro e o poder que a ele cercava, não enxergava a profundidade das simples coisas que estavam em sua volta. Mal sabia ele, que estava nesse mundo, e a lei natural é dura. “Aqui se faz, aqui se paga” Por incrível que parecesse, eu o compreendia perfeitamente. Sabia ser paciente e agir na hora certa, por isso que eu achava estranho, um homem com tanto poder monetário, mas sem nenhuma visão espiritual. Apesar de escrava sem instrução nenhuma, eu me considerava uma mulher madura.

- E ele descobriu, que você estava lendo e escrevendo? (Pergunta o mediador da mesa para o espírito).

- Ele descobriu um papel escrito o meu nome, com letras mal desenhadas e mandou me chamar para a nova sessão de interrogação? Qualquer pessoa se sentiria orgulhosa em receber elogios, mas logo que recebi o recado do senhor todo poderoso, lembrei-me de imediato que havia deixado essa pista. Ao invés de me sentir naturalmente orgulhosa, fui falar com ele constrangida com medo de ser vendida para algum senhor de fora. Negro na época era tido como bicho burro e nada mais do que isso, era raro encontrar um negro que soubesse pelo se expressar, quanto mais ler. Éramos do trabalho árduo e pesado. Algumas horas depois, estava eu, diante do temido por todos os negros do engenho.

RITA DIANTE DE CAVALERA

* Pois não?! (Se aproxima a negra cabisbaixa).

- Aproxime-se negra! Poderia me dizer o que significa isso? (Expõe o papel para Rita Preta).

* (Meio temerosa). Não sei do que está falando, senhor!

(Responde a Rita, sempre mantendo sua pose de quem realmente está acima, mas temerosa. Cavalera percebe que Rita, apesar de ser uma simples escrava, algo mais ela transmitia.Nem ele mesmo sabia o que era, mas inconscientemente os olhos dela falava com o seu eu interior).

- Não sei, mas, você me inspira problemas, sabia, negra?

* (Sem entender). Como assim, senhor?

- Já disse que não sei, mas algo me diz que você é uma ovelha muito má. Isso é muito má, Rita preta e faz muito mal você está no rebanho.

(Era um insano que estava na minha frente. Mas também era dono do mundo, aqui no mundo carnal, era o meu dono. Aquelas palavras soavam em meus ouvidos, como trombetas anunciando a morte de inocentes dentro de arenas na época da Grécia antiga. Via a biga decepando a cabeça de um condenado. Minha mente trabalhava a todo vapor. Cavalera não podia de forma alguma conceber que aquele simples papel se tratava do fruto do meu aprendizado. Mas as interrogações retornaram a apunhalar o meu peito, que já estava arfando de cansaço e medo. Não do demônio por eu estar diante dele, mas, pelas conseqüências que um escorrego de minha parte, por mais singelo que fosse ele, pudesse trazer. Pensei que aquele pesadelo não fosse me largar nunca mais. Mas com a graça divina, consegui contornar a situação).

REVOLTA DO NEGRO ZIBU

- E o seu pai? (Pergunta o assistente mediúnico).

* O negro Zibu! Lembro-me como se fosse hoje, a ira de meu pai quando saiu daquele tronco com o corpo todo em chagas, todo molhado em sangue e o pior, sem ter feito absolutamente nada. Ele transmitia em seu semblante toda a raiva de um bicho embrutecido, quando castigado, um cão faminto ao devorar sua presa indefesa. Assim meu pai, ringia os dentes e prometia vingança, prometia matar o Cavalera de alguma forma. Na cabeça dele não passava outra coisa, que não fosse vingança.

Na senzala, existiam outros negros. Não era um lugar grande; era uma espécie de depósito de feno. Tinha um forno à lenha de barro duro num canto de parede, onde a mãe Preta fazia várias comidas gostosas. A precariedade era intensa. Vivíamos como animais; enquanto o Cavalera e seus familiares esbanjavam fortunas, dando grandes festas para os estrangeiros que vinham de fora em navios, trazendo outros negros para novas negociações. Graças à nossa própria resistência, nunca houve caso de enfermidades com nenhum de nós. A única doença de difícil cicatriz, era a da humilhação, quando se via outros negros da mesma senzala, sendo expostos e humilhados; um espetáculo para Cavalera e seus compradores de fora. Eles escancaravam a bocarra dos infelizes, para expor seus dentes que eles chamavam de saudáveis. O negro era vendido como se vendia cavalo.

Meu pai passou por esse constrangimento, além de levar tapas na cara pra expor ao estrangeiro a sua resistência. Nesse dia, pela primeira vez na vida, vi meu pai chorando, assim que chegou na senzala. O ódio tomou conta do seu ser, de uma forma horrenda. Mais uma vez o negro Zibu, promete a vingança e eu nunca concordei com nenhum tipo de violência. Aquela cena me fez tomar uma atitude, dando um basta naquelas idéias malucas de meu pai. Chamei-o para uma conversa à vista de mãe Preta e eu pedi, pelo amor que ele depunha para comigo, que ele não tentasse nada contra o Cavalera. O negro Zibú limpou a última lágrima que resvalava em sua face e em tom de muita revolta lhe disse.

- Minha filha! Minha Ritinha! Lembro-me do dia que você nasceu!Nunca pensei que eu fosse ficar tão feliz! Você é e sempre foi a maior riqueza que Deus pôde me dar. Por você eu sou capaz de qualquer coisa; mas, por favor, não me peça isso. Apesar de ser um negro, sou um homem igual ele. Por mais que eu lhe diga que vou esquecer o que esse miserável me fez, posso lhe afirmar. Estou enganando não só a você, mas também aquele lá de cima.

Rita ouviu aquele desabafo e tentou lhe aconselhar; esquecer o que passou. A maturidade da escrava Rita Preta era tão grande, que nem ela mesma percebera a intensidade de sua evolução. Agia ela, como uma guia espiritual naquele momento.

*Meu pai! Não se paga violência com violência! Tente ama-lo ao invés de odiá-lo! Vamos dar uma lição de vida! Vamos mostrar para ele, indo por outro caminho, que ele está errado. Vamos ter paciência. Sinto que algo de bom está para acontecer e não estar muito longe.

ZIBÚ FAZ ESTRATÉGIA PARA A SUA FUGA

Tudo foi armado de forma aparentemente segura, tudo sem o conhecimento de Rita Preta. Estou falando como se a história não tivesse acontecido comigo. Zibu, negro valente e bruto, para não colocar em prática a sua concepção em si tratando de Cavalera, resolveu planejar uma fuga. Chegou para a sua mulher, a mãe Preta e comunicou que naquela mesma noite iria fazer parte de um bando de negros fugitivos.

- Mas pra onde é que tu vai, home? (Pergunta a mãe Preta, cujo nome é desconhecido. Pois o espírito da escrava em nenhum momento citou o nome dela).

- Eu vou me juntar aos companheiros das caravanas. Eu tenho que ir, se não vou acabar com a minha vida e quem sabe a de vocês também. Prefiro ir. (Olha para a negra mãe demonstrando muita dor em seu olhar e alisa a sua face, fazendo um carinho. A velha negra chora, mas compreende a atitude dele).

- Vá com Deus! Cuidado! (Zibu ainda continua a falar).

- Hoje à noite na hora do canto da coruja, eu fujo. Não quero que Rita fique sabendo que eu fugi. (A velha negra retruca em tom de preocupação).

- Tem idéia para onde vai, Zibu?

- Já tá tudo marcado!Eu tenho que chegar até a ultrapassagem do rio, sem ninguém sentir a falta de mim. Depois, do outro lado da margem, é só se juntar a outro bando e correr pra palmares, de lá pra serra da barriga, é um pulo. Fiquem com Deus!

E assim, o feito foi concretizado. Na noite programada, logo depois do canto da coruja, (“Canto da coruja”, porque na época os negros sabiam as horas pelas formas naturais. O canto da coruja sempre indicava que já era madrugada) Zibu pegou seus malotes e saiu na calada, sem ser visto. Rita preta estava dormindo e nem imaginava o que estava acontecendo e o pior, nem ela e nem mesmo o próprio negro Zibu, imaginavam as conseqüências que essa fuga iria provocar. Mal sabia ele, que o céu iria desabar sobre a cabeça de sua família. Conseqüências desastrosas para Rita preta, que ainda não conhecera o lado negro do instinto animalesco e cruel do seu dono.

RITA PRETA ACORDA E RECEBE A NOTÍCIA QUE ZIBU FUGIU

*Não foi nada fácil para eu, saber da triste notícia. No dia seguinte foi o pior dia da minha vida. Aliás, nem sei qual era o pior dia, pois, cada dia que passava na minha vida, era marcado por uma cruz que eu tinha que carregar até o calvário. Olhem, aqui, deixo mais uma vez registrado um passado ainda muito presente na vida carnal de uma escrava.

(O mediador da mesa mediúnica mais uma vez marca presença em suas interrogações).

- Existe algum motivo especial de você querer deixar marcada essa história, realmente fabulosa?

* Sim! (Disse o espírito e o Mediador continua as suas interrogações; pois já começa a se envolver na história, como se estivesse se familiarizando).

- E qual o motivo?(Pergunta o assistente).

* Não é o momento de revelar, pelo menos agora não... Mas é de extrema importância que me escute! Apenas escute!

- Desculpe-me, por favor, às vezes me empolgo e...

* Natural, tenha calma e paciência... As palavras que tento deixar aqui, contando minha história, não é nada de interessante, quando sentida na pele de uma pessoa ainda imatura. Hoje está superado!

No dia seguinte, acordei com a pavorosa notícia de que o meu pai, o Negro Zibu havia partido. Ai, como fiquei apavorada! Minhas pernas cambaleavam como varas de bambus ainda verdes. Mas por que meu pai fez isso? Atinei! Na minha cabeça passava um filme e fiquei muito mal!Falei para a minha mãe, que já não conseguia segurar a emoção e chorava compulsivamente. “A senhora imagina o que significa isso?Prepare-se que a fera faminta vai começar a morder tudo que encontrar pela frente”. Assim o feito foi mais uma vez consolidado! Cavalera assim que ficou sabendo da fuga do negro, explodiu de ódio, derramando todo o seu veneno em cima de Rita Preta. Na senzala, assim que o sol desceu, e o canto dos grilos e das cigarras, começou a dar início ao grande show musical, avisando a chegada de mais uma noite, que principiou na chegada de um dos capangas do engenho com um recado de Cavalera para Rita Preta, que ela comparecesse de imediato na casa grande; pois ele queria saber onde está o negro Zibu. Rita olha para a sua mãe, a qual devolve o olhar em expressão de pavor. Seus olhos arregalados já pressentiam que algo de muito ruim, estava prestes a acontecer. Rita Preta também percebera isso. Rita mais uma vez se comportou como uma pessoa madura e diz:

* Tenha calma! Cuide das crianças, que eu vou ao encontro da fera!

- Minha filha! Eu tenho muito medo... Vá com Deus! (Disse a mãe preta, com expressão que não estava nada satisfeita, pois, ninguém atinara o que poderia acontecer depois dessa conversa com o Cavalera. Rita Acalma sua mãe e sai).

RITA PRETA É AVISADA PELO CAVALERA QUE O ZIBÚ FOI VENDIDO

Antes de entrar na mansão, Rita parou em frente à varanda e ficou estática por um período muito curto, como se ela, apesar de sua maturidade, chegasse a temer, pois dependia dela o futuro de sua família naquele momento. Era desconhecido o que viria pela frente. Próxima a uma planta, Rita beija uma flor, como se estivesse pedindo proteção a ela. Depois de um longo suspiro, entra com toda garra na mansão, passando pelos cômodos da casa. Abre a porta principal e o Cavalera, de costas para Rita, antes de qualquer coisa, pergunta pelo negro.

- Onde está o negro Zibu? (Interroga o senhor de engenho, descarregando sua fúria em cima de sua escrava).

* Não sei aonde se encontra o meu pai, senhor! (Retruca a Rita já em estado de pavor. Cavalera não desiste e a pressiona bruscamente).

- Ele acabou de cavar o próprio buraco!

* (De olhos arregalados com expressão de pavor). O que tá querendo dizer? Pelo amor de Deus, não faça mal a meu pai, senhor!

- Consegui uma fortuna, por ele! Uma venda bem interessante!Já tava fechada, com o gringo! Eu vou dar até o final do dia, antes do entardecer para ele aparecer!

* E se ele não aparecer durante o entardecer, senhor?

- Você sabe o que vai acontecer com ele! A não ser que me diga onde está o fugitivo, negra! (Rita preta engole seco, sem saber o que dizer para Cavalera).

* Eu não sei onde tá o meu pai, eu já disse isso pra o senhor! Pelos céus, eu não sei! (Cavalera rir com desdém).

- Agora, saia da minha frente! O meu recado já está dado!(Com desdém). Só tem a chance de permanecer vivo até o entardecer... Saia da minha sala, eu já disse... Se ele não aparecer até o entardecer, vai ser questão de honra captura-lo e mata-lo na frente de todos. (Rita o encara e sai apavorada).

DESESPERO DE RITA PRETA NA SENZALA

A mãe negra abraçou a Rita Preta, envolvendo-a em seu ombro materno, que naquele momento de consternação fizera a escrava frágil, ter o afago e o apoio de alguém mais experiente.

* Realmente eu estava me sentindo como uma simples flor, com medo do ataque de sua larva. Uma depressão tomou conta de mim, estava eu, me sentindo um lixo, com medo de tudo e de todos. Minhas pernas cambaleavam trêmulas, em estado de choque, tive vários ataques de desmaios. Chorava compulsivamente; quanto mais eu tentava me controlar, era em vão, aí, era que o meu pranto vinha à tona. As minhas lágrimas insistiam em escorrer de face à baixo como uma bica. Até então a mãe negra em desespero, não sabia o motivo d’eu estar daquele jeito. Eu não tinha comentado a minha conversa com o Cavalera.

- Se acalme, minha filha! Precisamos conversar! (A mãe Preta sempre amorosa. Rita Preta limpa os olhos cheios de lágrima e com uma expressão de raiva).

* Canalha! Ele vendeu meu pai, para o estrangeiro, mãe preta!Parecia uma brincadeira, mas é de verdade!

- Mas seu pai fugiu, Rita! Não sabemos onde ele está!

* Isso é o que me preocupa! Cavalera insiste em dizer que eu sei onde ele tá! Deu-me até o entardecer desse maldito dia para ele dar notícia ou a gente dizer onde ele tá. Disse que se ele levasse prejuízo, era questão de honra encontrar e vai mandar mata-lo na frente de todo mundo. (A mãe preta demonstrou estar muito preocupada com o relato de Rita Preta, e interrogou a escrava, tentando conforta-la e se confortar).

- Minha filha! Cavalera não tem coragem de fazer isso...

* Faz sim! Faz muito mais do que a senhora possa imaginar!

Naquele mesmo dia começou a busca a mando de Cavalera. Ele fez uma reunião com todos os homens, capangas dos colegas fazendeiros da região. Juntaram alguns cachorros e saíram em busca de meu pai Zibu. Era um carma que eu sabia que estava carregando; roí muito o osso, pra saber que temos que agradecer a Deus, o simples fato de estarmos vivos. Oportunidade esta, que é pra poucos. Impressionante mesmo, que naquela época, eu sabia disso. Conseguia enxergar nesse patamar. Não sabia o porquê, mas enxergava. Acho que foi por este motivo que consegui suportar todos os dissabores da época. (O assistente da mesa mediúnica. Já está encantado com a história e pede pra Rita Preta dar continuidade e Rita relata como foi a caçada do negro Zibú).

A CAÇA AO NEGRO ZIBÚ

Era uma quinta-feira de tensão para os negros naquele engenho. O dia estava contribuindo para a cena. Estava chovendo Relâmpagos assustadores e trovejando muito. Todos temendo o pior, se amontoavam em cantos de paredes, parecendo bichos brutos com medo da repreensão de seus donos. Enquanto esta cena lamentável acontecia na senzala, o temido Cavalera estava fuçando de ódio, como um porco ao se aproximar da bacia de lavagem. O medo de Rita Preta se tornara cada vez mais intenso, cada vez que ela percebia o sol se aproximando do horizonte. Já se aproximava o que Rita Preta menos queria; o entardecer. Os cães raivosos ladravam e eram ouvidos alguns uivos, mesmo a uma grande distância. Dia de muita chuva e trovoada morrendo, para a tensão de todos. Os homens do comando de Cavalera já estavam caçando meu pai. Eu, descontroladamente, só orava aos céus, pedindo proteção para meu pai. Minha mãe, minha doce e adorada mãe preta, chorava e tentava acalmar as duas crianças, que também choravam, mesmo sem ter a mínima concepção do que estava acontecendo. Cada vez que o sol ia descendo no horizonte, eu entrava cada vez mais em desespero. Finalmente o inesperado aconteceu. A noite se aproximava cada vez mais rápido. O silêncio natural do mato adormecia alguns animais com hábitos diurnos, enquanto abriam-se as cortinas, para o espetáculo daqueles que surgiam na noite. A chuva deu uma trégua e os vaga-lumes clareavam alguns pontos remanescentes do dia que já estava quase indo embora. Chegou o que eu mais temia; a noite. Ah! A noite! Que noite longa, aquela. Todos adormeceram, mas eu não conseguia pregar os olhos em nenhum momento. Até o canto das cigarras estava me apavorando. Até a madrugada ficou estática, com o silêncio dos cães que não ladravam mais desde o entardecer. Assim fiquei até o raiar do sol do outro dia. Vez por outra minha mente trabalhava super acelerada, acho que a preocupação sem saber se Cavalera já tinha achado o meu pai. Para o meu consolo, finalmente tive a certeza de que os homens miseráveis e desumanos não obtiveram êxito na noite anterior; pois, os cães não voltaram a ladrar, me dando quase a certeza de que os trabalhos de buscas foram suspensos e só no outro dia retornaram. Eram intensos os latidos dos cães no dia seguinte, parecia que tinha sido reforçada a busca. Meu povo se acordou com o barulho, mas consegui acalma-los.

REFLEXÃO DO ASSISTENTE MEDIÚNICO

-É de se perguntar a nós mesmos, como um ser humano, que tem coração como qualquer um de nós, pode ter esse ato de tanta crueldade!?. Como é que um ser humano, filho do mesmo pai, que você, escrava naquela época, poderia viver só na intenção de fazer o mal?. Isso é o que eu não entendo. Meu Deus! Somos todos filhos do mesmo pai! Nós somos todos irmãos.

* Era assim! E por ser assim, tínhamos que aceitar; pois como diz o grande mestre, Jesus Cristo, “não cai uma folha de uma árvore, sem que o pai do céu permita”. Nada é por acaso, meu irmão. Tudo tem uma razão de ser. A generosidade do pai celeste é infinita e o sofrimento por menor que ele seja, é uma grande escola e temos que tirar proveito disso. Você não está aqui por acaso; como eu também não vim aqui por acaso. Como eu disse, tudo tem uma razão de ser.

- Gostei de sua magnífica história. Vou pegar uma caneta e papel para escrever toda a sua história, quero deixar rabiscado em linhas uma lição de vida e um ato de crueldade de um ser que não tinha mínima noção do que estava fazendo.

* O pior é que ele sabia o que estava fazendo. Tinha consciência disso. Mas continuando a minha história.

- Pode continuar! Já estou com tinta e papel em mãos!

* Pois bem! Então vamos por parte!(Rita continua contando a história e o assistente mediúnico começa a rabiscar no papel).

- Fale-me mais a respeito da fuga de seu pai, o negro Zibu.

ZIBU TENTA FUGIR, ATRAVESSANDO A PONTE DE ÁGUAS CORRENTES

*Pois é, os transtornos não foram os melhores. Nunca pensei que o Cavalera tivesse coragem de fazer o que ele fez.

- Pelo mau-caráter que ela era, com certeza não deve ter feito coisa muito boa!

* Exatamente! A crueldade parece que andava colada com ele! Muitas vezes eu imaginava que ele tinha algum pacto com o demônio, mas não, era também um carma na vida dele.

- E depois de todos estes anos, você o perdoou?

* Meu Deus! Quem sou eu para julgar alguém?Nunca consegui ter raiva dele!Ao invés do ódio, por incrível que pareça, eu o amava!

- Você é muito iluminada!

* Passei de ano na escola, não mais que isso!Agradeço a Deus pela oportunidade de crescimento!

- Gostaria de crescer espiritualmente!

* Mas você tem crescido bastante! Depois de várias reencarnações, finalmente, me sinto lisonjeada com você, que vem fazendo um trabalho maravilhoso, seguindo os ensinamentos do Cristo. Acho que foi o seu maior passo nessa passagem. Continue amando seu próximo, assim como o mestre nos amou...

- Nossa! Como você me conhece!Pelo visto somos muito próximos um do outro! Mas continue a sua história.

* Por três dias, eles não conseguiram pegar o meu pai. Acho que foi o negro que mais deu trabalho para o Cavalera. O que o deixou mais enraivado. Além de perder uma boa quantia para o estrangeiro, que veio só buscar o produto, também perdeu muito dinheiro para satisfazer o seu ego. Teve que arrumar homens para a difícil caça. Eu mesma, já sabia que o fim de meu pai, não seria só num tronco levando algumas chicotadas. A fúria de Cavalera era muito maior do que se possa imaginar.

- E ele foi capturado?

* Sim, lembro-me como se fosse hoje!Depois de quase três dias de sofrimento, tentando escapar das mordidas dos cães, meu pai chegou à margem do rio de águas correntes. Tinha esse nome, como o próprio nome indica, era quase impossível a travessia por ele. Mas o negro Zibu não tinha outra opção e teve que enfrentar a fúria das águas. Abro um parêntese aqui neste relato, só para fazer um breve comentário a respeito de meu pai. “Era um negro de muita coragem mesmo! Desde já posso lhe informar que ele não conseguiu a façanha atravessando o rio. Foi pego. Mas só conseguiram captura-lo pelo cansaço, fome e sede. Enfrentar a fúria das águas ele enfrentaria mesmo. Mas o cansaço foi maior e ele acabou desmaiando. As águas saíram arrastando seu corpo pelos lajedos até a margem e por destino dele mesmo, não foi vitorioso. (O espírito fica em silêncio por alguns instantes!”).

- Fique à vontade! Se achar que devemos parar, a gente pára!

* Não, eu preciso prosseguir!Eu já disse!Nada é por acaso! Tudo tem uma razão de ser.

CAVALERA ORDENA MATAR O NEGRO ZIBU

Já se passaram quatro dias. Não acabara de amanhecer o dia. Mãe preta chegou apavorada me chamando. Eu ainda estava tentando dormir, pois passei a noite toda em claro. Ainda estava anestesiada com tudo que estava acontecendo. Até a barafunda do balouçar do matagal estava me assustando.

* Rita, Rita Preta, acorda! Levanta!

Tomei um grande susto! Pensei que tivesse acontecido alguma coisa com o meu pai. Levantei de imediato! Aliás, eu já estava acordada! Mãe Preta me deu a notícia que Cavalera estava se aproximando da senzala. A forma pavorosa que ela me deu essa notícia, foi que me deixou com os nervos à flor da pele.

- Minha filha, pela cara dele que eu vi! Ele não vem fazer visita! Eu tou morrendo de medo, Rita! (Não bastou mãe Preta terminar de falar, para Cavalera entrar pela porta de madeira rústica de cavidades onduladas. Já estava sem cor por causa do tempo. Lá, não tinha trinco na porta. O que a fechava era um pedaço de madeira fazendo uma espécie de cancela. A raiva do senhor todo poderoso, desabou em cima daquela velha porta, com a qual veio a baixo, levando mãe Preta a ficar em estado de pavor. Ele entrou já quase me agredindo, com palavras, me batendo. Ele me bateu fortemente na face. Ele queria a todo custo saber onde estaria o meu pai. O pior era que eu também gostaria de saber).

- Pela última vez, lhe pergunto! Onde está o negro? Vai ser melhor para todos!

* (Fazendo-me de desentendida). Mas do que o senhor está falando, senhor?(Foi exatamente nesse momento que ele me deu o primeiro murro, com o qual eu caí quase que desacordada. A minha resistência era muito grande. Não desmaiei. Ainda que meio tonta, levantei e estava aquele homem prostrado em frente a mim, com um enorme cacete na mão. A marca da violência foi muito forte e minha vista não estava funcionando cem por cento. Só vi mãe Preta numa luta corporal, tentando salvar a minha vida das garras de Cavalera. Eu agradeço a Deus por ela estar por perto. Ele levantou o dedo e pôs bem perto do meu nariz com a voz trêmula por causa do ódio e disse-me).

- Escravos atrevidos! Estão querendo se rebelar contra a mim? Eu tenho pena de vocês! Não façam isso! O prazo que eu dei para o negro Zibu aparecer, acabou! Esgotou-se! Vocês ainda não conhecem o meu outro lado; aliás, nem eu mesmo ainda conheço.

* (Em prantos). O senhor pegou meu pai? Fez algum mal ao meu pai?

- Ainda não! Mas as buscas retornaram hoje pela manhã! A caça do maldito virou questão de honra! Ele não me interessa mais! Já tive muito prejuízo com esse negro! Também não me interessa vivo!

- Piedade senhor... Piedade, eu lhe peço! Não, por mim, mas pelas crianças que ainda nem tem consciência do que está acontecendo... (Mãe Preta fala com a voz gasta pelo sofrimento. Cavalera riu ironicamente. E teve o despautério de falar asneiras, coisas chulas, que não se diz nem a um bicho, quanto mais a seres humanos, principalmente inocentes como duas crianças indefesas. (O assistente mediúnico escreve nas páginas em branco a história de Rita Preta e nesse momento pára como se tivesse refletindo sobre o que a escrava acabara de falar).

- O que Cavalera falou de tão severo?(Pergunta o assistente mediúnico).

* Ele chegou perto de mãe Preta e ainda cheio de ironia disse-lhe:

- Criança, negra?Já viu bicho ser criança?Eu nem sei porque estou dando trelas pra bichos de carga, assim com vocês! O meu recado já foi dado! Muito cuidado comigo!

* Ele saiu da senzala, passando por cima da porta, que ele mesmo havia derrubado violentamente. Confesso que a saída dele daquele recinto, criou em mim, uma grande preocupação. Dependíamos dele! Éramos objetos dele! Negro era como bicho mesmo! Tinha valor quando vendido! Os nossos valores estavam em nós mesmos!

- E o negro Zibu, os cães conseguiram capturar?

* Foi terrível! Meu pai foi arrastado até o engenho amarrado em corda e puxado por um cavalo, pertencente á um fazendeiro amigo de Cavalera.

- Como foi que você recebeu a notícia que seu pai foi capturado?

RITA RECEBE A NOTÍCIA DE QUE CAPTURARAM O NEGRO ZIBU

Também foi terrível aquela notícia. Naquela manhã, eu não estava muito bem. Um mal estar tomou conta do meu ser de uma forma horrenda. Alguma coisa muito ruim estava para acontecer, eu sentia isso. Automaticamente o meu subconsciente já estava tentando me avisar que estava por vir uma notícia muito ruim. E foi exatamente isso que aconteceu. Eles capturaram meu pai. Um negro foi passando na portaria do engenho, ao lado da varanda do casarão de Cavalera e viu meu pai sendo arrastado como tora de madeira, puxados por animais. Estava meu pai todo ensangüentado, fazendo expressão de muita dor. Os cães não paravam de abocanhar o braço dele, como famintos em cima de uma presa. Cada abocanhada ouvia-se os gritos à distância e o negro assim que viu aquela cena impetrante saiu correndo para avisar a mim. Assim que ele chegou à senzala, eu não tinha mais nenhuma dúvida. Só estava esperando uma confirmação. Saí correndo para o local. A mãe Preta preferiu deixar as crianças na senzala e saiu logo em seguida.

Meu pai já estava acorrentado no tronco e levando alarmosas chicotadas, cada estalo, refletia em seu semblante uma expressão que era de partir o coração. A dor moral doía como se tivéssemos no lugar dele... (O espírito faz uma pausa).

- Se quiser parar fique a vontade! (Retruca o médium, falando amorosamente com o espírito).

* Não, eu vou continuar. A ordem de Cavalera partiu de uma bruta vingança. Disse em bom tom que ia mata-lo. Matar o meu pai, imagine o que você sentiria se tivesse em meu lugar! Cavalera era terrível mesmo. (O assistente mediúnico já estava espantado com a história e falou, já sentindo um certo ódio de Cavalera e retruca para o espírito, num tom de revolta).

- Nossa senhora! Eu já estou sentindo os meus nervos bem a flor da pele. Se eu me deparo com este cidadão... (Rita Preta ri e faz-lo lembrar, que a história é passada).

* Isso já se passou há quase dois séculos.

- É que a sua história é tão envolvente, que acabo esquecendo! Eu acabei me perdendo no tempo. Ele matou seu pai no tronco naquele mesmo dia?

* Não, o negro Zibú antes de morrer, sofreu horrores em sol causticante e frio da madrugada. No engenho à noite fazia muito frio. Cavalera fez tudo que prometeu. Chamou todos os negros para presenciar o que estava acontecendo. Cada frase que ele falava, sempre dizia que ia mata-lo, que o dia dele estava se aproximando. Mas antes de fazer a façanha, ele ia faze-lo de cobaia. E que aquele episódio iria servir de lição para todos os negros que daquele dia em diante tentasse alguma fuga.

A FOME

Pensei que ele tivesse satisfeito em maltratar o meu pai. Mas parece que o ódio dele passou para a nossa família também. Depois ele mesmo deixou escapar, que qualquer um que pertencesse à família do negro Zibú, iria amargar até as últimas arfadas de seu coração. Um capacho do senhor dono de todos os negros do engenho, avisou que a partir daquele momento não iria trazer mais a lavagem para nós. Ele usou essa expressão “Lavagem” Para eles não passávamos de porcos. Essa notícia foi de cunho muito preocupante. Dependíamos dele. Os dias que o negro Zibu passou no tronco ficamos sem víveres na senzala. Não se contentando com o sofrimento de meu pai, Cavalera, suspendeu qualquer benéfice para a nossa família. Foi um tormento doloroso. Meu pai sofria lá, e a gente amargava passando necessidades. Cavalera mandou mais um recado irônico dizendo, que os dias que o meu pai tivesse vivo, seriam os dias que a gente ficaria sem comer.

- Que maldade! (Disse o assistente mediúnico).

* Mas não parou por aí! O negro Zibu, apesar de resistente, com o sol causticante, a sede e a fome foram definhando-o a cada dia que se passava. A última vez que eu vi o estado dele, que era gritante, resolvi assumir para Cavalera que eu sabia ler e escrever. Criei coragem e fui mais uma vez ao encontro do temido. Disse para a mãe Preta que ia fazer a tal façanha, pois não estava vendo outra forma de tirar meu pai daquele sofrimento. Mãe Preta chorou, mas também concordou.

RITA PRETA DIANTE DE CAVALERA PEDE, PARA LER UMA CARTA

* Assim que eu cheguei à sala da mansão, Cavalera estava tratando negócios com o tal estrangeiro que por certo levaria meu pai se não tivesse acontecido a fuga. Olhei para o os dois e estrangeiro deu um toque para Cavalera que eu estava na sala. O tratamento dele para comigo, não se fazia nem com um cachorro. Mas como eu já sabia quem era ele, mantive firme e forte. Cada vez que eu recebia uma surra de palavras, eu as devolvia de uma forma muito sábia e madura. O estrangeiro olhou para mim e interrogou o Cavalera.

- É uma escrava?(Cavalera retruca tentando justificar o atrevimento de Rita Preta).

- É uma escrava muito atrevida, por sinal!(Rita Preta fala e deixa os dois perplexos e boquiabertos, dando uma verdadeira lição de vida para Cavalera, mostrando para o estrangeiro uma inteligência muito grande para uma simples escrava).

* Desculpe-me senhor! No olhar de uma simples escrava, sempre existe uma mulher. Quando me refiro à mulher, estou falando não do ser humano, carne, estou falando do espírito abrangente. Vivência, maturidade. Senhor, eu peço desculpas por interromper a sua conversa. Eu estou aqui, porque não estou agüentando mais, não estou suportando ver as condições precárias da minha família, principalmente do meu pai, que está em decadência. Esperando a hora da morte. (Cavalera ordena que Rita Preta se retire da sala).

- Escrava, retire-se! Ponha-se para fora da minha sala! Depois a gente conversa!(O estrange

Flavio Cavalcante
Enviado por Flavio Cavalcante em 05/04/2009
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