“Poemas à flor da pele: a poesia de Eliane Accioly Fonseca”
Poemas na arena
de Eliane Accioly Fonseca, 2001
PEREIRA, Edimilson de A.. “Poemas à flor da pele: a poesia de Eliane Accioly Fonseca”. In: Corrente. Pirapora, Ano XXII, No 959, 01 de novembro de 2002, p. 6
A leitura de Poemas na arena é um convite à luta, sem intervalos. Luta que – embora evidencie amazonas e cavaleiros como contendores – se estende para ser uma tomada de atitude do ser humano contra todas as iniqüidades. A presença de uma voz que se assume como a voz da mulher exprime, por um lado, a justa reivindicação de quem se viu historica-mente espoliada de seus direitos; por outro, o desafio para compreendermos nesse fio específico a análise das tensões que dizem respeito a todos nós.
Para navegar nessas duas margens, simultaneamente, Eliane Accioly assume a palavra como seu meio de trabalho e a persona de poeta como sua identidade: "poeta/extraio lucidez/da loucura // e do bruto/loucura liquefeita/ translúcida" (Instantes). Essas escolhas, antes de serem amarras que a limitam a dois campos da realidade, se convertem em agentes legitimadores de sua ação criadora. Por isso, quando nos dá ver a sua criação, Eliane Accioly nos apresenta a si mesma, agora multiplicada através da persona do poeta.
Assim, a poeta entra na arena e seu embate com a palavra, embora difícil, não anula a possibilidade dos frutos pois, afinal, "palavras pulsam" e "cunham fados" – estão vivas para quem vive ("encarno o tempo/ e os enxames// quando respiro"). A partir desse reconhecimento é necessário acrescentar outro, central para que se possa tocar o cerne dos poemas. A poeta emprega a colméia – isto é, seus agentes (abelha rainha, operárias, zangões) e as relações (de hierarquia, trabalho, sexualidade, violência) que estabelecem entre si – como metáfora para falar dos agentes humanos e de suas relações. Em vista disso, pode-se dizer que os temas se apresentam aparentemente restritos ao confronto feminino/masculino, mas intrinsicamente vinculados às indagações de todos os seres humanos; aparentemente tecidos em torno de uma poética da natureza, mas profundamente mergulhados na psicologia humana.
É, portanto, sob o signo da multiplicidade da palavra e das metáforas que nos deparamos com a recuperação do mito para expressar as experiências do sujeito contemporâneo, como em Coro de Sibilas: "oh enxame de Dionísio,/o vosso gozo não conta". Nesse caso, a mitilogia funciona como suporte para a veiculação de um discurso amoroso tenso, atravessado pelo lirismo e pela violência. Tangenciando, para diferenciar-se, da síntese camoniana em que platonicamente "Transforma-se o amador na cousa amada", Eliane Accioly nos dá conta de que o amar é perder-se exatamente porque decorre de uma realidade concreta, marcada por confrontos: ":a flecha deixa seu arco/ fere o alvo, se oferta".
O amor, por sua vez, desce à arena onde "os personagens/apresentam-se/na flor da carne" (Teatro) e, diante da nudez humana, se revela múltiplo: como desejo ("amor, cio/andrógino", Platônico); como transformação do ser e do corpo ("a cópula/ delimita o par: recorte cósmico", Metamorfose); e, sobretudo como luta ("chegam os cavaleiros /…/ sob o vermelho cruel/ de um céu que não os protege/ nos jogos nupciais", Consortes). Apesar do confronto, é no confronto mesmo que o amor se realiza ("o sexo da rainha,/caverna templo/ câmara matrimonial// arena// de um encontro indissolúvel entre a fêmea e o macho", Primórdios).
Dentre outros temas abordados sob a ótica anterior, é interessante realçar: a politização do texto mediante o emprego da metáfora da colméia, ou seja, para se contrapor ao discurso masculino dominante a poeta encarna a potência da mulher abelha e afirma: "nua refém/ paramentos de apicultor/ não me acodem", Uma mulher abelha); a desconstrução da imagem romântica da mulher a partir de sua apresentação como identidade plural ("a mulher/ abelha/ é o picadeiro", Circo; "operárias guerreiras/ amas curandeiras sibilas, em mutirão", Arquiteta; "a moça guerreira", Lenda); a erotização do discurso religioso como forma de criticar a vigilância que a religião impôs à sexulidade feminina ("o consorte// habita/consome/fertiliza/a amada// a morada/o consome", Mistério gozoso); a inversão do significado do ato de vencer através da crítica à ideologia que propaga esse fato como privilégio masculino ("oh bem amado guerreiro!/ olvide vossa vitória/ a colméia vos conquista", Coro de Sibilas).
Mas, sob a multiplicidade da palavra e da metáfora, a poeta surpreende a permanênca do discurso patriarcal que demarcou os valores considerados suficientes para definir a mulher. Valores que transmutaram a sua capacidade geradora em prisão para ela mesma, submetendo seu desejo e sua individualidade à força das necessidades da espécie: "a guerreira abre alas/ entre fileiras vivas/transformando-se na matriz/aguardada pela aldeia// o ciclo da história se marca:/ oh guerreiro, oh soberana,/ vossas vontades não contam/ quando canta a colméia" (Lenda).
Ao abordar os embates entre feminino e masculino, Eliane Accioly propõe uma verdadeira alquimia do verbo, pois elabora um discurso direto mas que se nutre da multiplicidade de sentidos da palavra e das metáforas. Desse modo, imagens conhecidas decorrentes da associção da mulher à natureza adquirem novas configurações. Mais do que flor e abelha, a mulher que se apresenta na arena percebe que suas atribuições englobam e ultrapassam essas associações. Ciente disso, a poeta pode dialogar com o masculino criticando-o e redescobrindo-o como interlocutor, além de descobrir-se a si mesma como sujeito que, "entre temperos e palavras", cria significativamente o seu discurso.
Poemas na arena se orienta como um livro que instiga o leitor a entrar no círculo de conversas, seja para contestar ou partilhar a voz da poeta mas, acima de tudo, para assumir-se como parte dessa experiência humana. E este é um outro caminho que Eliane Accioly palmilha para criar um discurso perturbador, pois se na aparência é a poeta quem se desnuda, ao final nos quedamos também com essa sensação "à flor da carne". Ou seja, diante um livro de coragem, a abertura ao diálogo das mulheres entre si, dos homens entre si, bem como de mulheres e homens entre si, se insinua como uma atitude possível e necessária.
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Edimilson de Almeida Pereira
Genebra, 14 janeiro 2002