O Ciúme - Alain Robbe-Grillet
É com a imensa satisfação de ter encontrado este livro por acaso que escrevo esta pequena resenha. Será que isso já aconteceu com algum de vocês? Ficar muito interessado em alguma coisa (no caso, o “nouveau roman” francês), ir até o sebo e encontrar um livro que marcou seu lugar, tanto dentro do movimento literário quanto na literatura? Isso aconteceu comigo. Com uma lista de nomes, procurei obra dos autores do “nouveau roman” em várias lojas e não encontrei nenhuma... já estava desistindo quando entro em um sebo e vejo, espremido no canto de uma prateleira, quase imperceptível, um livro de Robbe-Grillet. Qual não foi minha surpresa e felicidade!, encontrá-lo ali, em seu descanso imposto em um canto empoeirado daquela prateleira que mascarava a potencialidade desta pequena obra...
Vamos ao que interessa: sobre o que fala o romance de “O Ciúme”? “Ah! isso é óbvio, sobre o ciúme... é claro e lógico que este é o assunto, provavelmente um personagem que está com ciúme de outro, que irá discorrer sobre seus sentimentos, sua paranóia, etc... nada de novo até aqui... mais um livro sobre um assunto tão batido...”. Este é o maior erro que alguém pode cometer quando se propões a ler este livro de Robbe-Grillet: achar que já sabe o que vai acontecer simplesmente pelo título.
O que chama atenção é o papel das descrições das coisas neste pequeno romance: o autor descreve os ângulos da varanda da casa, a sombra que recai no jardim, a forma que a bananeiras estão plantadas em sua fazenda, a lacraia que foi esmagada na parede, a distância entre a mão da mulher (A...) e do vizinho (Franck) que sempre vai à sua casa jantar e tomar um “drink”. Mas cadê o narrador? Quem é ele? O que temos aqui é a tentativa de Robbe-Grillet acabar com o psicologismo em literatura. O narrador parece alguém neutro na história, descrevendo tudo o que vê mas sem fazer julgamento de valor, como uma câmera de cinema: ele filma, mas não analisa, não julga, não “sente”. Ele não conversa, ele não é interpelado por ninguém. Chegamos a pensar que quem narra os acontecimento é a própria casa, suas paredes, sua varanda.
É aqui que está o maior trunfo de Alain Robbe-Grillet: ele busca uma exterioridade total quanto ao que está passando, não julgar os acontecimentos, simplesmente filmá-los, captá-los como eles são, sem um sujeito que poderia fazer a síntese do acontecido: o autor abre o romance para interpretações variadas, de quem lê e não oferece “já” a interpretação do narrador. Desta maneira, Robbe-Grillet libera o romance do narrador de romance tradicional, que pensa, sente, julga e “age”, conforme o desenrolar dos acontecimentos ou conforme os acontecimentos são narrados por ele mesmo.
Mas se o narrador é uma “câmera”, porque o título “O Ciúme”? Chegamos à maior novidade formal e criativa deste romance. Justamente pelo caráter impessoal do narrador do romance, Robbe-Grillet consegue mostrar que o ciúme, na verdade, é pura relação, e não necessariamente depende de um sujeito que constantemente reavalia o que acontece entre sua interioridade e a exterioridade do objeto de desejo, de ciúme: esta impessoalidade opressiva do narrador, que descreve todos os movimentos de sua esposa (?), onde as cenas do romance se repetem durante todo o livro com pequenas variações de “ângulo” e “posição” (mantenho a correlação com o cinema), mostra um sujeito obcecado por seu objeto de afeição.
Pode parece paradoxal falar em impessoalidade total e depois falar em sujeito obcecado: mas é justamente esta a experiência passada pelo romance de Robbe-Grillet. Ao retirar o “psicologismo” do narrador e da narrativa, o que aparece é a própria psicologia do narrador: o autor funda, por meio de um trabalho formal de escrita e de narrativa um novo espaço: não existe um sujeito de direito, mas o que aparece ao leitor é uma maneira de ler seu ciúme justamente pelo distanciamento frio do narrador. É fundada uma psicologia que não vai em direção à um dentro (a psique do sujeito analisado), mas em direção a uma percepção mais aguda do processo de subjetivação desse sujeito: ele só pode compreender o que ocorre a partir de um re-contar obsessivo: pequenas variações em cada trecho que é re-contado, saltos temporais que não respeitam a cronologia, mas a tentativa de se aproximar ao máximo de algo decisivo que ocorreu: “alguma coisa se passou... O quê?”
Romance das coisas, de medidas, de espaço: a impessoalidade do narrador nos leva ao ponto de não dizer que o sujeito foi abolido: podemos dizer que ele se torna “indiscernível”, e com isso podemos estabelecer uma nova relação com o que estamos lendo, e o próprio narrador pode dar espaço a uma variação interessantíssima e instigante de locais e perspectivas: ele é o marido... mas também a casa, a lacraia amassada por Franck na parede.
Alain Robbe-Grillet vai explorar esse tipo de narrativa posteriormente em conjunto com Alain Resnais no filme “O ano passado em Marienbad”. Magnífico filme e magnífico livro de um dos cabeças do “nouveau roman” frânces. Deixo esta pequena citação do livro para que ela funcione como uma porta de entrada a este magnífico romance:
“O coque de A... não é menos intrigante quando visto de perfil. Ela continua sentada à esquerda de Franck. (É sempre assim: à direita de Franck na varanda para o café ou o aperitivo, à sua esquerda durante as refeições na sala.) Ela está ainda com as costas voltadas para as janelas, mas agora é dessas janelas que vem a luz. Trata-se aqui de janelas normais, dotadas de vidros: dando para o norte, elas nunca recebem o sol.”
Referência bibliográfica:
ROBBE-GRILLET, Alain. O ciúme. Trad. Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.