Filhos $ Amantes (TVD) Cap. 50
Capítulo 50
Carrel levantara cedo. Tentou ler os jornais. Não passou de três notícias: “Menor grávida dá entrada em maternidade em trabalho de parto. Tinha na mochila que carregava quase cem mil reais em notas... Tsunami ( onda gigante ) que atingiu a Ásia e a África em 26-12-04 já soma mais de cem mil mortos... Famoso e veterano ator ERG desapareceu há quinze dias. A família suspeita de seqüestro...” Caminhou para a janela. O dia, lá fora, prometia ser radiante. Derradeiro dia do ano de 2004. Mais um dia de sete meses sem Vôvo. Só o tempo conhecia o lenitivo para a dor. E a sua passava pela tristeza profunda da transformação que causa a morte de um ente querido. Recordar tudo o quê viveram juntos, olhar porta-retratos, álbum de fotografias, remexer os objetos que ele usava na cozinha, acariciar suas roupas organizadas nas gavetas, aspirar o seu perfume favorito, consolava. Nunca mais seria invadida pelo furor de seu instinto de macho e a delicadeza do companheirismo de quando estavam em repouso.
O cachorro não entendeu sua ausência, mas a sentiu muito com a perda de apetite. Fora Vôvo que o trouxera para casa ainda pequenino. Prometeu, a si mesmo, cuidar do animalzinho pelo resto da vida. Ela encontrou num caderno, o rascunho da história do primeiro Barão de Japuí. Deitou-se no sofá em que Vôvo costumava descansar e passou a ler...
“A última vez que se viu o Barão, ele atravessava o amplo salão de mármore do palácio. O andar trôpego demonstrava a velhice. Uma voz chamou-o: Barão! Mas pareceu não ouvir. Continuou as passadas rumo ao alpendre. Entre um dos vãos, abaixo do parapeito, observou o longo caminho. Na alameda, ladeada por palmeiras reais, tranqüilidade. Como chegara até ali? Se não fosse quem era diria: coisa do acaso. Pertencera às ruas, vielas, marquises. Entre mendigos conseguira abrigo e calor dos temporais e frio...
Nem sempre tivera nome tão pomposo. Herdara-o de dono nordestino catador de papel. Na parte frontal do veículo de trabalho havia a inscrição: sem dinheiro sou Barão, sem moradia vivo em Japuí. Então o carrinheiro ficou conhecido por Barão de Japuí. Quando o achou, o homem o batizou com o mesmo apelido. Se bem que nunca deu importância a títulos ou palavras. Preferia o som, o odor, as figuras para manifestar-se. Puro instinto e condicionamento...
Seus sentidos pertenciam a alguém: Belinha. Viu sua foto estampada na primeira página do principal matutino da cidade. Não sabia ler. Ficou curioso. O quê fizera ela para estar ali? Tornaram-se íntimos pela força da natureza. Fora numa dessas primaveras de madrugada amena e de longa vadiagem. Breve êxtase, breves afagos e adeus. Não puderam permanecer juntos. Ela pertencia a amarradores e vigias da beira do cais. O cio trouxe outras parceiras. Não conseguiu esquecê-la. Antes que o proprietário da banca de jornal o enxotasse, espiou-a mais uma vez. Ah, vivera muitas aventuras. Suas peripécias dariam um romance ou um filme de Walt Disney...
Ele, ultimamente, sentia-se fraco, sonolento, os dentes meio moles, enjoado. Entregava-se aos sonhos sem relutância. Neles era ágil, atento, ladino de novo. Precisava estar sempre alerta, pois o perigo para quem vivia na rua se fazia constante. Afastava-se dos carros. O espocar de fogos, tiros, agoniavam-no...
Foi naquele ano que tudo ocorreu. A campanha eleitoral agitava a vida pensante de toda a localidade. Paredes e calçadas cobriam-se de cartazes e panfletos. Depois de tanto tempo, o povo ia às urnas para eleger alguém por voto direto. Transformações ansiadas pela sociedade. Apesar das ideologias, não se podia errar...
Nada disso interessava à ótica do Barão tão apolítico. Lutava somente pela sobrevivência: ar, água e comida. Sem o protetor, que morrera numa briga de bêbados, existia. Fuçava o benfazejo resto de banquete deixado pelos já saciados. O lixo de pobre é pobre. Por isso dava preferência ao lixo de rico...
O aglomerado de pessoas, frente ao palanque, aguardava a presença do líder das pesquisas. O apoteótico comício tinha artistas de rádio e TV a entreter os presentes. À mãos dadas, ao balancear de corpos, palavras de ordem eram ditas. A vitória estava perto. Tudo ia mudar. Todos sairiam do obscurantismo gerado pelo desmando e truculência militar. Promessas jorravam aos borbotões. A fala mais convincente do possível vencedor era:
___ Deus há de nos iluminar, irmãozinhos!
Bandeiras agitavam-se. O instante máximo aproximava-se. Fogos. Um caiu perto do Barão que se encolheu. Medroso, ele subiu os degraus e atingiu o palanque. Aplausos, muitos aplausos e gritaria. O futuro vencedor surgiu. Dizem que os políticos de carreira sempre guardam uma carta na manga do paletó. Algo de impacto para comover os imprudentes e definir os indecisos. Porém não foi preciso usar desse artifício. O Barão, num salto, foi parar nos braços do líder. Os seguranças acorreram de arma em punho. O louco e mal cheiroso intruso pretenderia ferir o ilustre candidato?
___ Deixem, deixem! Não há perigo! disse o aspirante, afagando o aparente inimigo. É Deus quem nos envia este fiel amigo. O sol se pondo nos abençoa. O triunfo está próximo. Este será nosso mascote para o segundo turno...
Um desconhecido gritou da multidão:
___ É o Barão!
Risos. Outros também o reconheceram. Era o Barão de Japuí! E seu nome correu de boca em boca. Até votos recebeu dos insatisfeitos. O preferido venceu as eleições e não se separou mais daquele ser da sorte. Prometeu, a si mesmo, cuidar do animalzinho pelo resto da vida.
O Barão espirrou. Detestava ar encanado. Babara no piso. Não tinha vergonha de sua origem. Era um anoso vira-lata, cheio de filhotes espalhados por esses Brasis...”
Carrel enxugou as lágrimas. Precisava escolher o modelito que usaria na grande festa de final de ano na Thermas Vapor Dourado. Sabia que o show da vida precisava continuar...
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