Filhos $ Amantes (TVD) Cap.48

Capítulo 48

“Senhor Pedron: Venho protelando esta carta para não incomodá-lo. É que cheguei a uma situação financeira tão difícil que a vergonha deu lugar à necessidade. Fica bem claro que tem a liberdade de socorrer-me ou não com a mesma compreensão de minha parte.

Ao deixar a firma em que eu trabalhava (1998) era para aposentar em seis meses. O INSS não aceitou o laudo técnico de insalubridade em que se baseava o pedido de aposentadoria, por três vezes. A arrogância e inabilidade do advogado encarregado pelo processo também prejudicou a ação. Fui mal orientado pelo sindicato da categoria, contudo agora não adianta lamentar. Esse meu infortúnio arrasta-se por cinco anos. Um pedido de mandado de segurança está na mesa do juiz competente para ser despachado. Mas como o senhor tem conhecimento, a justiça trabalhista é lerda por conveniência...

Fiz alguns concursos, entreguei currículos, porém aos 57 anos pensam que sou um velho caquético. É um mal que abrange muitos desempregados por esses Brasis. Preciso trabalhar, pois minhas contas se avolumam. Nesse tempo, empregado, formei um padrão de vida (modesto) que incluem: condomínio, telefone, luz, alimentação... O pior de tudo é dever para banco. Banco não tem alma! Cobra juros sobre juros. Para o banqueiro gente na minha situação é vítima que dá lucro. Meu imposto de renda 2001 não foi devolvido. Caí na malha fina... O FGTS, planos Collor e Verão não têm perspectiva de pagamento. Estou assim: se correr o bicho pega se ficar o bicho come. Tenho curso básico de micro e um português acima da média. O que o senhor pode fazer por mim? (Adalberto da Silva, 14-05-2003).”

Cartas desse tipo eram comuns chegar às mãos de Pedron. Dono de uma empresa de serviços gerais, uma auto escola e um time de futebol amador, ajudava os recorrentes na medida do possível...

O turbo que Pedron guiava descia a serra. Já se podia avistar as cidades da baixada paulista. Ivan, ralando o braço no seu, pegara no sono. Falara o tempo todo em que estivera acordado. Tentara impressioná-lo. Contara-lhe sua triste história de sonhos e decepções sobressaída por uma voz embargada:

___ Minha mãe me despreza, concluiu ele.

“O senhor entendia o que era ser preterido pela mãe. Ele também sofrera a indocilidade da sua. Não se lamuriou quando ela partiu dessa para melhor. Torturou-o na saúde e na doença com sua distemia. Não entendia como pudera carregá-lo por nove meses no ventre. Amamentá-lo por anos. Trocar-lhe as fraudas. Na separação dos pais ficou com ela. Novo, não teve voz ativa para escolher. Cresceu ouvindo-a resmungar. Criticava-o por nada. Era o odor que ficava no banheiro. A toalha molhada. O quarto em desordem. O forte cheiro de suor, o mau hálito... Ele criava um jabuti de nome Janaína. O réptil vivia pela casa, escondendo-se embaixo dos móveis. Protegia-o, o quanto podia em seu quarto, da sanha da mãe. Bomba de flit, vassoura de pêlo eram as armas que ela usava. Certo dia os vizinhos acorreram aos gritos de socorro da mãe. Tinha o animal dependurado no nariz. Foi preciso sacrificar Janaína para que largasse a imprevidente algoz. Cortaram-lhe a cabeça...

A mãe não entendia sua preferência por musicais, em particular por Gene Kelly. E ironizava:

___ Nem sabes dançar! Tropeças nas próprias pernas de cangalha...

___ A senhora não me enfaixou direito! Permitiu que eu andasse cedo demais, defendia-se ele.

___ Ah, cala essa boca! Estás engordando feito uma menina, dizia ela.

Ela nunca soubera o porquê ele gostava do artista. Tinha vontade de jogar-lhe na cara, o verdadeiro motivo, quando o desmerecia.

___ ‘Gosto da bunda dele, mãe! A senhora já percebeu como é longa e rija sob as malhas e calças justas? As nádegas seguem em duas coxas musculosas e pés hábeis e dançantes...’

Ela cairia dura. Além de horrendo, tinha um filho pederasta.

‘Sonhara que a abandonava numa cadeira de rodas sob um temporal... Deixava-a atravessar rua movimentada de olhos vendados... Cortava-lhe o nariz para salvar Janaína...’

Não, ela não morreu tão tragicamente. Uma rouquidão apossou-se de suas cordas vocais. Porém continuou insultando-o o quanto pôde:

___ Desgraçado, queres me ver morta! Confessa! Até o cigarro me proíbe...

A enfermidade lhe foi fatal. Poucos choros se ouviram em seu sepultamento.”

Seu destino, com o passar dos anos, foi se modificando. O tetra campeonato, conquistado pelo Brasil nos USA em 1994, estimulou-o a formar um time de futebol. Tornou-se pequeno empresário e comprou o sobrado que abrigava seus garotos. Uma cozinheira eficiente cuidava das refeições de todos. Dez aspirantes hospedavam-se lá. Gostava de admirá-los jogando bola. Além da avaliação técnica, apreciava-os de corpos suados, vigorosos, à mostra no instante do banho. Eram estrelas, aguardando o momento de brilhar. Talentos cheios de vontade de vencer. Negociá-los-ia na hora propícia com times do interior. Surgiam aqueles sem condições. Não vingavam e iam embora, reclamando.

A desventura também batia à sua porta, encerrando aspirações. Patrocinara curso de pilotagem de helicóptero para um deles. Formado, morreu numa noite de tempestade, espatifando a aeronave contra uma montanha. Rafael, o seu preferido, ajudava-o a treinar a garotada, após ter quebrado a perna. Grande perda. Não pode abandoná-lo... Ivan seria mais um investimento? Não acreditava que jogasse tão bem o quanto dizia. Mas, alimentaria seus sonhos e mentiras até quando desse. Pois deixá-lo desvalido naquele fim de ano não podia. Sabia que a juventude não cria raiz...

Pedron lera em algum lugar: a pátria, a igreja, a família são prisões impostas pela sociedade. Era católico. Ia à igreja aos domingos. Confessava-se. Julgava-se um bom cristão. Perdoou o ladrão desconhecido que roubara sua moto da garagem. Arrependeu-se quando numa viagem à Turquia foi surrupiado em dólares e esbofeteado em uma boate. Deu a outra face quando numa reunião de condomínio foi agredido por um ancião insatisfeito. Era vitima de violências quando saia do caminho da retidão.

Sua intimidade com as mulheres era ínfima. A mais próxima, após a morte da mãe, era Eulália. Com um jeito pitoresco de falar, divertia-o:

___ “Pedron, meu lindo! Nem te conto! Foi uma surpresa quando me vi frente a frente com Beatrice Souza Campos. Nossa, ela é tudo! Uma princesa de elegância! Que hálito, que tom de voz!...

___ Quem é Beatrice, Eulália?

___ Tu não sabes?

___ Não...

___ Solta o coque, querido! Ela é de família tradicional mineira! Apareceu lá na imobiliária... que doce de pessoa!... Chegou da Europa cheia de novidades! É amicíssima da Mariazinha Pontes, outra figuraça dos flash...

___ Só conheces gente importante pelo que vejo!

___ Modéstia a parte, fofo, só atraio o que há de bom! Precisas conjugar Miss Planet... Convidei-a para meu aniversário...

___ Quem é ela?

___ É a gerente da casa de banhos mais badalada da capital, caríssimo! Dizem que é o alter ego de Carrel...

___ Carrel, sei... quem é?

___ Andas rezando demais, amor! Carrel é a proprietária misteriosa e riquíssima da Thermas Vapor Dourado. Foi paparicado modelo internacional dos anos 60... Vais gamar nos bofes que circulam por lá...

___ Que conversa de bicha é essa, Eulália? Não sou gay, não freqüento saunas, disse Pedron sorrindo.

___ Solta o coque, tolinho! Essa garotada toda que proteges, não te desperta nenhuma ereção?

___ Apreendi, acostumei a ver flores no jardim sem arrancá-las do pé. Murcham mais depressa no vaso da sala...

___ Que auto-controle, meu lindo! Balanço quando vejo o Rafael apoiado naquela bengala toda! Tão melancólico! Tu não?

___ Conheces os filmes da Bel Ami Vídeo, Eulália?

___ Não, Pedron!

___ Então esquece... Quero que me acompanhes a uma viagem pela Europa durante três meses. Começaremos pela Grécia, assistindo as Olimpíadas...

___ Pedron, não acredito! A Lurdinha Alencar vai morrer de inveja...”

Essa era Eulália. Cheia de nomes e sobrenomes famosos e inventivos na agenda. Trabalhava numa modesta imobiliária. Mas, só vendia fazendas, coberturas, mansões. O time a considerava a “maior gostosa”. E quando os viam juntos não tinham dúvidas: ele tava comendo a peituda! Nada mal, tamanha suspeita, pois isso salvava sua moral de macho solteiro e cinqüentão. Ela não se continha em si com o convite que ele fizera...

“Dois anos havia decorrido desde o acidente em que Rafael se envolvera. Não falava mais de “Firula”. Tentou levá-lo a um psicólogo. Não quis. Sairia daquele marasmo por si mesmo. Entrou para a faculdade de Educação Física. Não procurara mais o pai e a madrasta. Se vinham visitá-lo, recebia-os friamente.

___ Estou bem, não se preocupem! dizia ele.

Distraia-se estudando, lendo, vendo filmes, escutando música, conversando:

___ Preciso arranjar um emprego, Pedron!

___ Deves apenas estudar, por enquanto.

___ Pretendes casar com a Eulália?

___ Nunca te abandonarei, garoto!

___ És como pai para todos nós! Mas, um dia iremos embora. Devias te arranjar com a Eulália... Gostas dela?

___ É uma boa amiga, apenas isso, deixou bem claro Pedron.”

Rafael, ao conhecer Ivo, demonstrou cordialidade. Ivo sentiu-se desconfortável no lugar onde ia viver. Teria errado o alvo? Pedron não o molestara como Leandro, uma única vez no carro. Por mais que facilitasse as coisas, nada aconteceu. Na direção, ele o ouviu atento. Teria tocado mais seu coração do que a outro órgão?

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