Filhos $ Amantes (TVD) Cap. 37

Capítulo 37

Max pagava sua parte nas despesas do apartamento com pontualidade. Marino recebia o aluguel, secamente:

___ Deixa aí em cima da mesa...

___ Não vais conferir?

___ Confio em ti, cacete! dizia Marino e continuava a ver TV.

Sabia que aquele dinheiro provinha dos “programas”que Max praticava. Ele havia mudado. Sob a influência de Marcel apresentava novo visual: cabelo transado, roupas de marca, perfume da moda e o escambau... Atendia telefonemas, marcava números numa agenda... Não o questionava. Costumava andar nu pela casa. Marino desviava-lhe o olhar. Porém, certa inquietação se instalou nele, desde que o rapaz chegara. Caminhando para o banheiro, Max cantarolava:

___ “Você bem sabe eu sou rapaz de bem...” O Marcel viajou com o Sérgio, sacas ele?

___ Vi a figura algumas vezes, respondia Marino, desinteressado.

___ É cheio da nota, o sacana! Fala de ti todo animado!

___ Tô fora disso, já cantei a bola pro Marcel! Não gosto de cu de macho...

___ Não precisas gostar... ele é mão aberta... Há toalha limpa no banheiro? Vou tomar um banho...

Marino estava acostumado, na Marinha, a ver corpos masculinos em pêlos. A primeira vez que viu Max nu ele fazia a pouca barba. Analisou-o magro, pele morena, bunda lisa, ar de garotão. Entrara no banheiro para urinar. Sentindo-se observado, o jovem gracejou:

___ Gostou, negão? Tá a fim de fazê um cafuzo comigo?

___ Vai te fudê! Lá gosto de corpo de macho!

Dormiam em camas beliches. Marino, várias vezes, acordava durante a noite e de cima espiava-o descoberto, de bruços, só de cuecas... Sentia sua falta quando saia e não voltava. Ao contrair forte gripe “ficou de molho” por quinze dias em casa. Marino tratou dele. Chás, remédios na hora certa. Tinha prazer em chegar do trabalho e auxiliá-lo na higiene, obrigá-lo a comer, ficar horas conversando, assistir à novela, à partida de futebol, às lutas de vale tudo, juntos. Marcel, ao saber de sua dedicação, debochava:

___ Que é isso, negão, viraste mãezinha?!

___ Vai tomá na tua boga... eu faria o mesmo por ti, seu porra!

___ Só tô zoando, marinheiro!

Marcel pretendia alugar um apartamento na zona sul e levar Max. Sérgio bancaria com os gastos. Marino se calava ao ouvi-los conversar sobre o projeto. Afeiçoou-se a Max como nunca o fizera por uma mulher. De um modo tão proibido que a natureza e a razão travavam luta insana... Quase recuperado da enfermidade, deitado na cama de baixo, Max agradeceu:

___ Se eu estivesse na rua, com esse temporal que vai cair, acho que morreria... Quando eu ficava doente, criança, minha avó contava histórias. Sabes contar história, Marino?

___ Minha mãe inventava uma, quando eu e meu irmão teimávamos em fugir do barraco que morávamos...

O ribombar de trovões e as nuvens escuras prenunciavam um toró. A voz de Marino fez Max fechar os olhos...

“Era uma vez um menino que pensou ser dono da lua. Desde bebezinho, no colo dos pais, olhava para o céu e repetia:

___ Ua, ua!

___ É a lua, filhinho!... Ela é tua, diziam os pais.

Ao completar oito anos de idade, decidiu apossar-se do que era seu. Não queria a meia lua. Desejava a plena que surgia por trás do grande monte. Seria fácil pegá-la, julgava ele. Era só subir até o pico no instante exato. Seria como alcançar a lata de biscoito sobre o armário. Se bem que numa escada ou numa cadeira era mais simples de subir. Mas teria que driblar a vigilância dos pais e da velha babá. Apenas em determinado anoitecer é que ela surgia esplendorosa. E quando todos dormiam, de madrugada, ele partiu...

A noite era quente. Receoso, embrenhou-se no mato. Ele previa chegar ao destino na noite seguinte. Vira no calendário de parede que seria lua cheia... Teria o dia todo para caminhar. Um sapo pulou à sua frente, coaxou e sumiu. Um rato do mato olhou-o assustado. A bicharada noturna estava ativa. Os latidos dos cachorros, as casas foram ficando para trás. Sob uma árvore precisou descansar. Cochilou, dormiu... Quando acordou havia amanhecido. Olhou para o monte e ele ainda estava longe. Reparou ao seu lado uma flor que desabrochava. Disse à flor:

___ És nova aqui?

___ Novíssima! Desabrochei há poucas horas com o sol. E tu, desabrochaste agora?

___ Não sou uma flor! Sou um menino e já tenho oito anos...

___ Ah! Quem me dera viver tanto! Amanhã mesmo estarei murcha...

___ Então não verás a lua?

___ Quem é a lua?

___ Uma bola grande, branca e luminosa! Ela me pertence e vou buscá-la...

___ Então boa sorte, menino!

___ Quem sabe não murches e te reencontre na volta...

___ Será difícil... o sol não permitirá... mas não falemos do fim senão perdemos o começo...

Os dois ficaram em longo silêncio, considerando-se.

___ Acho que deves partir, disse a flor. Logo o sol ficará a pino... Preciso ficar só... Não quero que me vejas fenecer... antes, retira uma pétala minha e leva contigo como lembrança...

O garoto obedeceu e pôs-se a caminho. Deu uma última olhada para a flor. Uma abelha pousou sobre ela a fazer um barulhinho. Como sentisse cócegas a flor riu e de branca foi ficando vermelha... Depois de andar muito encontrou uma cachoeira. Perto havia árvores frutíferas. O calor aumentava e sua fome também. Resolveu refrescar-se, tomando um bom banho. Ia despir-se quando ouviu uma voz:

___ Se eu fosse tu não faria isso...

___ Quem está falando?

___ Sou eu...

___ Eu quem? Onde estás?

___ Aqui, nesta macieira...

___ Ah, um pássaro! O que disseste mesmo?

___ Para que não fizesses isso... a água está muito fria... estás transpirando demais... molha os pés, os pulsos, a nuca...

___ Tens razão... estou andando faz horas... meu corpo está muito quente...

___ Come uma fruta... todas são deliciosamente enjoadas...

___ És engraçado! As maçãs devem estar saborosas...

___ Alimento-me delas ao sentir fome... Não agüento mais esse aroma... Outros pássaros vêm comer aqui... Sabes voar?

___ Quem me dera! Preciso chegar ao topo daquele monte ao surgir da lua...

___ O que vais fazer lá?

___ Pegar a lua que me pertence...

___ Roubá-la, queres dizer...

___ Não, ninguém rouba o que é seu!

___ Tens certeza?

___ Do quê?

___ Que a lua te pertence!

___ Ela me foi dada desde garotinho pelos meus pais...

___ Há um mago rabugento que mora no topo e parece ser o dono também...

___ Impossível! Sou o único dono...

___ Acho que terão de dividi-la ao meio...

___ Não, não gosto da meia lua!

___ Então terás que negociar com o velho...

___ Quem sabe ele é bonzinho como meu avô...

___ É, quem sabe...

___ Preciso ir... Por que não vens comigo?

___ Claro, não estou a fazer nada!

___ E podes me ajudar a convencer o velho a entregar-me a lua cheia...

___ Que idéia a tua de pegar a lua cheia...

O pássaro posou no ombro do menino e partiram. Continuaram conversando. Argumentou o pássaro:

___ A lua cheia, sabias que ela é muito grande?

___ Caberá em cima de qualquer móvel lá de casa...

___ Nem tudo o que vemos é como parece...

___ Como assim?

___ Uma estrela no céu parece pequena. Parece caber na palma de tua mão ou no meu bico... Porém, de perto, nós é que somos minúsculos...

O menino ficou cismado. Retornar para casa sem a lua seria decepcionante. Um bando de pássaros passou voando e o amiguinho em seu ombro apressou-se em dizer:

___ Vou nessa, companheiro! A lua não me interessa. Os barulhentos são meus chapas. Vou com eles zoar por aí... Arranca uma pena minha e guarda como lembrança. Boa sorte!

O menino arrancou uma pena e ele se foi. Agora tinha uma pétala e uma pena... A noite chegava. Avistou o casebre do velho. Havia fumaça na chaminé. A princípio não contaria a ele a causa de sua visita: levar a lua. Aproximou-se. Ia bater à porta e ouviu uma voz:

___ Podes entrar... eu estava te esperando...

Dentro da casa viu tudo limpo e em ordem. A simplicidade de fora contrastava com o conforto do interior. A mesa estava posta para o lanche. Um senhor de barbas brancas, vestido de túnica de cor alaranjada, observava-o. O menino ficou perdido no meio da ampla sala. O velho disse:

___ Por que não vais lavar as mãos? O chá está morno, o pão quentinho! E a lua não tarda a aparecer...

O menino sorriu. Não pensou que seria tudo tão natural. O senhorio se mostrava afável. Ficou calado à mesa. O velho argumentou:

___ Por que queres levar a lua contigo?

___ Desde criancinha meus pais dizem que ela é minha!

___ Como vais levá-la para casa? É muito grande!

___ Parece menor do que eu...

___ Lembras do que o pássaro disse: “nem tudo o que vemos é como parece...” E tem mais: nem tudo o que nos dizem é verdade...

___ O senhor quer dizer que meus pais mentiram?

___ Apenas tentavam te agradar em determinados momentos... Outros pais fazem a mesma coisa. E até hoje dão e contam às criancinhas uma bátega de ilusão... Por mais que não sejas egoísta, se a levares, privarás muitos de apreciarem a beleza que é o surgimento da lua cheia...

___ O senhor tem razão... mas, pelo menos posso tocá-la?

___ É pra já! Fecha os olhos e repete: quarto minguante, quarto crescente quero tocar a lua cheia neste instante...

E o menino repetiu. Na companhia do mágico sentiu ser a própria lua. Nunca havia estado tão alto. Na imensidão tudo parecia de brinquedo. A própria Terra era uma esfera fascinantemente azul. Foi um passeio e tanto entre estrelas, nuvens, asteróides... Chegou a hora de voltar para casa. Pois crianças não devem existir sozinhas, longe dos pais. Um raio de lua formou o maior tobogã do mundo. Terminava na janela do quarto do menino. Era só escorregar. O velho disse:

___ Não tenhas medo! Será muito divertido. Fecha os olhos e desliza. Antes, arranca um fio de minha barba e o leva contigo como lembrança...

O menino assim o fez e partiu. Um vento forte soprou e levou a pétala, a pena e o fio de barba. Ele entristeceu. Porém, logo sorriu. Tudo estava registrado em sua memória...”

Chovia a cântaros. Marino olhou para Max. Ele adormecera...

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