Filhos $ Amantes (TVD) Cap. 16

Capítulo 16

“No sul do Pará, fazendas e fazendeiros mantiveram por muito tempo, cativos, peões em regime de trabalho forçado e castigos cruéis. Velhos, jovens, adolescentes contratados para trabalharem por três meses não conseguiam mais sair desse tipo de arapuca. Sem receberem salários, com comida racionada, ficavam prisioneiros. Qualquer tentativa de fuga, tinham contra si a mata desconhecida, os perigos de cobras e onças, a perseguição assassina de pistoleiros...

O padre Ricardo Rezende testemunhou todo esse panorama de desumanidade. Ameaçado de assassinato, seqüestro, viu amigos morrerem por reagirem contra os poderosos em defesa das vítimas. De 1980 a 2000 somou mais de duzentas pessoas que morreram por delatarem os cabeças na Diocese de Conceição do Araguaia, pedaço da região do Pará. Entre os mortos: Expedito Ribeiro de Souza, João Canuto e dois filhos, padre Josino Morais Tavares... Tais fatos ocorreram no governo do presidente José Sarney... Quando chegou a essas plagas o religioso constatou um caos fundiário com muita documentação de terra falsificada... Empreiteiros, contratados por fazendeiros, arregimentavam trabalhadores de outros estados sob o comando de ‘gatos’. Os fazendeiros quando denunciados desse tipo de crime moviam os grupos de ‘escravos’ ( condição análoga de escravos ) para outro lugar a fim de não serem punidos... A criação do Comitê Rio Maria , sob pressões nacionais e internacionais, mudou essa torpe situação.”

‘No primeiro tiro Targino caiu, aparentemente, ferido. No segundo disparo, com um cano encostado em sua cabeça, deu uma rasteira no perseguidor, tomando-lhe a arma. No terceiro tiro a bala atravessou o coração do ‘gato’ que murmurou agonizante:

___ Carcará desgranhudo, que uma onça te devore!...’

Targino, no interior do ônibus que já rodava há uma hora, estava mais calmo. A viagem seria longa. Fugia. Matara um homem em legítima defesa. Aquele filho de uma égua encarnara nele. Uma besta-fera que contratava gente para trabalhar na lavoura. Com a promessa de dinheiro, alimentação, moradia atraia os incautos. Depois faziam-nos prisioneiros. Era comum alguém ser exterminado quando cobrava seus direitos ou se arriscava escapar.

___ Aqui todos têm de ficá de bico calado sem reclamá, prevenia o ‘gato’. E quem tentá fugí leva uma balaço nos cornos.

___ Nóis só qué nossos direito, seu moço!

___ Não comem, não bebem,não cagam! O quê querem mais?

___ Carteira assinada, dinheiro justo como foi prometido... carne da boa pra comê e não de gado doente...

___ Cala a boca, agitador! Quem quisé se mandá pode ir... Não é fácil saí das terras da fazenda...

Era nesse clima de terror que Targino e outros viviam. Não se conformava com isso. Olhava o ‘gato’ desafiadoramente.

___ Qué despejá alguma coisa, grandão?

___ Não senhor...

___ Então por quê tá me encarando? Tu é chibungo?

Seis meses se passaram e Targino se revoltava ainda mais. No alojamento de chão de cimento algumas camas e muitas redes se apinhavam. Cheiro de machos o tempo todo. Machos peidando, machos se aliviando, durante a noite, solitários. Todos endividados por despesas recorrentes. Jagunços armados não os deixavam sonhar com a liberdade.

___ Por quê num pudemos tê mulé? perguntou Targino ao ‘gato’.

___ Pra que mulé, grandão? Pensa na tua mãe e acaba na mão...

Aquele coisa ruim não perdia por esperar. Ali era um lugar de trabalho e não um bordel, reafirmava o encardido. Nem rádio tinham para ouvir música e as notícias. Não se lembrava do canto de pássaros por aquelas bandas. Só terra, calor e plantação.

___ Num güento mais essa vida, meu rei! Comentou Targino com outro companheiro mais velho. Vô si mandá...

___ Toma cuidado, garoto! Engole a reiva. Os guachebas vai atrás de tu e acaba com tua raça...

Targino decidiu-se. Juntou suas tralhas em mala de couro e aguardou a hora H. Numa madrugada de céu escuro foi embora. Afastando-se daquele inferno, lembrou os versos de uma canção que o pai costumava cantarolar:

___ Amigo urubu/ Minha fuga não é nada/ Deixo palmeiras, palmas, sabiás/ O periquito, a arara entristeceram/ Ele há de vir e vem pra te valer/ Silenciar de vez a minha voz.../ Ele se aproxima/ E traz água, carne e pão/ Mas parece faminto, sequioso demais.../ E bate, berra, ri, tortura, quer saber/ Do teu segredo pelos ares a voar/ E bate, berra, ri, tortura, quer saber/ Do meu segredo na poeira a fugir...

Ao saber quem havia escapado, o ‘gato’ não quis reforço para persegui-lo. Ele próprio iria capturar o fujão. Capturar não, acabar com a vida dele. Pois, o quê podia fazer um cabra a pé, carregando mala fedorenta, perante alguém hábil, a cavalo e armado?

Targino revistou o defunto para ver se portava dinheiro. Não teve remorsos de roubá-lo. Usou a montaria para chegar à cidade mais próxima e depois a vendeu. Os urubus deviam ter se banqueteado com os restos do maldito...

O motor do ônibus fê-lo abrir os olhos. Parecia que acordava de um pesadelo. Quando pudesse entraria em contato com os parentes. Por enquanto precisava instalar-se em algum lugar. Localidades, paradas, paisagens passavam, modificavam-se até ele chegar, ao anoitecer, numa cidade do litoral paulista. Sentia-se um homem livre. Mas o quê fazer num local em que não conhecia ninguém? Nova jornada de sua vida se iniciava. E foi atravessando a rua, na saída da rodoviária, que ouviu um carro brecar a sua frente, jogando-o ao asfalto. Meio zonzo avistou um jovem branco que lhe estendia a mão, perguntando:

___ Cara, machucaste?

___ Que nada, meu rei! Sô cabra forte, respondeu Targino, erguendo-se.

Fazia tempo que não tinham cuidados com ele. O estranho se mostrava prestativo.

___ Tô chegano e olha que me assucede!

___ Se estás ferido, vamos a um pronto socorro, sugeriu o outro.

___ Deixa disso! Já fui chifrado, mordido de cobra...

___ Então se não precisas de nada...

Diante de sua afirmativa que estava tudo bem, o motorista voltou para o carro. Não pestanejou em aceitar a carona quando ele perguntou:

___ Vais para onde? Eu te levo...

___ Ô xenti, tô procurano um quarto de preço barato...

___ Entra aí! Lá pros lados da praia há pensões...

___ Aceito, ia ficá perdido mesmo...

Targino colocou a mala no banco de trás e se ajeitou ao lado do desconhecido. O danado cheirava bem. Teve vergonha. Devia estar com uma catinga daquelas. Olhava as ruas, as casas, os luminosos, atento. Nunca lidara com gente como o benfeitor. Jeito educado, de anel no dedo, roupas finas, ar de doutor, bem apessoado. Teve vontade de desabafar e contar-lhe sua história. Os maus tratos que sofrera, os riscos que passara, o fulano que exterminara. Não. Ele não entenderia... Chegaram a uma rua de pouco movimento. Tabuleta chamou sua atenção: Morada da Coruja. Ao se despedirem, o recém conhecido indagou-lhe:

___ Qual teu nome?

___ Targino, e o teu?

___ Alan... sorte na cidade... até...

___ Inté, meu rei!

Adentrou a pensão, sendo recebido por um senhor. Trataram o preço do aluguel e Targino foi para o quarto. Tudo bem diferente do aposento rústico em que vivera. Precisava tomar um banho. Despiu-se. A água morna, o sabonete perfumoso faziam-no relaxar. Caia na cabeça, escorria pelo corpo, trazia em recordação um chamego: Santina. A mão, tocando o sexo, certificava-o que era macho. Em movimentos repetitivos se perdeu no prazer como se estivesse com ela... Ao som apertado na garganta, suas pernas bambearam, dobrando-se até o chão. Ficou ali, extenuado, sob o vapor a acalentá-lo por minutos... Enxugou-se e se deitou na cama macia. Olhando o teto do cômodo, não via as telhas. A luz o incomodava. Desligou-a. A “grana” que surrupiara não o garantia por muito tempo. Precisava arranjar o quê fazer. Tinha que escrever para a mãe. Nunca mais dera notícia. Caíra no mundo, dizendo ir fazer fortuna como o pai...

Os dias foram transcorrendo. A ociosidade o deixava intranqüilo. Não era turista. Não fizera nenhuma amizade. Assistia a TV, almoçava em qualquer canto, dormia. À noite perambulava pelos lados da praia. Foi numa dessas ocasiões que, ao urinar no areão, avistou um vulto esquio a aproximar-se, interpelando-o.

___ Olhando o mar, sig? disse a voz.

___ Vim dá uma mijada... já tô saino... do que me chamô?

___ Esquece... Por que essa pressa? Não vou te fazer mal...

Ele riu de sua afirmativa. Confiava nos músculos perante aquela coisa.

___ Mas tá! Tinha de sê mutcho macho!

___ Então és muito macho? ela perguntou, maliciosamente.

Tô quereno conversê desse tipo, não...

___ Pega meu cartão, disse enfiando-o no bolso do seu casaco. Meu nome é Miss Planet, apresentou-se. Estou relacionando sigs ( boys )... É trabalho que rende dinheiro...

___ Nunca fui pedreiro... É dinheiro do bom? ele quis saber, cheio de dúvidas.

___ Dinheiro da melhor qualidade, tranqüilizou-o ela, sorrindo...

___ Já passei por maus bocados por ir atrás de falação...

___ Não tenhas medo... é só telefonar... até breve...

E como veio a tal Miss Planet se foi. Não muito letrado, Targino teve dificuldade de entender o que estava escrito no cartão. E quando Alan o procurou, depois de uma semana, esclareceu suas dificuldades.

___ Quem é vivo sempre aparece, meu rei!

___ Estás bem acomodado, Targino?

___ O quarto tá de bom tamanho... de onde vim... o que já passei...

___ Tens saído?

___ Já andei por esse mundo de praia, cheio de jardim. Tudo diferente de Fortaleza...

___ Então vieste de Fortaleza?

___ Acertô! Canoa Quebrada, Barro Branco, Jeriqüaqüara... Sô do sertão...

___ Só conheço Natal, explicou Alan.

___ Tudo aquilo é bom pra barão. A renti tem mais é que ralá..

___ Vamos rodar por aí? sugeriu Alan.

___ Claro, meu rei! Tenho paletado sozinho. Vô si trocá...

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