O Jogo do Anjo
"...Tinha a pele mais pálida que jamais tinha visto, e o cabelo negro brilhante, cortado em ângulo reto, emoldurava seu rosto. Seus lábios estavam pintados com algo que parecia sangue fresco, e círculos esfumaçados de sombra escura rodeavam seus olhos verdes. Movia-se como um felino, como se aquele corpo apertado num corselete de escamas reluzentes fosse de água e tivesse aprendido a enganar a gravidade. Em sua garganta esguia e interminável enrolava-se um fita de veludo escarlate, da qual pendia um crucifixo invertido. Incapaz de respirar, vi que se aproximava lentamente, meus olhos grudados naquelas pernas desenhadas com traço impossível, sob meias de seda que provavelmente custavam mais do que eu ganhava em um ano, apoiadas em sapatos pontiagudos como punhais, presos a seus tornozelos por fitas de seda. Em toda minha vida nunca tinha visto nada mais belo, nem que me desse tanto medo." (p. 29)
O ambiente sombrio, misterioso e nebuloso da Barcelona dos anos 20 é o pano de fundo da mais nova obra do romancista espanhol Carlos Ruiz Zafón que se consagrou com o romance "A Sombra do Vento". A trama se baseia-se na tríade característica dos textos de Zafón: o amor pelos livros, paixão e amizade.
A saga do protagonista David Martín ocorre, cronologicamente, anterior a trama de Julián Carax e Daniel Sempere de "A Sombra do Vento", no entanto alguns personagens e lugares, como a livraria Sempere & Filhos e o Cemitério dos Livros Esquecidos voltam a aparecer em "O Jogo Anjo". Na verdade, as duas histórias de Zafón ocorrem em momentos distintos, porém em determinado momento se desenrolam de forma paralela. Mérito para Zafón que consolida como uma das vozes mais originais da literatura atual.
A saga de Martín é ainda mais misteriosa e intrigante que do livro anterior. Com o desenrolar da trama, os fatos contribuem para que o protagonista se desespere cada vez mais, ao passo que percebemos que a história, a cada página lida, torna-se difícil de ser solucionada e compreendida na sua totalidade.
Ao final do livro, percebemos que nossas suspeitas não eram à toa, o livro é infininatemente mais subjetivo e polissêmico que o anterior, nada é dito com todas as letras, muita coisa é imaginada, pensada e suposta. O que acaba criando não uma história com início, meio e fim, mas uma obra complexa e completa em que se abrem inúmeras possibilidades para o seu desfecho, o que fatalmente nos remete ao clássico Dom Casmurro de Machado de Assis.
Zafón cria uma Barcelona Gótica, fortemente influenciada por Edgar Allan Poe, cria personagens fascinantes no melhor estilo Alexandre Dumas e paixões arrebatadoras e intensas que nos remete aos folhetins amorosos de Victor Hugo. Uma obra tão apaixonante como a Sombra do Vento, compará-las seria um pecado sem tamanho. Cada uma possui valores, sentimentos e significados próprios. Tanto uma como a outra estão muito acima de outros exemplares da literatura estrangeira atual. Esperemos o próximo livro de Zafón para nos embasbacarmos com essa Espanha única e cheia segredos.
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