O Casamento – Nelson Rodrigues, Editora Agir, 2006.
Não sou conhecedora da obra de Nelson Rodrigues. Comecei a ler O Casamento acreditando que romance e autor me surpreenderiam. Cometi um ligeiro engano, apenas de intensidade. Eles me surpreenderam muito mais do que eu esperava e eu fui apresentada à obra rodriguiana pelo romance censurado em 1966, aproximadamente dois meses após sua publicação. Foi Carlos Medeiros Silva, ministro da Justiça do Marechal Castello Branco, quem assinou a portaria em 12 de outubro. O documento dizia ser O Casamento um “atentado” contra “a organização da família”.
Primeiro e único romance de Nelson Rodrigues, foi encomendado por Carlos Lacerda que havia aberto a editora Nova Fronteira e estava de olho no potencial de provocação. Ele passou os originais a Alfredo Machado, fundador da Record e na época também dono da Eldorado que lançou a primeira edição.
Gostaria de, no meu convite à leitura, lhes apresentar os seus personagens, a começar pelo Monsenhor Bernardo. Achei o Monsenhor o personagem mais saudável da história, entenda por saudável o mais livre de repressões severas. O fato de ser padre pode representar, na minha viagem, um quadro temporário. É descrito por Sabino, o personagem central, como possuidor de voz de barítono, aquelas ventas e hálito de centauro, passadas largas e furiosas. “Havia qualquer coisa de obsceno na vitalidade do Monsenhor”. É sua a frase “Se cada um conhecesse a intimidade sexual dos outros, ninguém falaria com ninguém”. É o Monsenhor Bernardo que tenta ajudar Sabino a encarar o material reprimido e a desafiar a censura severa que há dentro dele.
Sabino – o pai da noiva – tem um problema sério com as palavras, consequência da repressão, principalmente aquelas que disparam a volúpia. Masturbação é uma delas. Só se permitia dizer onanismo. Gozar então, é palavra de vagabunda. A palavra que o mais deprimia era cocô. Só podia falar fezes. O ato sexual, digo amoroso, era sempre feito, com a mulher e as outras, sem palavras. Quando Eudóxia, a esposa, queria falar ele a interrompia e a cortava com um “Cala a boca!”. Era obcecado pela lembrança do pijama dourado de fezes expelidas pelo pai no momento da sua morte. Ficou durante meses tendo alucinações olfativas.
Eudóxia tinha mágoa do marido. Com aquele homem silencioso, e ela também calada, durante o ato sexual, este tinha a nostalgia do prazer solitário. Eudóxia sentia que podia falar sobre a franca preferência que seu marido sentia pela filha caçula, mas ao vir à tona as questões edípicas envolvendo pai e filha e a ameaça, de certa forma, de serem consumadas pede diligentemente que se deixe isso para depois do casamento. A sugestão é que Eudóxia sentindo a situação edípica como uma possibilidade real reage por um lado como cúmplice dos sentimentos do marido, e por outro vendo no casamento da filha a salvação de tudo.
D. Noêmia, secretária de Sabino e amante de Xavier. Apesar de uma atitude de humilhação em muitos momentos ela ganha espaço na história e no mundo interno de Sabino. Ela contribuirá, de certo modo, para que Sabino conquiste uma libertação do sentimento de culpa que o persegue.
Xavier é casado com uma leprosa. É só ele quem pode dar banho na esposa e fazer os curativos em suas chagas. E por esse motivo não pode se separar da esposa ou interná-la em uma clínica para viver com Noêmia. Este personagem tem um papel fundamental no encaminhamento da história.
Por quê deixei para falar em Glorinha, a noiva do tal casamento, só agora? Acho que por uma preferência natural e pessoal pelos outros. Coisas de leitor. Glorinha é uma safada no sentido rodriguiano do termo, angelicalmente sedutora. Desempenha bem, para aqueles que querem se enganar – os pais – o papel de menina-noiva-virgem. No final da história ficará uma pergunta para o leitor responder: foi Glorinha, a moça que tentou, nua, seduzir o Monsenhor Bernardo? Glorinha tem impulsos fortes, selvagens, que parecem passar longe do filtro do pensamento. Parece ser uma característica, aliás, dos personagens de Rodrigues, ou sofrem de uma repressão cruel, severa, ou esta passa ao largo dos impulsos dando espaço para comportamentos socialmente condenáveis e até criminosos.
Eu não poderia deixar de falar de Teófilo, noivo de Glorinha, e suposto pederasta e namorado de Zé Honório. A pouca participação de Teófilo no enredo é marcada por uma resistência à corrupção.
Zé Honório é dono de uma história comovente. Aos doze anos foi encontrado nu, pelo pai, com um garoto um pouco mais velho, num coito em que Zé fazia o papel feminino. O pai lhe dá surras de chicote por 30 dias, não lhe permitindo chorar. Quando mais tarde, o pai encontrar-se condenado a uma cama por um derrame, Zé Honório se vingará dele com Romário, um mulato forte, lustroso, de ventas obscenas… boca aberta. Olho incandescente… coxa plástica, elástica, vital como a anca de um cavalo.
E finalmente Antonio Carlos, filho do Doutor Camarinha, o médico ginecologista e amigo da família de Sabino. No início do livro Antonio Carlos já estará morto, mas será ele quem facilitará a revelação do lado fêmea selvagem de Glorinha ao leitor. O Camarinha pai viverá um grande sentimento de culpa com a morte do filho.
No final desta edição da Editora Agir há uma matéria jornalística sobre a censura que a primeira edição sofreu. São reproduzidas citações contidas na apresentação da capa daquela edição. Uma delas diz: Mas é uma experiência, não só literária, mas de vida, que o leitor não esquecerá nunca mais. Eu estou fazendo destas as minhas palavras.
Não sou conhecedora da obra de Nelson Rodrigues. Comecei a ler O Casamento acreditando que romance e autor me surpreenderiam. Cometi um ligeiro engano, apenas de intensidade. Eles me surpreenderam muito mais do que eu esperava e eu fui apresentada à obra rodriguiana pelo romance censurado em 1966, aproximadamente dois meses após sua publicação. Foi Carlos Medeiros Silva, ministro da Justiça do Marechal Castello Branco, quem assinou a portaria em 12 de outubro. O documento dizia ser O Casamento um “atentado” contra “a organização da família”.
Primeiro e único romance de Nelson Rodrigues, foi encomendado por Carlos Lacerda que havia aberto a editora Nova Fronteira e estava de olho no potencial de provocação. Ele passou os originais a Alfredo Machado, fundador da Record e na época também dono da Eldorado que lançou a primeira edição.
Gostaria de, no meu convite à leitura, lhes apresentar os seus personagens, a começar pelo Monsenhor Bernardo. Achei o Monsenhor o personagem mais saudável da história, entenda por saudável o mais livre de repressões severas. O fato de ser padre pode representar, na minha viagem, um quadro temporário. É descrito por Sabino, o personagem central, como possuidor de voz de barítono, aquelas ventas e hálito de centauro, passadas largas e furiosas. “Havia qualquer coisa de obsceno na vitalidade do Monsenhor”. É sua a frase “Se cada um conhecesse a intimidade sexual dos outros, ninguém falaria com ninguém”. É o Monsenhor Bernardo que tenta ajudar Sabino a encarar o material reprimido e a desafiar a censura severa que há dentro dele.
Sabino – o pai da noiva – tem um problema sério com as palavras, consequência da repressão, principalmente aquelas que disparam a volúpia. Masturbação é uma delas. Só se permitia dizer onanismo. Gozar então, é palavra de vagabunda. A palavra que o mais deprimia era cocô. Só podia falar fezes. O ato sexual, digo amoroso, era sempre feito, com a mulher e as outras, sem palavras. Quando Eudóxia, a esposa, queria falar ele a interrompia e a cortava com um “Cala a boca!”. Era obcecado pela lembrança do pijama dourado de fezes expelidas pelo pai no momento da sua morte. Ficou durante meses tendo alucinações olfativas.
Eudóxia tinha mágoa do marido. Com aquele homem silencioso, e ela também calada, durante o ato sexual, este tinha a nostalgia do prazer solitário. Eudóxia sentia que podia falar sobre a franca preferência que seu marido sentia pela filha caçula, mas ao vir à tona as questões edípicas envolvendo pai e filha e a ameaça, de certa forma, de serem consumadas pede diligentemente que se deixe isso para depois do casamento. A sugestão é que Eudóxia sentindo a situação edípica como uma possibilidade real reage por um lado como cúmplice dos sentimentos do marido, e por outro vendo no casamento da filha a salvação de tudo.
D. Noêmia, secretária de Sabino e amante de Xavier. Apesar de uma atitude de humilhação em muitos momentos ela ganha espaço na história e no mundo interno de Sabino. Ela contribuirá, de certo modo, para que Sabino conquiste uma libertação do sentimento de culpa que o persegue.
Xavier é casado com uma leprosa. É só ele quem pode dar banho na esposa e fazer os curativos em suas chagas. E por esse motivo não pode se separar da esposa ou interná-la em uma clínica para viver com Noêmia. Este personagem tem um papel fundamental no encaminhamento da história.
Por quê deixei para falar em Glorinha, a noiva do tal casamento, só agora? Acho que por uma preferência natural e pessoal pelos outros. Coisas de leitor. Glorinha é uma safada no sentido rodriguiano do termo, angelicalmente sedutora. Desempenha bem, para aqueles que querem se enganar – os pais – o papel de menina-noiva-virgem. No final da história ficará uma pergunta para o leitor responder: foi Glorinha, a moça que tentou, nua, seduzir o Monsenhor Bernardo? Glorinha tem impulsos fortes, selvagens, que parecem passar longe do filtro do pensamento. Parece ser uma característica, aliás, dos personagens de Rodrigues, ou sofrem de uma repressão cruel, severa, ou esta passa ao largo dos impulsos dando espaço para comportamentos socialmente condenáveis e até criminosos.
Eu não poderia deixar de falar de Teófilo, noivo de Glorinha, e suposto pederasta e namorado de Zé Honório. A pouca participação de Teófilo no enredo é marcada por uma resistência à corrupção.
Zé Honório é dono de uma história comovente. Aos doze anos foi encontrado nu, pelo pai, com um garoto um pouco mais velho, num coito em que Zé fazia o papel feminino. O pai lhe dá surras de chicote por 30 dias, não lhe permitindo chorar. Quando mais tarde, o pai encontrar-se condenado a uma cama por um derrame, Zé Honório se vingará dele com Romário, um mulato forte, lustroso, de ventas obscenas… boca aberta. Olho incandescente… coxa plástica, elástica, vital como a anca de um cavalo.
E finalmente Antonio Carlos, filho do Doutor Camarinha, o médico ginecologista e amigo da família de Sabino. No início do livro Antonio Carlos já estará morto, mas será ele quem facilitará a revelação do lado fêmea selvagem de Glorinha ao leitor. O Camarinha pai viverá um grande sentimento de culpa com a morte do filho.
No final desta edição da Editora Agir há uma matéria jornalística sobre a censura que a primeira edição sofreu. São reproduzidas citações contidas na apresentação da capa daquela edição. Uma delas diz: Mas é uma experiência, não só literária, mas de vida, que o leitor não esquecerá nunca mais. Eu estou fazendo destas as minhas palavras.