Leituras várias

Desde o minha última quinzena de férias que entrei numa fase de leitura quase compulsiva que me deixou pouco tempo para a escrita.
Tudo começou como “Pequeno Livro do Grande Terramoto” do Rui Tavares. Neste excepcional livro existe referências a uma autora chamada Susan Neiman, filósofa e Directora do Einstein Forum. Por coincidência o seu livro, “O Mal no Pensamento Moderno, uma História Alternativa da Filosofia”, olhava para mim há várias semanas na mesa da sala dos meus pais. É obra que merece sem sombra de dúvida os prémios que recebeu. Abordando as tentativas de explicar a existência do mal a professora Susan conta-nos a história do pensamento filosófico desde a época do grande terramoto de Lisboa. Porque de facto tudo começou aí, no ano de 1755 num feriado, 1 de Novembro, que comemora o dia de Todos-Os-Santos. Então se Deus existe porque decidiu castigar a pobre gente de Lisboa que nem sequer era assim tão pecadora em comparação com tantos outros sítios onde a religião nem estava assim tanto na moda? E porque terão sido poupados os bordéis enquanto tantas igrejas magníficas foram reduzidas a escombros? Perguntas que andaram na boca dos filósofos de toda a Europa. Não se falava noutra coisa senão em Lisboa. Da península até à Rússia. Voltaire escrevia o seu “Poema Sobre o Desastre de Lisboa” considerando o mundo um lugar horrível, que parecia abandonado por Deus. Rousseau contra-atacava. Opiniões dividiam-se. Uns achavam que Deus afinal não existia. Outros achavam que isto era a prova de que Ele estava zangado e que brevemente outros terramotos maiores serviriam para admoestar os ingleses, os franceses e por aí fora, bem mais pecadores que os beatos Lisboetas.
Lisboa foi o primeiro “ground zero” da história mundial pois foi a partir desta calamidade que se projectou a reconstrução de uma área com o objectivo de minorar danos futuros. Marquês de Pombal teve um papel crucial na resolução da crise. Para além de todas as medidas do foro arquitectónico e de saúde pública (“E agora? Enterrem-se os mortos e salvem-se os vivos!)” que implantou teve também um papel a desempenhar na questão filosófica. Animado pelo pragmatismo que o caracterizava mandou matar o padre Malagrida que não se cansava de anunciar que Lisboa tinha sido alvo do castigo divino. Para o Marquês apenas contava o rápido regresso à normalidade.
Susan Neiman, na parte final da obra, analisa Auschwitz. Neste caso, no dia seguinte à descoberta da tragédia, não foi possível escrever poesia. Porque uma coisa é o mal natural, outra é o que vem do Homem. Aqui o mergulho nos acontecimentos é profundo. Hanna Arendt é citada inúmeras vezes, pois foi uma estudiosa deste assunto tendo assistido aos julgamentos de Nuremberga. Em síntese ficamos a saber que nenhum dos indivíduos que faziam parte da odiosa trama de erradicação de judeus era particularmente mau. A Invenção das câmaras de gás tinha como objectivo causar o menor sofrimento possível no acto homicida dos seres humanos. Em suma, é arrepiante descobrir que aquelas pessoas não eram sádicas. E pecaram mais pela não oposição a um esquema geral e pela indiferença ao que se estava a passar. Ou seja: não é preciso ser especialmente mau para se fazer muito mal. A mim deu-me que pensar.
Outra coisa de interesse no livro é a análise da obra do Marquês de Sade. Antes de lerem Sade, por exemplo os dois romances gémeos: “Justine” e “Juliette”, pensem duas ou três vezes. Sade considerava que se o mal existia é porque Deus assim o quis. E portanto haveria que desfrutar do mal com toda a liberdade. Querem um exemplo? Nieman conta: “Para aqueles que não chegaram ao fim de “Juliette”, os heróis de Sade fazem uma celebração torturando os seus próprios filhos até à morte, e quaisquer outros a quem possam deitar as mãos, como meio para terem um orgasmo melhor”.
Era também convicção deste Marquês que os maus nunca sofrem castigo e os virtuosos não recebem recompensa, o que até faz sentido. Se Sade se considerava um mauzão teve sorte não ter um Deus vingativo. Afinal pode escrever a sua obra no hospício e não me parece que tenha sido alvo de grande sofrimento. Um Deus castigador teria feito Sade reencarnar no século XX mas sob a forma de bigode. Neste caso seriam dois apêndices capilares com consciência, um bigodito do Hitler e uma bigodaça do Estaline. Todas as noites Deus falaria com ele, humilhando-o: “Estás a ver, ó Sade, isto é que é ser mau! Tu foste apenas um badalhoco.”
E daqui regressei a mais dois livros de Aquilino Ribeiro: Cinco Reis de Gente e Lápides Partidas.
No primeiro, o autor, conta uma história do ponto de vista de uma criança de quatro ou cinco anos baseado nas memórias da sua infância. Para quem quiser saber o que é construir personagens-crianças não deixe de ler: é magnífico. Lápides Partidas é também bastante autobiográfico pois tendo lido a obra Um Escritor Confessa-se pude com facilidade reconhecer o protagonista da história. O livro é muitíssimo bom, a escrita é soberba. Mas existe uma passagem que me deu um particular gozo em ler. O jovem aspirante a escritor vai procurar emprego num jornal e o futuro patrão interroga-o a respeito das suas habilitações e inclinações literárias e prega-lha o seguinte sermão: “O curioso, e peço-lhe que não veja no que vou dizer alusão à sua pessoa, é que não há ninguém que se não julgue habilitado a manejar a pena. Porquê? Tenho-me perguntado muitas vezes. Provavelmente devido ao pouco peso do objecto e ainda à passividade do papel em branco. Não será isso? Admito também que se escrevam cartas à prima, cartas que a deixam babadinha de todo, e que resulte daí, para quem as escreve, bem entendido, não parecer milagre nenhum compor a Arte de Amar, de Ovídio.” O discurso continua acabando num diálogo primoroso.
A vida de Aquilino Ribeiro entrelaça-se com a história da queda da Monarquia e com a primeira Republica.
Os cinco volumes da História da Republica de Raul Rêgo riram-se para mim do alto de uma prateleira. Estava de férias. Não resisti.
Acabei presa nesse grande turbilhão que foram os anos de 1910 a 1926. Esta época gera paixões, das boas e das más. Procurei novas fontes. Li o Relato do Machado Santos, o “Herói da Rotunda” ao qual se ficou a dever a vitória do 5 de Outubro. E neste momento estou a meio de um dos dois volumes que Veríssimo Serrão dedica à 1ª República na sua História de Portugal. Pelo meio ficou a tentativa de ler o “Poder e o Povo” do Vasco Pulido Valente cuja escrita carregada de azedume me enfastiou e enervou ao mesmo tempo. Fiquei-me pela quarta parte do livrito que ele no prefácio considera ser até à data a melhor obra sobre o tema...
Li também a obra autobiográfica de Edmundo Pedro, “ Memórias: Um Combate pela Liberdade”, por ter tido a curiosidade de aprofundar os conhecimentos sobre o Tarrafal que o Raul Rêgo descreve citando o jornalista Cândido de Oliveira.
E ainda, As máscaras de Salazar do Fernando Dacosta que se lê de uma assentada e recomendo vivamente.
Estou, como disse, presa numa espécie de tufão político-social. As versões dos factos são muitas vezes contraditórias. No final da obra de Veríssimo Serrão voltarei a debruçar-me sobre o tema com um análise mais profunda. Outras fontes se tornam necessárias consultar.
Em breve retomarei este assunto com mais profundidade.
AnaMarques
Enviado por AnaMarques em 06/01/2009
Reeditado em 27/03/2009
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