O HUMANISMO EM MARTIN HEIDEGGER
“Carta Sobre o Humanismo" é a resposta de Heidegger à pergunta “Comment redonner um sens au “humanisme?” lançada pelo filósofo existencialista Beaufret. Através de uma breve análise sobre o ato reflexivo por si mesmo, independente do aspecto prático que lhe tem sido atribuído ao longo dos séculos, passando pelo papel do homem enquanto “pastor do ente” e da linguagem enquanto “morada do ser”, passando pelo conceito estabelecido no ocidente sobre humanismo e enfim, falando sobre a possível relação entre sua filosofia e o humanismo e sobre a dimensão ética dessa filosofia na possibilidade, ou não, de restaurar esta concepção humanista.
Logo de início Heidegger faz uma crítica à concepção prática de pensamento estabelecida por Platão e Aristóteles e às concepções contemporâneas temerosas de que a filosofia perca a importância se não se elevar à mesma condição das ciências, identificando tais coisas como o abandono da essência do pensar. Para ele o pensar deve estabelecer no homem a relação do ser consigo mesmo. O pensamento fornece ao homem o acesso à linguagem e esta manifesta a verdade do ser que a habita. “Na interpretação técnica do pensar, é abandonado o ser como o elemento do pensar”.
Em seguida, Heidegger questiona a necessidade de se conservar a palavra “humanismo”, para em seguida questionar a atitude aristotélica de vincular o pensar com causas últimas, criando desta forma rótulos como “física”, “lógica”, “ética”, atentado que os pré-socráticos prescindiam de tais rótulos. Nem mesmo de Filosofia eles chamavam seu ato de pensar. O pensamento “termina ao sair de seu elemento”. O pensamento pertence ao ser. “Quando o pensar chega ao fim, na medida em que sai de seu elemento, compensa esta perda, valorizando-se como tékne, como instrumento de formação, e por este motivo, como atividade acadêmica e, mais ainda, como atividade cultural”.
O humanismo é um encontro do homem consigo mesmo, com a sua essência. Mas Heidegger não entende essa “humanitas” como entendiam os gregos e os romanos. Aqui, o homem não é compreendido meramente como o “animal racional”. A concepção do homem como “animal racional” não pensa o homem em direção à sua humanidade, mas sim a partir da sua animalidade. Embora não descarte esta definição como falsa, ela não corresponde à verdadeira dignidade do homem, além de ser oriunda de uma metafísica que questionava somente os entes, sem jamais questionar sobre a verdade do ser e, portanto, jamais perguntando como a essência do homem pertence à verdade do ser. Assim sendo, todo humanismo é metafísica e todo humanismo determina a essência do homem sem a questão da verdade do ser. “Na determinação da humanidade do homem, o humanismo não apenas deixa de questionar a relação do ser com o ser do homem. Mas o humanismo tolhe mesmo esta questão, pelo fato de, por causa de sua origem na Metafísica, não conhecê-la nem compreendê-la”.
Heidegger quer pensar o homem na sua “humanitas”, ou seja, naquilo que ele tem que é diverso do animal. O homem “desdobra seu ser na sua essência, enquanto recebe o apelo do ser”. E é na intimidade deste apelo que ele encontra aquilo onde mora sua essência, a saber, a linguagem. O homem está prostrado na clareira do ser, e isso é precisamente sua essência, o que Heidegger chama de ec-sistência. “A ec-sistência somente deixa-se dizer a partir da essência do homem, isto é, somente a partir do modo humano de ‘ser’”. Somente o homem, por ser o único ente capaz de debruçar-se sobre si mesmo e perguntar sobre o seu próprio ser, possui esse modo tão particular de ser, a ec-sistência. Mas ela não é entendida como a “existentia”, ou seja, a “existentia” como “atualitas”, como realidade efetiva, mas “estar exposto na verdade do ser”.
Todavia, o homem se encontra perdido e “decaído”, conseqüência do esquecimento da verdade do ser. Isso se deve ao esvaziamento da linguagem, que ameaça a essência do homem. A linguagem se abandona ao nosso puro querer e à nossa atividade, como um instrumento de dominação sobre os entes. Por isso é preciso que o homem retorne à sua “pátria”, que é a morada do ser.
Assim, Heidegger nega o humanismo para poder afirmá-lo. Ele o nega no sentido que foi pensado até então, tendo por base a concepção metafísica do homem enquanto “animal racional”. “Dar-lhe novamente um sentido pode significar: determinar de novo o sentido da palavra”. E para isso a essência do homem deve ser experimentada mais originalmente, e essa essência é justamente sua ec-sistência e sua importância ela recebe do próprio ser para a vigilância do ser, pondo-o na própria verdade do ser. “Importa a humanitas a serviço da verdade do ser, mas sem o humanismo no sentido metafísico”.
Por fim, responde quanto à necessidade de uma ética dentro da sua concepção do homem. Alerta que “deve-se tomar todo cuidado à possibilidade de criar uma Ética de caráter obrigatório, uma vez que o homem da técnica entregue aos meios de comunicação de massa somente pode ser levado a uma estabilidade segura através de um recolhimento e ordenamento de seus planejar e agir como um todo, correspondente à técnica”. No entanto, Heidegger não quer uma Ética dos deveres, mas sim uma Ética pautada na Ontologia. Para isso ele remete a Heráclito de Éfeso, numa sentença que diz: “Éthos anthrópo daímon”. A palavras “éthos”, aqui quer dizer “morada” do homem. Destarte, o pensamento já é em si uma ética, posto que é a morada do ser, onde o homem habita com a verdade e é seu pastor.