A LUNETA ÂMBAR, de Philip Pullman
Aviso: esta resenha contém revelações sobre o enredo (spoilers).
É quase um consenso que os episódios finais das grandes séries – em livros ou tevê – nunca agradarão a todos. Talvez até faça sentido afirmar que os que detestaram o final são em número igual ou superior aos que gostaram. Os seguidores (leitores ou telespectadores) mais exaltados culpam imediatamente os autores (escritores, roteiristas ou diretores), apontando-os como pessoas incapazes de chegarem a um desfecho à altura da série. Outros mais bondosos, até assumem certa parcela da culpa, admitindo terem criado grandes expectativas antes do final. E como diz um pensamento budista "grandes expectativas resultam em grandes frustrações".
É claro que estas não passam de tentativas para explicar porque o final não agradou tanto quanto o começo, ou mesmo o meio, da história. É uma tentativa de justificar porque A Luneta Âmbar não me agradou, enquanto os dois volumes anteriores sim. O livro A Luneta Âmbar encerra a trilogia Fronteiras do Universo, do escritor britânico Phillip Pullman. Os volumes anteriores são A Bússola de Ouro e A Faca Sutil. Ao contrário do citado no parágrafo anterior, comecei a ler sem grandes expectativas, pois a pessoa que me emprestou o livro revelou que ele não era bom como os anteriores. E tenho de admitir, ela estava certa.
A Luneta Âmbar revela todos os mistérios levantados nos volumes anteriores, amarra todas as pontas soltas. Os mocinhos vencem os vilões. O universo - ou universos, já que é uma história de viagens dimensionais - é salvo. Aparecem novos personagens importantes, uns para ajudar, outros para atrapalhar. Mesmo assim, é um livro longo e chato. É longo porque é chato, e é chato porque é longo. O leitor ficará aborrecido antes de ler um terço do livro. As páginas parecem travar o tempo e o desenrolar da história não flui naturalmente. Tudo parece forçado e fora de lugar. Estarei eu exagerando? Veja alguns dos motivos que me levaram a pensar assim.
1º problema: a falta de iniciativa e ação dos protagonistas e antagonistas.
Os escritores consagrados não cansam de dizer que o sucesso de uma boa história é a ação. Mas a ação praticada pelos protagonistas, afinal, a história gira em torno deles. Nada mais natural que eles é quem roubem o trem ou vão atrás de quem roubou, matem ou busquem vingança porque mataram um amigo, fujam ou persigam, corram ou cansem de correr e enfrentem o psicopata assassino, virem um monstro verde ou queiram destruir o monstro verde, etc e etc e etc. Qual seria a necessidade de um personagem principal que não faz nada, que não ajuda a trama avançar, que deixa a impressão que tudo aconteceria com ou sem ele? Imediatamente me vem à memória o principal defeito da 5ª temporada da série 24 Horas: o protagonista, Jack Bauer, não resolvia nada, só era capturado várias vezes pelos vilões, e sem os velhos amigos das temporadas anteriores, o velho Jack já era. São os personagens secundários que salvam o dia. Em A Luneta Âmbar, Will e Lyra estão tão ruins em seus papéis que não lembram nem de longe as suas atuações anteriores: A Bússola girava em torno de Lyra e A Faca em torno de Will, mas A Luneta passou a girar em volta dos personagens secundários. Não é Will quem salva Lyra. Nenhum dos dois vence os antagonistas - a Autoridade e Metraton -, aliás, o grandes vilões dão menos trabalho que os seus subalternos. Melhor, não dão trabalho algum e mostram ser - assim como os protagonistas - irrelevantes para a trama.
2º problema: personagens ruins ou desnecessários ou ambos.
Começo pelos antagonistas. Seriam personagens que dariam excelentes vilões se não fossem caracterizados como personagens planos e não redondos. Explico, os personagens planos são os atores coadjuvantes, que não precisam de detalhes e somem do mesmo modo como apareceram, puf!, sem que ninguém perceba. Os dois grandes vilões do universo são insuportavelmente fracos e descartados facilmente. Faz-nos pensar como é que alcançaram o posto de dominantes de mundos se caíram tão fácil. A Autoridade, a origem de todo mal mostrado na trilogia, morre de inanição, chorando e gritando como um bebê. É patético. Metraton, o superanjo fodão, líder das forças do mal, é derrotado em uma briga corpo-a-corpo com dois humanos que não tinham poder algum. Os vilões dos livros anteriores, a sra. Coulter e o Lorde Asriel, poderiam render mais, mas são desperdiçados. As intrigas e estratégias feitas por eles não resultam em nada. A mudança em suas personalidades soam falsas devido à rapidez com que são expostas ao leitor.
Ama, a menina que habita páginas e páginas no início do livro, assim que salva Lyra é descartada como se fosse necessária somente ali. Ela foi usada, abusada e jogada fora.
Balthamos e Baruch, os anjos “homossexuais” apaixonados, só sabem lamentar não poderem viver as suas paixões carnais igual a quando eram humanos. Balthamos então chega a dar raiva, por suas covardias e falta de foco.
As criaturas mulefas e tualapi, bem como o universo em que vivem, mostram uma ótima criatividade do escritor (o corpo dos mulefas lembram motos e o dos tualapi barcos à vela), mas deixam a pergunta no ar: “Para que eles servem?” Caberia a mesma resposta se a pergunta fosse sobre o mundo deles, as árvores gigantes, o Pó e o óleo das nozes gigantes: servem só para acrescentar mais páginas inúteis ao livro.
A doutora Mary Malone, do "nosso" universo, assim como Will, em A Faca deixa a impressão que será essencial no desfecho. Mas o que ela faz é extremamente chato. Além de dar uma de antropóloga, vivendo e aprendendo sobre os mulefas, ela sobe nas árvores gigantes e não descobre nada, inventa a tal da luneta âmbar só para ver o pó que todos vêem menos ela, e contar uma histórinha de romance muito ordinária que teve quando era freira que abriu os olhos de Lyra para a vida. A dra. Malone faz muita coisa sem fazer nada. É difícil de acreditar que ações tão pequenas tenham efeitos tão grandiosos quanto o livro quer passar. As críticas inteligentes à igreja que aparecem em A Bússola, que são o grande diferencial da série, viraram argumentos grosseiros e fúteis. Pullman usa Mary para atacar o celibato e o Padre Gomez o fanatismo. Mas o escritor sai do aspecto geral para exemplos particulares, e não consegue criticar o problema, só os personagens.
O Padre Gomez, assassino religioso com a missão divina de matar Lyra, é inverossímil ao extremo. Ele recebe o perdão antecipado pelo assassinato que pretende cometer, mas sente-se mal na possibilidade de ferir Will em algum descuido por ele estar perto de Lyra, para logo em seguida matar sem remorsos um tualapi só para mostrar quem manda no pedaço. A consciência do homem mais parece uma montanha-russa! O seu fim também é fútil, fazendo com que o leitor faça questão de apagar a sua figura da memória como se ele nem mesmo tivesse entrado na história. Eu já apaguei e não notei diferença alguma.
3º problema: cenas inúteis e irrelevantes para a trama.
O objeto que dá o título ao livro é inútil na trama. Enquanto a bússola de Lyra, ou alietômetro, responde a qualquer pergunta que ela faça e a faca de Will de um lado corta qualquer material que exista e do outro abre portais interdimensionais, o que faz a luneta? Ela deixa que dra. Malone veja o Pó. Só isso. Emocionante, não?
As viagens através de várias dimensões feitas por Will e Lyra em A Faca são meios de se atingir um objetivo. Ou eles estão fugindo ou precisam chegar em outro lugar sem serem vistos. Agora eles passam de um universo ao outro em uma velocidade vertiginosa, às vezes apenas para dormir em um lugar calmo. São tantas dimensões que confunde.
Há outras cenas que não acrescentam nada: Will quebrar a faca; o mundo intermediário entre o mundo dos vivos e o dos mortos; a conversa com as Hárpias; a luta na usina de energia; a batalha universal onde nenhum dos personagens principais tem um papel relevante e o final que poderia salvar o livro, mas dá o golpe de misericórdia como sendo um grande fiasco.
4º problema: referências e citações para dar um ar intelectualizado.
As citações e o uso de personagens bíblicos, como Enoque, por exemplo, não ajudam na história e parecem colocadas ali só para que o leitor fique ciente que o escritor leu a Bíblia. Pelo menos, Gênesis. Em seus agradecimentos finais, o escritor revela quais livros o influenciaram na escrita de A Luneta:
"Eu roubei idéias de todos os livros que li em minha vida. (...) há três obras com relação às quais - mais do que todas as outras -, devo reconhecer, tenho dívida de gratidão. Uma é o ensaio Sobre o Teatro de Marionetes, de autoria de Heinrich von Kleist (...) A segunda é Paraíso Perdido de John Milton. A terceira são as obras de William Blake." (pg. 525-6)
Pena que a qualidade de A Luneta Âmbar não chegue nem perto das obras que inspiraram o autor. Parece que ele as usou somente nas citações, que diferente dos outros volumes, aparecem no começo de cada capítulo.
5º problema: nenhum final memorável.
Como o tema central da história é a grande batalha final entre o bem e o mal, muitos personagens ou morrem ou viram purpurina no ar ou não vivem felizes para sempre. Muitos se sacrificam para salvar outros. Mas nenhum final é memorável. Os únicos que morrem deixando saudade são os cavaleiros galivezpianos Tialys e Salmakia, a meu ver os dois melhores personagens da trama. Fica a velha impressão de que A Bússola e A Faca fizeram sucesso e os ediores pressionaram o autor para escrever o final logo, mesmo que fosse mal acabado e bobo. A Faca é inferior à parte anterior como uma fotocópia de um original. E A Luneta é pior, a fotocópia da fotocópia. O gostinho de mistério, o de querer continuar lendo, vai acabando à medida em que as explicações idiotas vão sendo dadas.
A Luneta Âmbar ganhou o Prêmio Whitbread como Livro do Ano, apesar de ser o pior dos três livros da saga. Provavelmente aconteceu o mesmo que com o último livro de As Crônicas de Nárnia de C. S. Lewis, A Última Batalha, que ganhou o Prêmio Carnegie Award de Melhor Livro Infanto-Juvenil do Reino Unido em 1956, apesar de ser o mais fraco dos sete volumes. Talvez seja um costume britânico premiar os últimos volumes de uma série, mais pelo reconhecimento atrasado do conjunto da obra do que pelo valor do volume em si.
Se você pretende ler a trilogia Fronteiras do Universo, talvez seja bom ter em mente o pensamento filosófico de que mais vale a jornada e não o destino. Portanto, curta a paisagem, tire fotos nas paradas e pontos turísticos, aproveite o percurso, pois o final não trará nada de interessante.
(publicado originalmente em 04/11/2008 no blogue www.jefferson.blog.br)