DEXTER: A MÃO ESQUERDA DE DEUS, de Jeff Lindsay
“Sociopatia: As características dos sociopatas englobam o desprezo pelas obrigações sociais e a falta de consideração com os sentimentos dos outros. Eles possuem um egocentrismo exageradamente patológico, emoções superficiais, teatrais e falsas, pobre ou nenhum controle da impulsividade, baixa tolerância para frustração, baixo limiar para descarga de agressão, irresponsabilidade, falta de empatia com outros seres humanos, ausência de sentimentos de remorso e de culpa em relação ao seu comportamento. Não obstante, eles são artistas na capacidade de disfarçar de forma inteligente suas características de personalidade. Na vida social, o sociopata costuma ter um charme convincente e simpático para as outras pessoas e, não raramente, ele tem uma inteligência normal ou acima da média.” (Yahoo!)
O que você pensaria de torcer por um “mocinho” que é um assassino em série? De se colocar no lugar de alguém que finge ser uma pessoa normal, mas que mata sem nenhuma hesitação? Se a sua resposta é não, eu nunca pensaria nisso, é porque você ainda não conhece Dexter Morgan, o mais recente mocinho-vilão de sucesso na tevê, internet e literatura. Dexter é o sociopata sombrio, calculista, frio e adorável criado pelo escritor norte-americano Jeff Lindsay.
Dexter Morgan trabalha na polícia de Miami. É perito em borrifos de sangue. Possui uma irmã de criação, Deborah, e uma namorada chamada Rita. E a sua vida seria completamente normal, e tediosa, se não guardasse um segredo: ele é um assassino. Mas não um simples assassino, ele é um matador de assassinos, um serial-killer de serial-killers. Isso porque o seu pai adotivo, o policial Harry, percebendo o lado sombrio de Dexter ainda na adolescência, criou regras e ensinou o filho como e a quem matar. O código Harry ficou marcado na mente doentia de Dexter: matar só os que merecem. Pedófilos, assassinos, psicopatas, estupradores, traficantes, enfim, pessoas que Dexter sabe como pensam e agem. Eles são iguais a ele. Por isso, Dexter sabe onde encontrá-los, muitas vezes antes da polícia, para saciar a sua fome assassina.
“Sou um monstro bem asseado.” (pg. 21)
Porém, a rotina de trabalhos periciais durante o dia e de caçador de monstros durante a noite de Dexter é interrompida: um novo assassino aparece em Miami, matando prostitutas e separando cirurgicamente as partes do corpo. Sem vestígios de sangue. Dexter percebe que este assassino é diferente, um verdadeiro artista (para Dexter), que mata como ele gostaria de fazer e que deixa mensagens que somente ele percebe. Dexter encontra enfim um amiguinho para brincar. Mas como parar este assassino sem revelar o seu segredo? Por que ele escolheu Dexter para brincar? Este é o desafio de Dexter na trama. Mas à medida que desvenda a identidade do Carniceiro de Tamiami (no livro; ou Assassino do Caminhão de Gelo, “ITC - Ice Truck Killer”, na tevê), Dexter precisa descobrir as razões psicológicas de porque ele próprio é assim. Dex inicia um jogo de xadrez onde o seu lado obscuro enfrenta um outro lado mais obscuro, desconhecido, dele mesmo.
“Ninguém gosta de mim, nem jamais gostará. Nem mesmo, e principalmente, eu.” (pg. 56)
Antes de ser apenas uma obra sombria para pessoas de gostos estranhos, Dexter mostra de modo superlativo algo que todos nós temos: o lado sombrio. Quantos não têm dentro de si aquela voz que insiste para fazer algo errado, a Coisa dentro, o observador silencioso, o cara sentado no banco de trás do carro e que, às vezes, consegue assumir o volante? Chame de instinto animal, alterego, tentação, desejo, o que quiser; Dexter o chama de Passageiro das Trevas. Assim, não tentando livrar-se desta voz interior, mas considerando-a como parte importante do seu ser, Dexter mostra ser o oposto de Raskólnikov – personagem de Crime e Castigo, de Dostoiévski –, pois enquanto no último há uma consciência que o atormenta e sentimentos de culpa que o recriminam quando comete um crime, no primeiro não há nada disso. Parece que a consciência de Dexter foi substituída pelo Passageiro das Trevas. É como se aparecesse só o diabinho para ajudá-lo nas decisões.
“Felizmente, eu não tenho consciência.” (pg. 35)
Outro ponto importante refere-se a máscara criada por Dexter para se ajustar como alguém normal e passar despercebido. Demonstra algo que todos nós fazemos: nos adaptamos, fingimos ser o que não somos para sermos aceitos em determinado grupo. Usamos máscaras. A diferença reside apenas no grau de simulação. Dexter é o grau extremo, pois usa a máscara a maior parte do tempo, e somente quando está matando é que se revela de verdade. Já parou pra pensar quando é que você se mostra de verdade, sem máscaras? Como você age quando ninguém mais está vendo?
Jeffry P. Freundlich (1952-), ou Jeff Lindsay, é casado com Hilary Hemingway, sobrinha de Ernest Hemingway, e começou a escrever por volta de 1994 em parceria com a esposa, mas veio a se destacar só anos depois no gênero suspense policial com a série de livros que trazem Dexter Morgan como protagonista. Até o momento são quatro livros: Darkly Dreaming Dexter (2004), Dearly Devoted Dexter (2005), Dexter in the Dark (2007) e Dexter By Design (previsto para 2009). O primeiro livro traduzido no Brasil veio em julho deste ano, com o título Dexter: a mão esquerda de Deus (PLANETA, 2008). O título brazuca ficou distante do significado original - algo como “Adorável Sombrio Dexter” – mas soa bem melhor aos leitores brasileiros que não conhecem a série televisiva. Remonta à referência bíblica de que, enquanto a mão direita de Deus é usada para a criação, a esquerda é a da destruição. Dexter é assim, Abadon, uma espécie de Anjo Destruidor. É também uma brincadeira sutil com a palavra "dexter", que em grego quer dizer destro. O destro é canhoto. O que parece normal seria anormal. (Nota: não tenho nada contra os canhotos, mas são várias as culturas que consideram o lado direito como representativo do que é bom e o esquerdo como o mal.)
“Estava mais um lindo dia de sol em Miami. Com possibilidade de cadáveres mutilados enfrentarem chuva à tarde. Me vesti e fui para o trabalho.” (pg. 167)
Quem já segue a série Dexter (Showtime, 2006) – atualmente ela está no começo da terceira temporada – deve se surpreender com a escrita leve de Jeff Lindsay. É impressionante como ele consegue contar de forma descontraída e carregada de humor negro, em primeira pessoa, a história de um assassino em série. Esta tática faz com que o leitor conheça os pensamentos sombrios e contraditórios de Dexter. Pode-se tentar entender e até simpatizar com o seu modo de pensar. A tradução de Beatriz Horta talvez contribua para a leveza também, sem erros de português e deixando as palavras latinas no original, para ressaltar a forte influência cubana em Miami. Somente o nome Deborah poderia ter sido traduzido, pois existe em nosso idioma. E também faltou uma nota da tradutora referente à brincadeira, feita recorrentemente no livro, com o nome do policial Angel Batista, da pg. 33: “Angel Batista-sem-parentesco, como ele costumava se apresentar... sem qualquer parentesco com o outro.” O outro é o líder cubano Fulgencio Batista, deposto por Fidel Castro em 1959, com quem Angel certamente não queria ser associado.
A capa da edição brasileira ficou bastante chamativa, com uma mão usando luva cirúrgica e segurando um bisturi, ambos sujos de sangue. Apelativa, mas bonita. O livro só foi traduzido por causa do sucesso da série, uma das mais cultuadas na tevê por assinatura e internet atualmente. Assim, Dexter já era um personagem conhecido dos brasileiros meses antes da publicação do livro, o que deve alavancar as vendas não só deste, mas das sequências, quando forem traduzidas.
Apesar de a primeira temporada da série televisiva ser muito fiel ao livro – até os nomes dos personagens são exatamente iguais, assim como a sequência dos fatos – há algumas alterações que ficaram melhores na tevê. Talvez pelo próprio Jeff Lindsay ter trabalhado no roteiro, pôde melhorar aquilo que não havia gostado no seu livro. Algumas das diferenças principais são: a maneira com que Dexter conhece o Carniceiro de Tamiami, o que a irmã de Dexter descobre sobre ele, o personagem que morre no final. E o próprio final do livro, que parece abrupto demais, destoando do restante. Mas costuma-se dizer por aí que nos bons livros o final é o que menos importa. Por isso, quem assistiu à primeira temporada da série não irá se decepcionar com o livro, e vice-versa.