O CANCIONEIRO DA VELHA ALDEIA, de Vasco dos Santos: Ainda e Sobretudo a Poesia
Cissa de Oliveira
Ler o "Cancioneiro da Velha Aldeia " do autor luso-brasileiro Vasco dos Santos, despertou em mim vários sentimentos, mas dois deles eu não posso deixar de contar logo a princípio deste breve comentário sobre este livro tão especial, talvez o mais especial que eu tive conhecimento nos últimos tempos.
Ocorre que foram antagônicos os dois sentimentos. E assim o foi porque enquanto um deles convidava à explosão de admiração e perplexidade perante a leitura, o outro calava. Era o silêncio, explicável somente pelas coisas que tocam mais fundo e tão profundamente que outra alternativa não resta senão o silenciar.
O “Cancioneiro da Velha Aldeia” é, sem dúvida, um livro de memórias, mas é bom que fique claro que esta característica, na maior parte do elaborado escrito feito todo em versos, serve apenas como pano de fundo para trazer ao leitor um pouco do que foi a história de Portugal, suas aldeias e seu povo.
Assim o autor nos descortina, de Portugal, mais especificamente da Granja de São Pedro, o seu avô João da Silva Manso - um homem que ele apresenta como o que “só sabia guardar touros”, e como ele o fazia bem! e tudo o mais que o rodeava naqueles idos. Nos apresenta, assim, desde as cantigas das procissões: “Senhora das Dores, que aflita estais, mãe dos pecadores, bendita sejais” (livro III – capítulo 2); as canções natalinas “Ó meu Menino Jesus,/ descalcinho pelo chão / metei os vossos pezinhos/ dentro do meu coração...” (Livro VI, capítulo 1); as profissões “Ceifeira que andas na calma, / na calma, ceifando o trigo,/ ceifa as penas da minh´alma, / cef ´ás e lev´ás contigo” (Livro V, capítulo 2), apenas para citar algumas passagens.
Ele nos presenteia também com as personagens típicas, como descrito no Livro VII, capítulos 1 e 2, onde conta da ti Emília Cega “... a voz da ti Emília Cega / entre todas se ouvia, / num tom soberano, / com nenhum outra se confundia”, e do Velho Canchana: “Sempre o conheci assim. / Como amparo, / usava uma velha bengala, /a servir de encosto/ e uma matilha / de cães amigos e fieis / lhe faziam a corte /e compunham o seu cortejo...”.
E as lendas? A mais notável é, sem dúvida, aquela onde conta sobre o nascer de Portugal. “E o milagre, então, se deu,/ naquela hora real,/ o galo, de prova, se ergueu,/ bateu as asas e cantou,/ mui ‘antcho’ se mostrou / e o milagre aconteceu / e, assim, nasceu Portugal” (Livro II, capítulo 1). As superstições não deixam de aparecer: “Credo em cruz,/ santo Nome de Jesus! /Que nunca o diabo comigo se encontre / nem de noite, nem de dia,/ nem à hora do meio dia (Livro I, capítulo 7).
Impressiona a riqueza de detalhes, o linguajar solto mas bem manejado, natural como onda, sempre renascendo a cada verso e com tanta propriedade que tem o poder de gerar no leitor a impressão de estar assistindo a um filme. Aliás, de tamanha fidelidade, seria este livro, segundo a minha intuição de leitora, excelente roteiro para um filme de época.
Não bastasse todo o arsenal de criatividade de Vasco dos Santos, há ainda e sobretudo a poesia! Não porque o livro seja todo escrito em versos, não! É da poesia mesmo que se encontra por ali: “Só a alma saberá/ quantas pedras nela residem... / pedras sem alma não há / almas de pedra sim...”; e também da sensibilidade; vejam que mesmo no ritual da matança do porco o autor deixa transparecer a compaixão e a explicação para o fato, avisando desde o começo: “é coisa da Providência”, matar o porco. Cada coisa em seu lugar. Subsistência (Livro VI, capítulo 4).
Como pode ser percebido pelos trechos referenciados acima, este foi um livro inteiramente escrito em versos. Enfim, o “Cancioneiro da Velha Aldeia” outra pessoa não é senão o próprio autor.
Que Velha Aldeia é esta que merece um cancioneiro? Eis que o adjetivo “velha” é usado por mera questão cronológica, e que a mesma aldeia, através do presente livro ressuscita e paira, atemporal. Milagre feito o nascer de Portugal. E é pela loquacidade e pelo amor do cancioneiro - que logo no princípio expôs o coração num aviso: “As raízes também são / integrantes da história; / fincadas no coração/ fazem parte da memória” - que todo este milagre se fez, e faz.
Mas o precioso escrito não poderia se encerrar sem antes retornar à guarda do gado, como fazia o avô guardador de touros - não bois, “que boi é touro capado” -, lá na Granja de São Pedro. Isto se faz através do Livro IX “O Guardador do Gado do Povo e as Terras Concelhias”. Então, a história é outra: “... é isso mesmo, compadre,/ noutra cousa não se fala,/ o rico arrebanhou tudo/ e boca fechada se cala...” e “Já tu vês, meu compadre, / que nossa terra é rica,/ mas, agora, de verdade, / cada vez mais pobre fica”. A história anda. Por sorte alguém por vezes a reconta, sem tirar nem por, só que em versos.
Por fim, em Vasco dos Santos, romancista experiente e poeta sensível, as palavras surgem aos borbotões e ele as usa sabiamente, seja com abordagens leves, irônicas, filosóficas ou simplesmente com alguma “tirada” interessante que a sua habilidade de escritor permite.
Em alguns casos a história se desnuda em palavras. Aqui, história, poesia e palavras se confundem a serviço da memória. Por tudo isto, o “Cancioneiro da Velha Aldeia” é um livro que fica aconchegado, como acontecimento dos mais caros, acordando o coração da gente, tal sino de igreja, lá numa aldeia distante, distante, para sempre acordando o povo para mais um dia: “dlão!dlão! dlim! dlem! “ .
Quem tão bem criaria o badalar destes sinos – pena, não fui eu... - senão um cancioneiro?
Campinas, setembro de 2008.
Vasco dos Santos: Escritor luso-brasileiro radicado no Brasil, São Paulo, onde reside. Formado em Direito pela USP (São Francisco). Escritor e editor, poeta e ensaísta, romancista, crítico literário e palestrante. Romances editados: “Pé de Boi, Pata de Homem” (esgotado), “O Cristo do Braço Quebrado” (esgotado), “O Mameluco” (romance histórico), “João Ramalho memórias dum povoador” (romance histórico-esgotado); “Porque Choram os Biguás” (Ed. Nova Aldeia-SP, 2004); “O solitário da Montanha” (romance de reflexão introspectiva e mística, Ed. Nova Aldeia-SP, 2005). “Padre Antônio Vieira, o mestiço” (romance histórico-biográfico - edição a sair este ano por Lisboa). Contos: “Contos do Dia a Dia no Vale do Paraíba” (esgotado),”Os Filhos da Rua”, “O Menino e a Rosa” (esgotado). Poesia: “O Silêncio do Mar Salgado” (Ed. Nova Aldeia-SP, 2004), “O Achamento do Brasil” (Ed. Nova Aldeia-SP, 2006), “Carmen - 47 sonetos + Um” (Ed. Nova Aldeia-SP, 2005). Ensaios: “Graciliano Ramos Vida e Obra”, “A Invenção do Mar” (Leitura dum clássico - no prelo). E-mail: vasco.s@terra.com.br