"A MENINA E O PÁSSARO ENCANTADO"
"A MENINA E O PÁSSARO ENCANTADO"
ADRIANO DA SILVA RIBEIRO
Graduado em Letras e suas Literaturas - PUC Betim
Na narrativa "A menina e o pássaro encantado", de Rubem Alves, observa-se que o autor, em linguagem simples, explica o comportamento do ser humano para o público infantil.
Inicialmente, é importante esclarecer, para entender a obra, a noção de literatura infantil adotada por K.W.Peukert, já refletida por ZILBERMAM (1987), em "O Estatuto da Literatura Infantil", que diz na página 13:
"...se a criança — devido não só à sua circunstância social, mas também por razões existenciais — se vê privada ainda de um meio interior para a experimentação do mundo, ela necessitará de um suporte fora de si que lhe sirva de auxiliar. É este lugar que a literatura infantil preenche de modo particular, porque, ao contrário da pedagogia ou dos ensinamentos escolares, ela lida com dois elementos que são especialmente adequados para a conquista desta compreensão do real:
— com uma história, que apresenta, de maneira sistemática, as relações presentes na realidade, que a criança não pode perceber por conta própria:
"A criança entende a história sem estes pressupostos [do adulto].
Sua compreensão da realidade, existência e vida não — ainda não — se baseia em processos lingüísticos de comunicação, mas nas relações sociais primárias e nas próprias atividades. As histórias infantis desempenham, pois, uma primeira forma de comunicação sistemática das relações da realidade, que aparecem à criança numa objetividade corrente. Ou, por outra: as histórias infantis são uma espécie de teoria especulativa além da atividade imediata social e individual da criança".
— com a linguagem, que é o mediador entre a criança e o mundo, de modo que, propiciando, através da leitura, um alargamento do domínio lingüístico, a literatura infantil preencherá uma função de conhecimento: "o ler relaciona-se com o desenvolvimento lingüístico da criança, com a formação da compreensão do fictício, com a função específica da fantasia infantil, com a credulidade na história e a aquisição de saber".
Observamos, assim, que as histórias, na literatura infantil, apresentam para as crianças as relações presentes na realidade, que ela não pode perceber por conta própria.
Desse modo, na apresentação inicial da estória, Rubem Alves faz uma advertência para os adultos:
"Para o adulto que for ler esta estória para uma criança
Esta é uma estória sobre a separação: quando duas pessoas que se amam têm de dizer adeus...
Depois do adeus fica aquele vazio imenso: saudade.
Tudo se enche com a presença de uma ausência.
Ah! Como seria bom se não houvesse despedidas...
Alguns chegam a pensar em trancar em gaiolas aquelas a quem amam.
Para que sejam deles, para sempre...
Para que não haja mais partidas...
Poucos sabem, entretanto, que é a saudade que torna encantadas as pessoas. A saudade faz crescer o desejo. E quando o desejo cresce, preparam-se os abraços."
Essa informação, induz os adultos a uma reflexão no sentido de que a personagem do livro de Rubem Alves, que se chama Menina, irá deparar se com situações que são vivenciadas por adultos e não por crianças.
ZILBERMAM (1987:14) afirma que há uma duplicidade congênita à natureza da literatura infantil, pois:
"de um lado, percebida sob a ótica do adulto, desvela-se sua participação no processo de dominação do jovem, assumindo um caráter pedagógico, por transmitir normas e envolver-se com sua formação moral. De outro, quando se compromete com o interesse da criança, transforma-se num meio de acesso ao real, na medida em que lhe facilita a ordenação de experiências existenciais, através do conhecimento de histórias, e a expansão de seu domínio lingüístico."
No início da narrativa, observa-se a imagem ou ilustração de uma Menina e um pássaro, com o seguinte texto:
"Era uma vez uma menina que tinha um pássaro como o seu melhor amigo.
Ele era uma pássaro diferente de todos os demais: era encantado."
A ilustração evidencia o diálogo com o texto, pois promove o encontro da criança (ouvinte) com o imaginário literário.
Esclarece ZILBERMAM (1987:16) que "...a fantasia é um componente indispensável do texto dirigido à infância...".
Assim, percebe-se que, em cada página do livro, a ilustração aparece em cores e com formas que facilitam a visualização pela criança da proposta do texto, conforme trecho abaixo:
"Suas penas também eram diferentes. Mudavam de cor. Eram sempre pintadas pelas cores dos lugares estranhos e longínquos por onde voava".
Em outro momento da narrativa, ocorre o relato por parte do pássaro do seu "habitat" natural, ou melhor, do lugar de onde ele vinha sempre quando ia embora. Tal relato é enriquecido com adjetivos, de modo a deixar as crianças (ouvintes) encantadas, principalmente ao verem a ilustração.
"— Menina, eu venho de montanhas frias e cobertas de neve, tudo maravilhosamente branco e puro, brilhando sob a luz da lua, nada se ouvindo a não ser o barulho do vento que faz estalar o gelo que cobre os galhos das árvores. Trouxe, nas minhas penas, uma pouco do encanto que eu vi, como presente para você..."
A narrativa prossegue, com o pássaro cantando as canções e contando as estórias, antes da menina dormir, de um mundo que ela nunca vira.
"E assim ele começava a cantar as canções e as estórias daquele mundo que a menina nunca vira. Até que ela adormecia, e sonhava que voava nas asas do pássaro."
Vê-se que o pássaro tem comportamento como pessoa humana, pois a maioria das crianças pedem aos adultos para contarem histórias antes delas adormecerem.
A seguir, consta na história que o pássaro retornou de seu "habitat": "Outra vez voltou vermelho como o fogo, penacho dourado na cabeça". Nesse trecho, o pássaro, ao dialogar com a menina, descreve um outro lugar, diferente do anterior, caracterizando-o como um ambiente mais sofrido e triste:
"— Venho de uma terra queimada pela seca, terra quente e sem água, onde os grandes, os pequenos e os bichos sofrem a tristeza do sol que não se apaga. Minhas penas ficaram como aquele sol e eu trago as canções tristes daqueles que gostariam de ouvir o barulho das cachoeiras e ver a beleza dos campos verdes."
Constata-se que, até o momento, o pássaro vai embora e retorna trazendo consigo informações dos lugares em que visitou e, ainda, a experiência vivida por ele. Todas as informações, observa-se, são ouvidas, atentamente, pela personagem.
A atitude do pássaro revela, conforme ZILBERMAM, um comprometimento com o interesse da criança que, no caso, irá ouvir a história, pois ele facilita a ordenação de experiências existenciais, através do conhecimento de histórias. Ocorre, ainda, a expansão do domínio lingüístico de quem está ouvindo a história. Desse modo, a leitura da narrativa de um adulto para uma criança, passo-a-passo, conforme escrito por Rubem Alves, permitirá que ela compreenda os dois sentimentos narrados: o primeiro, o encanto; o segundo, a tristeza.
Por um lado, tudo maravilhosamente branco e puro e, por outro, terra queimada pela seca. Nota-se na ilustração, claramente, a proposta do texto, elaborada por Rubem Alves, que será visualizada pela criança.
Em outro trecho da narrativa, aparece a explicação do autor, a respeito do sentimento da personagem menina pelo pássaro: "A menina amava aquele pássaro e podia ouvi-lo sem parar, dia após dia. E o pássaro amava a menina, e por isto voltava sempre". Embora ficasse claro o sentimento da menina, surge, novamente, a possibilidade de separação de ambos:
"— Tenho de ir", ele dizia.
"— Por favor, não vá. Fico tão triste. Terei saudades. E vou chorar..." E a menina fazia um beicinho..."
Observa-se que o pássaro, sensibilizado com a fala da menina, resolve explicá-la a situação, ou seja, o seu distanciamento e aproximação dela. A ilustração seguinte, demonstra que o diálogo se deu em um lugar aconchegante, próximo da natureza, em que a personagem menina estava sentada em uma rede ouvindo, atentamente, as explicações do pássaro.
Temos, nesse momento, o que se pode considerar o perfil psicológico da narrativa, pois a menina e o pássaro criaram para ambos o sentimento de amor. Percebe-se que esse amor, para a menina é o de sempre ter o pássaro junto de si e nunca longe. Por outro lado, a função e o desejo do pássaro, observa-se, é de estar livre para experimentar o que o mundo tem e, inclusive, transmitir à menina tais experiências.
Essa ruptura desencadeia, na menina, o desejo de solucionar o problema, que agora surgiu, isto é, o sentimento de saudade. A menina não admitiria ficar longe de seu pássaro amigo. Então, a atitude da menina, demonstrada na narrativa, veio em forma de idéia, narrada por ela através de sua fala:"—Se eu o prender numa gaiola, ele nunca mais partirá. Será meu para sempre. Não mais terei saudade. E ficarei feliz...".
Fruto da esperteza, a menina compra uma "linda gaiola" e se prepara para o retorno do pássaro, que havia ido embora, conforme trecho "... E ficou à espera. Finalmente ele chegou, maravilhoso em suas novas cores, com estórias diferentes para contar..."
Percebe-se que Rubem Alves demonstra, no trecho acima, para as crianças (ouvintes), o comportamento do ser humano, no sentido de controlar uma outra pessoa ou se apropriar de algum objeto. Outro entendimento a respeito, seria o de que, na sociedade em geral, ocorre o seguinte: o homem sai para trabalhar e a mulher fica em casa. Assim, na narrativa, substitui-se o homem pelo pássaro e a mulher pela criança e, desse modo, chagasse à conclusão de que há uma discussão ideológica na história, ou seja, a apresentação dos papeis sociais dos seres humanos.
Como bem afirma ZILBERMAM:
"... se a obra literária pode oferecer um horizonte de criatividade e fantasia enquanto ficção, solidarizando-se com o mundo infantil, embora reforce sua diferença, por outro lado, ela reproduz, por seu funcionamento, os confrontos entre a criança e a realidade adulta. E pode fazê-lo de maneira mais eficiente, porque atinge o âmago do universo infantil, alcançando uma intimidade nem sempre obtida pelos mais velhos; e vem a se converter num hábito, o de leitura, o que é uma das metas prioritárias do ensino e da arte literária, que precisa estimular intermitentemente seu próprio consumo." (1987:20)
Retomando a análise da história: a atitude da menina faz surgir um problema, pois o pássaro sempre vive voando de um lugar para o outro, isto é, livre para voar.
A partir daí, começa o sofrimento de ambos, uma vez que para se manter o encanto, necessariamente, teria que haver saudade, o que não fora interpretado pela menina.
Para ela, prendê-lo na gaiola, seria uma atitude boa para os dois.
Observa-se que sua idéia não foi boa, pois o pássaro foi se transformando. Para melhor visualizar a situação, a ilustração comprova muito bem as mudanças, seguido do texto:
"...O tempo ia passando, e o pássaro ia ficando diferente. Caíram as plumas e o penacho. Os vermelhos, os verdes e os azuis das penas transformaram-se num cinzento triste. Veio o silêncio: deixou de cantar".
Na mesma ilustração, o pássaro aparece diferente, de cabeça baixa e, simultaneamente, a menina chorava, lamentando o que havia feito ao seu melhor amigo.
Então, a menina, arrependida, não mais agüentou e "abriu a porta da gaiola..."
Com essa atitude, o pássaro teve oportunidade de expor à menina o que, realmente, é o sentido da vida, conforme trecho:
"— Obrigado, menina. É, eu tenho de partir. É preciso partir para que a saudade chegue e eu tenha vontade de voltar. Longe, na saudade, muitas coisas boas começam a crescer dentro da gente. Sempre que você ficar com saudade eu ficarei mais bonito. Sempre que eu ficar com saudade, você ficará mais bonita. E você se enfeitará, para me esperar..."
Assim, no trecho acima, percebe-se o tom moralista empregado por Rubem Alves na narrativa. Nota-se que a menina agiu muito bem, principalmente, ao entender que o amor é livre e tem que haver liberdade entre as pessoas.
A ilustração que se segue ao trecho, facilita a comunicação imediata entre a criança que irá ler a história e a situação narrada.
A partir daí, a menina vivia pensando no pássaro, conforme sugestão dele. Rubem Alves narra, inclusive, as coisas que a menina fazia para aguardar o pássaro: "E ela ia ao guarda-roupa, escolher os vestidos, e penteava os cabelos e colocava uma flor na jarra...".
Assim, os dias se passavam e as transformações na vida da menina iam acontecendo sem que ela percebesse. Tais transformações são frutos do momento de reflexão ocorrido quando o pássaro foi embora.
Nota-se que o pássaro havia afirmado, anteriormente, o segredo do encantamento, isto é, a saudade igual a amor, estava acontecendo, uma vez que "longe, na saudade, muitas coisas boas começam a crescer dentro da gente. Sempre que você ficar com saudade eu ficarei bonito".
Percebe-se que muitas coisas boas aconteceram, conforme se vê na ilustração, a menina aparece, sorridente e saltitante, no pomar de sua casa, vivendo o mundo que foi ficando encantado. Igual encantamento estaca acontecendo com o pássaro que estava em outro lugar.
Observa-se, ainda, que a menina, ou melhor, Rubem Alves narra que ela percebia o mundo encantado parecido com o pássaro encantado.
A própria imagem na folha seguinte demonstra referida situação. De um lado, a menina encantada e, do outro, o pássaro voando sobre castelos, batendo suas asas grandes e belas.
A menina, em outra ilustração, aparece crescida e pensativa naquele pássaro que é seu melhor amigo e a deixou encantada: "Mundo maravilhoso, que guarda em algum lugar secreto o pássaro encantado que se ama..."
No final da narrativa, Rubem Alves demonstra o sentimento vivido pela menina:
"E foi assim que ela, cada noite ia para a cama, triste de saudade, mas feliz com o pensamento:
"— Quem sabe ele voltará amanhã.
E assim dormia e sonhava com a alegria do reencontro..."
Extrai-se desse trecho, a seguinte passagem:"— Quem sabe ele voltará amanhã...". Sugere que a menina tem esperança de que um dia poderá reencontrar o encantado pássaro.
Ao final da leitura, observam-se outros detalhes, principalmente a partir das considerações de ROSEMBERG (1985:25), no sentido de que "o personagem infantil é integrado e identificado à natureza, que é também concebida como a via de escape à opressão do adulto e de sua sociedade".
Os esclarecimentos de Rubem Alves, no início do livro, a respeito do tema a ser narrado, é colocado em prática, através do emprego da simplicidade em sua linguagem.
REFERÊNCIAS
ALVES, Rubem. A menina e o pássaro encantado. Ilustração de Bianca. São Paulo: Edições Loyola, 1992.
CUNHA, Maria Antonieta A. Literatura infantil: teoria e prática. São Paulo: ÁTica, 1991.
ROSEMBER, Fúlvia.. Literatura infantil e ideologia. São Paulo: Global, 1985.
ZILBERMAM, Regina & MAGALHÃES, Ligia Cademartori. Literatura infantil: autoritarismo e emancipação. São Paulo: ÁTica, 1987.