DELÍRICO (Dailor Varela)

Curiosa essa vontade de resenhar esse "Delírico" de Dailor Varela, justamente agora que acabei de assistir “Não Estou Lá” (I´m Not There), sobre Bob Dylan. Pois se as canções de mr. Tambourine Man são assoviáveis ícones solares estadunidenses, ler Varela evoca o mesmo sentimento em relação ao homem e à terra brasileiros.

Não conhecem Dailor Varela? Vamos lá, então: nascido em Goiás, criou-se em Natal, no Rio Grande do Norte, onde ajudou a gestar o Poema-Processo em solo potiguar. Desenvolveu rica carreira jornalística e poética em Sampa, e agora colhe azuis do céu e amarelos do sol, toda manhã, na idílica Monteiro Lobato, cidade incrustada num vale aos pés de Campos do Jordão, entre São Paulo e Rio.

Dailor diz que sou o único que degusto rock´n´roll, sambas de enredo e jazz com igual apropriação e paixão. Mas foi ele quem primeiro me ensinou a amamentar-se de Dylan, Mallarmé, Caetano, Elis, Milton, Pound, Jagger, Belchior e tantos outros, com a mesma avidez e sem culpa. E foi ele quem me apresentou João Gualberto (poetaço norte-riograndense), Jomard Muniz de Brito ("antena da raça" em Recife), Rosa Kapila, Dyrce Araújo, José Nêumanne Pinto, Benê Viana, entre tantos outros que ele me presenteia assim, de bobeira. Encontrou num sebo ou livraria, botou no correio, chegou lá em casa. Simples assim.

Esse "Delírico" tem bem a cara dele. Mas por um bom tempo fiquei sofismando se estaria à altura de comentar esse livro maravilhoso de um poeta sintomático. Pois falar de amigo remete ao compadrio, à mera troca de figurinhas, às dificuldades inerentes de quem quer fazer um juízo crítico mas perde-se em meio ao turbilhão sentimental. Vou tentar, contudo, vencer essa barreira e falar de "Delírico" como eu acho que o li logo da primeira vez, e as impressões que me causaram. Depois disso, vieram outras leituras e interpretações, mas aí já éramos amigos, e eu só quero falar da primeira leitura, do primeiro amor. E foi assim que principiei:

“Cerca-me

O toque da palavra

Animal no cio

silêncio e verbo

que calo.”

(Toque, pg. 15)

O que é verdade no verso de Dailor, no entanto, mais que puro exercício metalingüístico, é sua corte e fidelidade ao instante:

"Outdoors

espelham em alumínio

silencioso

o barulho da cidade

Um carro explode iluminando

a noite"

(Urbano, pg. 79)

Regurgita em seu gesto o índex interior vibrante de poeta idílico, a vontade de ´expressar-se expressamente´, na motivação de chocar não estoicamente, mas buscando o que há de sagrado no simples, no profano, no cotidiano. Não há um gosto pelo simples retoricismo. Há um prazer, sim, carnal, ululante, de desejo, de cio, de fazer-se homem, homem-animal, inebriado de vontades acasteladas no mais primitivo dos gestos:

"A vida se tece

com a linha da morte

Costura que esconde

A Máquina do homem"

(Linha, dedicado a Gilberto Gil, pg. 46)

Uma dúvida pairou e exigiu dos olhos uma nova leitura à pg. 78:

"Hematoma

no rosto do desenho

que não cura

a não que o traçou"

(Para Francis Bacon)

Sou capaz de jurar que este segundo ´não´ seria ´mão´. Dúvida a ser questionada num próximo encontro ou carta. Mas nada que atrapalhe a leitura gostosa de seus versos sintéticos, curtos e certeiros.

O poeta, formatado a partir da busca do novo, que ajudou a forjar a contundência do Poema-Processo, que desde então sublinha uma página vigorosa na literatura brasileira da segunda metade do século passado, agora vai além, busca nas minúcias dos vãos, na pequenez das coisas, nos diâmetros apertados da experiência diária, um novo êxtase, uma catarse que instale e promova uma poesia dinâmica, rica, densa, compactada e indelevelmente inédita, na sua vida e na vida de seus leitores.

(Ed. Observação Jurídica e Literária, SP: São José dos Campos: 1991, 1ª ed.)