COISAS FRÁGEIS, de Neil Gaiman
Alguns escritores são bons em desafios. Neil Gaiman é um destes. Quando alguém o convida a escrever sobre determinado personagem ou história, mesmo que seja de outro escritor, ele não só o faz, mas o faz muito bem. No livro Coisas Frágeis (Conrad, 2008), Gaiman mostra toda a sua criatividade usada em nove contos baseados nos mais variados livros ou filmes de outros.
“Um Estudo em Esmeralda” mostra uma nova visão sobre o detetive Sherlock Holmes. Tão nova que o conto é o que mais surpreende, e tenha certeza, vai te enganar direitinho. Na Londres vitoriana, as piadas com propagandas envolvendo personagens de outras histórias de terror são uma diversão à parte da trama. Quem conhecer um pouco sobre Drácula, Frankenstein e doutor Jekyll poderá esbaldar-se no senso de humor de Gaiman. Este conto ganhou o Prêmio Hugo em 2004 como Melhor Conto. Pode-se afirmar que é o conto mais inteligente do livro, e o próprio autor admitiu que “os ingredientes da história que eu tinha imaginado se combinaram mais harmoniosamente do que eu esperava quando comecei. (Escrever é bem parecido com cozinhar. Algumas vezes o bolo não cresce, não importa o que você faça, e em outras fica mais gostoso do que você jamais poderia ter sonhado.)”.
Dedicada a Ray Bradbury (autor de Farhenheit 451), “A Vez de Outubro” ganhou o Prêmio Locus de Melhor Conto em 2003, e mostra como a tradição de se contar histórias de terror ao redor de uma fogueira à noite ainda pode ser bastante original e com um final pra lá de instigante. Gaiman demonstra todo o seu potencial narrativo, sintetizando muito em poucas palavras, como nesta frase: “Nascera com o nariz escorrendo e, uma década depois, continuava escorrendo.”
Já em “Lembranças e Tesouros”, apesar de mostrar um submundo onde o dinheiro de criminosos manda e desmanda, traz como um pederasta acaba vítima de sua própria obsessão. As origens do principal capacho do riquíssimo senhor Alice, o faz-tudo Smith, é contada tentando explicar o porquê de ele ser tão mau. Tanto o senhor Alice quanto Smith reaparecem no último conto do livro, mas num tom bem menos sexual. A impressão, para quem não leu mais nada de Gaiman, é que estes personagens ou já apareceram em outros livros ou ainda aparecerão, devido suas personalidades tão bem elaboradas.
“Os Fatos no Caso da Partida da Senhora Finch” é um conto elaborado a partir de um quadro de Frank Frazzetta que Gaiman viu, em que aparece uma mulher selvagem entre dois tigres. Apesar da criatividade e o tom de suspense do conto, pode-se dizer que é o mais fraco dos nove contos do livro.
Em “O Problema de Susan” é dada uma solução alternativa, adulta e repleta de erotismo para um dos principais mistérios das histórias infantis: O que realmente aconteceu com a Susan de As Crônicas de Nárnia? No último livro das Crônicas, A Última Batalha, ela é simplesmente descartada de entrar no Paraíso por gostar de “batons, collants e convites para festas”. Este conto de Gaiman não é para crianças, mas para os adultos que leram as Crônicas quando crianças e traz uma escritora idosa confessando a uma jovem repórter o que realmente aconteceu, sem pudores nem rancores.
“Golias” é um texto excelente complementando o universo Matrix. Originalmente escrito para o site The Matrix Comics, continua disponível para leitura (em inglês) até hoje. É interessante a abordagem de Gaiman sobre falhas na Matrix não exploradas nem nos filmes nem nos desenhos. A dissimulação também é um ponto forte deste conto.
“Como Conversar com Garotas em Festas” é uma excelente mistura de ficção científica, terror e conto juvenil. Afinal, quem já não passou pelo nervosismo de chegar em alguém em que está interessado numa festa? “São só garotas – disse Vic. – Não são seres de outro planeta.” Será? Este conto foi escrito em apenas uma tarde pelo autor.
“O Pássado-do-Sol” traz a mistura interessante de sociedades secretas, culinária e mitologia egípcia. O que aconteceria se alguém comesse uma fênix, a ave mitológica que renasce das cinzas? Gaiman pensou nisso e deu uma resposta à pergunta. Ele escreveu este conto para presentear a sua filha Holly em seu 18º aniversário. Nada mais justo para uma filha que pedir um conto ao paizão escritor. Ela inclusive aparece na história como uma personagem secundária.
Por fim, o maior dos nove contos, “O Monarca do Vale”, onde reaparecem as figuras do senhor Alice e seu capanga Smith. Na Escócia, eles contratam o turista Shadow para assumir o papel numa versão moderna da lenda de Beowulf. Só que nem tudo sai conforme o planejado, e a mudança no final da lenda acaba não agradando à todos.
Para quem ainda não leu nada de Neil Gaiman, o livro de contos é uma excelente porta de entrada na imaginação deste criativo escritor de ficção e fantasia contemporânea. E por que Coisas Frágeis? O escritor explica:
“A peculiaridade da maioria das coisas que consideramos frágeis é o modo como elas são, na verdade, fortes. Havia truques que fazíamos com ovos, quando crianças, para demonstrar que eles são, apesar de não nos darmos conta disso, pequenos salões de mármore capazes de suportar grandes pressões, e muitos dizem que o bater de asas de uma borboleta no lugar certo pode criar um furacão do outro lado de um oceano. Corações podem ser partidos, mas o coração é o mais forte dos músculos, capaz de pulsar durante toda a vida, setenta vezes por minuto, e não falhar quase nunca. Até os sonhos, que são as coisas mais intangíveis e delicadas, podem se mostrar incrivelmente difíceis de matar. Histórias, assim como pessoas, borboletas, ovos de aves canoras, corações humanos e sonhos, também são coisas frágeis...”