O BRASIL NO CONTINENTE E NO MUNDO: ATORES E IMAGENS NA POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA
A autora abre o artigo com a proposta de um balanço historiográfico dos estudos sobre política externa brasileira, por meio do qual seguramente se constatará que, quase sempre, houve uma concentração sobre os processos de implementação de nossa diplomacia, de forma a restringir os diversos fatores de natureza política, econômica e mesmo geopolítica que beneficiaram a adoção de distintas estratégias de atuação externa.
No que diz respeito ao estudo das variáveis subjetivas que incidem na formulação de políticas, todavia, há uma carência de atenção sob a forma das percepções dos policymakers antes que estes definam um determinado curso de ação. A autora salienta que o processo de tomada de decisões é antecedido pela percepção que, por sua vez, mantém ligação com um conjunto de crenças, valores e imagens que os atores carregam consigo e norteiam sua inserção no ambiente físico e social.
Não obstante a existência de vasta literatura concernente à aplicação da abordagem de sistemas de crenças (belief systems) aos estudos de relações internacionais e à análise de política externa, cuja abrangência inclui “imagens”, “códigos operacionais” e “mapas cognitivos”, entre outras abordagens, todas têm por base a noção de que o sistema de crenças atua como um “filtro” em relação à realidade.
Desta forma, as informações relevantes são selecionadas e ordenadas pelos atores, em meio à complexidade do mundo, consideradas as metas e preferências e, nesse aspecto, entende-se que toda percepção é necessariamente seletiva. Uma vez que não se trata apenas de uma reprodução “fiel” e passiva do mundo externo, a forma pela qual os indivíduos experimentam a realidade exterior, ou seja, a cognição agrega fatores de ordem subjetiva e envolve elementos ligados à cultura, atitudes, expectativas, necessidades e experiências dos atores. Portanto, implica uma triagem ininterrupta de estímulos, no “reconhecimento” de pessoas e fatos, na “interpretação” do comportamento de outros atores e na realização de previsões causais ou probabilísticas quanto a este comportamento, destaca Mello e Silva.
Para a autora, um ponto de inflexão na diplomacia brasileira, o que na verdade já se apregoava ao final do Segundo Reinado, ganhou ênfase com o advento da República e, embora o estreitamento de relações diplomáticas, comerciais e financeiras com os EUA tenha se iniciado ainda durante o Império, foi somente no decorrer dos dez primeiros anos da República que a estabilização políticoinstitucional e econômica interna se consolidaram.
Neste processo, Barão do Rio Branco e Joaquim Nabuco, os dois principais formuladores das inovações da política externa brasileira no alvorecer da nova República, monarquistas convictos, em tudo ligados por afinidades familiares, intelectuais e político-ideológicas ao regime recém-derrubado, tiveram importante atuação.
A explicação para este aparente paradoxo talvez se encontre no fato de que os objetivos da política externa da Primeira República, percebidos por ambos como expressão do “interesse nacional”, não implicassem uma ruptura radical em relação àqueles formulados pelo Império, variando, entretanto, as estratégias concebidas para implementá-los. De resto, esta mudança de estratégia, pelo menos durante os primeiros anos da República, não se apresentou de forma alguma como consensual, sendo objeto de críticas e controvérsias políticas domésticas (MELLO E SILVA, 1995, p. 97).
A autora destaca que caberá a estes dois atores, responsáveis pela formulação de um paradigma de política externa que só viria a ser reestruturado na década de 60, a construção histórica e imaginária da versão “vitoriosa” desta controvérsia. Considera-se vitoriosa porque, não obstante as críticas parece ter conseguido encontrar ressonância suficiente entre as elites dominantes para forjar o seu próprio consenso.
O fim da Primeira República brasileira foi marcado pela Revolução de 1930 que, além de simbolizar cronologicamente uma nova etapa da história política e econômica do país, promoveu uma ruptura político-institucional e trouxe consigo a ascensão de novas elites políticas, tendo como pano de fundo as conseqüências da débâcle de 1929 e suas profundas repercussões para uma economia ainda totalmente calcada sobre a agroexportação.
Neste cenário, Osvaldo Aranha e João Neves da Fontoura, oriundos das hostes revolucionárias, surgiram como dois atores fundamentais para a formulação e implementação da política externa brasileira nas décadas seguintes. Gaúchos, formados nas disputas políticas rio-grandenses, articuladores do movimento de 30 e com profundas ligações pessoais e políticas com Vargas, a trajetória desses atores descreve uma proposta de novos tempos. Ambos se destacaram por sua militância política interna, da qual jamais se dissociaram e que, inclusive, os levou ao afastamento do Itamaraty – salienta Mello e Silva.
Esclarece ainda que a formulação de um novo paradigma de política externa, o primeiro a se impor, de fato, como alternativa ao americanismo vigente desde Rio Branco, surgiu no início dos anos 60 e sua principal característica era justamente o fato de que o eixo da política externa se desloca da “aliança especial” com os EUA para uma concepção globalizante da inserção internacional do país.
San Thiago Dantas e Araújo Castro foram dois protagonistas fundamentais na formulação deste novo paradigma de política externa. Embora os dois apresentassem uma trajetória pessoal muito diferenciada, também revelavam a emergência de forças inovadoras na composição política e social das elites dirigentes nacionais.
Dantas via a política externa não como uma simples “decisão de governo”, mas sim como o resultado de um processo de amadurecimento político e cultural interno. A “dependência” de uma política externa não deveria ser julgada à luz de critérios morais, vista como mero servilismo ao exterior, mas a partir de conceitos sociológicos que permitiriam identificar a intrínseca associação entre a evolução da cultura política nacional e seus reflexos sobre a atuação diplomática.
Para ele, o determinante fundamental da PEI era uma nova consciência quanto ao grau de inferioridade e dominação a que o país estava condenado em virtude de seu subdesenvolvimento, que só poderia ser rompido por uma política “emancipatória e revolucionária”, que apontasse para a reforma das estruturas sociais vigentes. O despertar desta nova consciência entre os povos subdesenvolvidos permitia a identificação de interesses comuns e a progressiva unificação de sua conduta internacional, evidenciando a emergência de uma “força histórica nova” – destaca a autora.
No campo da visão de mundo, a identidade do Brasil em sua atuação internacional tem sido principalmente desde os anos 30, marcada pela busca de insumos ao desenvolvimento nacional, como no caso da barganha quando do alinhamento junto aos Aliados na Segunda Guerra Mundial. Na OPA, o Brasil não questionava seu pertencimento ao bloco ocidental, via a democracia e a livre iniciativa como imprescindíveis, mas também apresentava uma noção de certa responsabilidade dos países desenvolvidos para manutenção da estabilidade sistêmica. Mas a Operação não trouxe modificações à visão de mundo implícita na política exterior brasileira; pelo contrário, está inserida nela.
No que diz respeito às crenças normativas, a Operação Pan-Americana tinha como idéia principal a noção de que o subdesenvolvimento é extremamente danoso, por não permitir a certos países acesso a condições materiais importantes. Também via a cooperação dos países desenvolvidos em relação aos subdesenvolvidos como um imperativo moral, vinculado à solidariedade entre “as nações livres”.
Com a finalidade de recompor as percepções de alguns dos principais formuladores da política externa brasileira contemporânea, com destaque em suas visões sobre a inserção continental e internacional do Brasil, Mello e Silva busca resgatar os fatores de ordem subjetiva que incidem sobre a formulação e implementação de políticas. Inseridos nesse contexto, os atores são escolhidos por seu papel paradigmático, supondo-se que suas percepções são, de fato, representativas de imagens mais genéricas das elites políticas nacionais. Pretende-se, por outro lado, enfatizar a importância da adoção de uma perspectiva histórica que nos permita estabelecer algum tipo de correlação entre as imagens e crenças que alimentam as percepções e os processos históricos em que têm origem.
Bibliografia
Alexandra de Mello e Silva
Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 8, n. 15, 1995, p. 59-118