MACUNAÍMA
Cinthia de Oliveira Andrade
Macunaíma, “herói de nossa gente”, personagem do livro de Mário de Andrade, nasce no Mato-Virgem, ou seja, ligado a uma paisagem. Não tem pai, a não ser que consideremos como pai elementos do próprio ambiente geográfico. Nesse livro, podemos perceber o nascimento de um mito, que tem em si características próprias de um ambiente: ser sapeca e a preguiça.
Após o nascimento de Macunaíma, o autor narra episódios, nos quais o herói está numa relação direta com a natureza, ou seja, com a cultura brasileira. Mário faz uma fusão de diversas lendas de várias regiões brasileiras, mostrando que o Brasil pode ser considerado uma nação.
É introduzida no livro uma personagem de importância vital. Trata-se de Vei, a Sol, a qual é um elemento determinante nas culturas tropicais. A partir daí, sempre quando é mencionada, introduzirá uma mudança de rumo no romance. Percebemos, então, que Mário de Andrade, busca mostrar seu herói como alguém ligado à cultura brasileira.
A relação entre o herói e o meio, afirma-se no episódio em que Macunaíma conhece Ci, mãe do mato. O herói torna-se imperador do Mato-Virgem. Apodera-se totalmente da cultura e tradição, já que domina a própria mãe do mato. O séquito de pássaros que surge para saudar o herói é uma manifestação da própria natureza, que agora está a favor de seu mais novo imperador.
“Nem bem seis meses passaram e a Mãe do Mato pariu um filho encarnado. (...) O pecurrucho tinha cabeça chata e Macunaíma inda a achatava mais batendo nela todos os dias e falando pro guri:
- Meu filho, cresce depressa pra você ir pra São Paulo ganhar muito dinheiro.”
“... Mas uma feita jacurutu pousou na maloca do Imperador e soltou o regougo agourento. Macunaíma tremeu assustado espantou os mosquitos e caiu no pajuari por demais pra ver si espantava o medo também. Bebeu e dormiu noite inteira. Então chegou a Cobra Preta e tanto que chupou o único peito vivo de Ci que não deixou nem o apojo. E como Jiguê não conseguira moçar nenhuma das icamiabas o curumim sem ama chupou o peito da mãe no outro dia, chupou mais, deu um suspiro envenenado e morreu.
Botaram o anjinho numa igaçaba esculpida com forma de jaboti e pros boitatás não comerem os olhos do morto o enterraram mesmo no centro da taba com muitos cantos muita dança e muito pajuari.
Terminada a função a companheira de Macunaíma toda enfeitada ainda, tirou do colar uma muiraquitã famosa, deu-a pro companheiro e subiu pro céu por um cipó. É lá que Ci vive agora nos trinques passeando, liberta das formigas, toda enfeitada ainda, toda enfeitada de luz, virada numa estrela. É a Beta do Centauro.
No outro dia quando Macunaíma foi visitar o túmulo do filho viu que nascera do corpo uma plantinha. Trataram dela com muito cuidado e foi o guaraná. Com as frutinhas piladas dessa planta é que a gente cura muita doença e se refresca durante os calorões de Vei, a Sol.”
Esta passagem é uma das principais, já que nos revela vários elementos do livro:
1) Pode revelar-nos uma filiação de Macunaíma à obra Iracema, de José de Alencar, autor romântico, que buscou em suas obras, mesmo que de forma artificial, resgatar o passado indígena brasileiro.
A obra Iracema fala da lenda da formação do povo cearense. Assim, quando identificamos o filho de Macunaíma e Ci, que “tinha cabeça chata”, como um cearense, de acordo com ditos populares, parece-nos que este filho é a esperança de um povo brasileiro possuidor de sua própria cultura. O filho de Macunaíma, que nesta visão, já foi o filho de Iracema, morre, mas deixa em seu lugar a Muiraquitã – um presente de Ci, ou seja da própria natureza (tradição), a esperança de um Brasil com uma tradição e cultura próprias.
Após a morte, o filho de Macunaíma e Ci transforma-se em uma plantinha, o guaraná. É como se o filho, já presente em Iracema, fosse uma esperança que não possibilitou a formação de uma cultura brasileira, mas que abriu caminho e ajudou, como o guaraná, a refrescar o projeto de Mário de Andrade em consolidar a idéia de uma cultura verdadeiramente brasileira.
2) Na passagem mencionada do livro, aparece pela primeira vez a Muiraquitã. É o presente que Ci dá a Macunaíma antes de ir para o céu, onde vira uma estrela, a Beta de Centauro. A Muiraquitã representa a esperança do povo brasileiro, como já foi dito acima. É a detentora do projeto de independência brasileiro, pois é o símbolo do enraizamento de uma raça no meio geográfico, o que dá início a uma cultura singular.
Mário de Andrade conseguiu montar uma obra com elementos da cultura brasileira. Esta é uma confirmação de que o Brasil possui realmente uma tradição própria, é portanto uma Nação, ou seja possui uma raça que mantém laços comuns, como o folclore (tradição) e o idioma. É importante notar que a muiraquitã - o amuleto, o qual representa para Macunaíma a lembrança de Ci, ou seja, do seu Império, a floresta, ou em outras palavras a tradição – foi roubada por um estrangeiro.
“No outro dia Macunaíma pulou cedo na ubá e deu uma chegada até a foz do rio Negro pra deixar a consciência na ilha de Marapatá. Deixou-a bem na ponta dum mandacaru de dez metros, pra não ser comida pelas saúvas. Voltou pro lugar onde os manos esperavam e no pino do dia os três rumaram pra margem esquerda da Sol.
(...) E (Macunaíma) ficou lindo trepando pelo Araguaia aquele poder de igaras, duma em uma duzentas em ajojo que nem flecha na pele do rio. Na frente Macunaíma vinha de pé, carrancudo, procurando no longe a cidade. Matutava, matutava roendo os dedos agora cobertos de berrugas de tanto apontarem Ci estrela.”
Macunaíma, a caminho para a cidade, deixa sua consciência na ilha de Marapatá, podemos inferir, daí que o herói dirige-se a um lugar onde sua consciência ligada à cultura indígena – rural – de nada lhe servirá na cidade – civilização.
“(...) Então Macunaíma enxergou numa lapa bem no meio do rio uma cova cheia d’água. E a cova era que nem a marca dum pé gigante. O herói depois de muitos gritos por causa do frio da água entrou na cova e se lavou inteirinho.
(...) Quando o herói saiu do banho estava branco louro e de olhos azuizinhos, água lavara o pretume dele. E ninguém não seria capaz mais de indicar nele um filho da tribo retinta dos Tapanhumas.
Nem bem Jiguê percebeu o milagre, se atirou na marca do pezão do Sumé. Porém a água já estava muito suja de negrura do herói e por mais que Jiguê esfregasse feito maluco atirando água pra todos os lados só conseguiu ficar da cor do bronze novo. (...)
Maanape então é que foi se lavar, mas Jiguê esborrifara toda a água encantada pra fora da cova. Tinha só um bocado lá no fundo e Maanape conseguiu molhar só a palma dos pés e das mãos. Por isso ficou negro bem filho da tribo Tapanhumas. Só que as palmas das mãos e dos pés dele são vermelhas por terem se limpado na água santa”.Estão presentes neste trecho, as três raças formadoras do povo brasileiro, ou seja, o português, o índio e o negro. Estas três raças juntas é que formaram a cultura brasileira, na visão de Mário de Andrade.
Macunaíma recém chegado à cidade, encara com estranheza todas as inovações tecnológicas presentes. O herói põe nomes de animais nas “máquinas”, já que seu conhecimento de mundo rural não engloba tantas inovações tecnológicas. A vida na cidade, cercada de máquinas, é algo muito diferente da vida no campo, ou seja, na cultura.
Macunaíma, exposto ao cenário civilizado, vai aos poucos sofrendo uma descaracterização de sua cultura rural. A vida na metrópole vai, aos poucos, denegrindo as raízes da personagem. Ao continuarmos a leitura do texto, poderemos perceber elementos que denunciam essa perda de identidade.
Não podemos nos esquecer da falta de caráter de Macunaíma, a qual pode ser percebida quando analisamos a frase: “POUCA SAÚDE E MUITA SAÚVA, OS MALES DO BRASIL SÃO!”. Macunaíma assume que os males do Brasil são causados por fatores externos e esquece-se que ele próprio está, ao não preservar sua cultura, sendo causa da decadência do Brasil.
Macunaíma, ou seja, o Brasil, prefere se unir as culturas européias, as quais já estão em decadência. A personagem brinca com uma portuguesa, porque, de tão descaracterizado só se sente interessado pelas filhinhas da mandioca, desprezando a aliança com as culturas tropicais.
No decorrer da narrativa,o herói retoma a muiraquitã, a esperança de um Brasil com um desenvolvimento próprio, porém a cidade tanto o descaracterizou, que agora ele não conta mais nem com a ajuda de Vei, a Sol, ou seja, não é mais “Imperador do Mato Virgem”.
Macunaíma volta a sua terra, leva como lembrança da cidade o revólver, o relógio e o casal de galinhas , todas essas coisas tem origem estrangeira. Além disso, o revólver e o relógio são produtos da civilização, das máquinas. O herói perdeu sua íntima relação com a floresta. Tanto é verdade que “(Macunaíma) Estava muito contrariado porque não compreendia o silêncio. Logo o silêncio do Uraricoera, que fora um dos fatores responsáveis pelo nascimento dele”.
Macunaíma após perder seus irmãos, terminou seus dias deitado numa rede e contando seus “causos” a um papagaio. Até que um dia, Macunaíma enfeitiçado pela Uiara é devorado e perde a muiraquitã. Segundo Mário de Andrade,Macunaíma foi destroçado pela Uiara, perdeu toda sua dignidade. A muiraquitã foi tomada pela Natureza, ou seja, a esperança de um desenvolvimento próprio para o Brasil continua com a Natureza tropical, porém não foi realizado por Macunaíma, herói de nossa gente.
Mário de Andrade, em Macunaíma, colocou-se como um contador de lendas. Utilizou-se para isso de uma linguagem simples. Tentou aproximar-se ao máximo da oralidade popular. Além disso, misturou a linguagem característica de várias regiões do país. Tudo isso fez para afirmar a idéia de que o Brasil possui um idioma próprio. Desta forma, Mário de Andrade utilizando-se de um idioma popular tenta fundar a identidade do Brasil, enquanto Nação, pelo idioma.
ANDRADE, Mario de. Macunaíma – o herói sem nenhum caráter. Belo Horizonte –MG: Villa Rica Editora. 2000.