Capitães da Areia - Um Olhar Humanizado sobre a Obra
Talvez o que relato agora, seja algo um pouco incomum para uma resenha. Comecemos pela escolha da obra. Nunca me afeiçoei por literatura regionalista. As descrições dos sertões, dos rios e de aspectos do povo brasileiro sempre me foram enfadonhas. Quando me foi proposta a leitura de um livro do período modernista não sabia realmente quais eram as principais características do modernismo, nem mesmo os principais autores. Desta forma fiz uma breve pesquisa sobre os autores citados em aula e li alguns resumos de livros. Os resumos não substituem a leitura de uma obra, mas nos ajudam a ter uma visão geral do que será visto e nos proporcionam uma leitura mais objetiva. Concordo que a leitura prévia de resumos nos tira um pouco a expectativa do final, mas em termos de estudo ajuda bastante a abstrairmos certos pontos da narrativa. Recentemente li Vidas Secas, de Graciliano Ramos; e O Quinze de Rachel de Queiróz e encontrei exatamente o que me afasta de um livro: descrições de paisagens e retratos do povo brasileiro. E tanto fucei na internet que acabei por me deparar com um site que trazia biografias de vários autores, dente eles Jorge Amado. Sempre ouvi falar do teor erótico das obras deste autor, vi algumas adaptações de obras suas para a televisão e nem sei por que fui ler um resumo de Capitães de Areia. Achei a história interessante e resolvi arriscar. Tenho um método desde adolescente de ler pelo menos 50 páginas de um livro. Se até este ponto eu não me interessar pela leitura, me dou o direito de abandoná-la, mas nunca me privo de ao menos conhecê-la. E assim acabei por me interessar pelo enredo de Capitães da Areia.
Nenhum ser humano é livre de preconceitos, e eu claro tenho os meus. Quando vejo crianças abandonadas na rua a pedir, roubar e abordar os cidadãos de “bem” nunca olho o outro lado, sempre penso que estão ali para assustar, agredir e ferir as outras pessoas. Recentemente minha mãe, de 48 anos, após anos fora do mercado de trabalho, recebeu uma proposta para trabalhar na Fundação Casa, antiga FEBEM. A idéia me assustou, achei-a ridícula até, mas minha mãe empolgada com a chance de um novo trabalho aceitou e passou a fazer parte da equipe desta nova unidade. Dentre outras promessas, a principal era de que a Fundação Casa era diferente da FEBEM. Mas enfim, tive relutância em aceitar dentro de mim a nova atividade de minha mãe.
Sempre achei que a literatura tivesse seu papel social, que as narrativas não tivessem mero papel de entretenimento, mas desta vez me descobri, lendo Capitães da Areia. A história conta a vida de crianças que moram na rua, ou por que foram abandonadas pelos pais, ou porque perderam estes. O fato é que vivem de furtos e assaltos realizados na capital da Bahia, Salvador. O texto de Jorge Amado é bastante envolvente e visual, através dele conseguimos visualizar os personagens e suas realidades, de forma que criamos imagens de negros e brancos, crianças e adultos dentro de nossas cabeça. Os Capitães da Areia vivem em um galpão abandonado, o qual chamam de trapiche. Lá se escondem da polícia, dividem as coisas conseguidas através de furtos e se amam. A sexualidade é muito presente nesta obra. Jorge Amado fala do homossexualismo existente no grupo, usa expressões do tipo “derrubar negrinhas na areia”; “peitos bons”; “coxas roliças”; “fazer o amor”, palavras um tanto quanto inadequadas quando falamos de crianças por volta dos seus 13 ou 14 anos de idade, mas não para os Capitães da Areia que já conhecem o amor e as coisas da vida bem antes da idade adulta. Uma cena que me chamou a atenção, mas que possui linguagem tão sutil que não chega a provocar repulsa, é quando Pedro Bala o líder dos Capitães da Areia, violenta uma negrinha no areial, “deflorando-a por trás”. Jorge Amado não explicita as cenas de sexo, mas as intenções são claras, e para “bom entendedor meia palavra basta”. O livro faz um apanhado de situações cotidianas dos Capitães da Areia, cita greves, epidemias de varíola (que eles chamam de bexiga negra, por causar bolhas de sangue escuras pelo corpo), golpes aplicados em senhoras respeitáveis da sociedade etc. Mas com certeza o ponto máximo da narração é quando Dora surge no trapiche após perder pai e mãe de varíola. Ela é a primeira menina a ingressar no grupo, mas antes de conquistar a confiança e o respeito dos garotos quase é violentada por todos. Dora se torna namorada de Pedro Bala, porém a relação entre eles é tão respeitosa que Dora e Pedro se contentam em deitar no areial e se darem as mãos. Dora passa poucos meses no grupo antes de morrer com uma forte febre que sem explicação acometeu-a dentro do orfanato, local o qual foi levada quando foi pega durante uma “atividade do grupo”, nesta ocasião Pedro Bala foi para um reformatório, onde foi agredido e passou até fome. O livro se desenvolve com diversas histórias paralelas, todas com finais diversos e a meu ver infelizes.
A leitura de Capitães da Areia nos proporciona uma visão mais humanizada diante da pobreza e da miséria de crianças abandonadas. Quando na rua nos deparamos com menores “bandidos” não temos muita noção do que pode ter levado àquela criança às ruas, e sinceramente em certas ocasiões nem quero saber, a necessidade de sobrevivência faz com que eles queiram nos roubar e faz com que nós queiramos nos proteger. Este é um assunto muito complexo com várias linhas de discussão. Como explicar para uma mãe que teve seu filho morto em um assalto que é necessário humanizar as instituições de atendimento socioeducativo? E como explicar a uma criança faminta que não se pode roubar e matar para sobreviver? São várias as vertentes possíveis em Capitães de Areia. Me atenho neste ponto.