Ensaio sobre a Cegueira - José Saramago - 1995
Ensaio sobre a cegueira
1ª Parte
É muito complexo analisar uma obra de um autor tão forte como Saramago, sua narrativa, seu jeito de narrar as coisas, apesar de ser simples, esconde as mais profundas sínteses do seu ponto vista sobre tudo o que concerne à narrativa. Sem dúvida alguma um grande livro é esse ESaC (Ensaio sobre a cegueira).
Começamos com uma artimanha do narrador muito sutil, mas que produz benefícios enormes para a qualidade da história. Ele se põe como narrador semi-onisciente, hora narrando os acontecimentos de longe, hora condicionado ao que experimentam os personagens principais, esses escolhidos como acaso, mas que ao longo do desenvolvimento do texto vão deixando pedaços importantes das analogias que quer apresentar. Brincando muitas vezes narrando o que “não se sabe” coloca de maneira sub-reptícia informações do quadro global do acontecimento ao mesmo tempo que diz ser aquilo o provável que acontece e não sua certeza, deixando o caminho aberto para do maior para o menor ponto justificar a relatividade da condição humana.
Aproximando a narrativa do leitor ele usa de artifícios bem encadeados dando oportunidade a volta e meia colocar ditos populares. Os quais recheiam a obra de cabo a rabo. Essa ferramenta que encontra para explicitar as mais diferentes opiniões dos personagens deixa a leitura mais fluída, já que pela própria maneira que escreve, é um pouco mais complicado de ler. Precisa-se entrar no ritmo da narrativa para conseguir acompanhar os diálogos, que são postos ao longo dos parágrafos sem muitas pontuações e diferenças visuais, já que um parágrafo e o pulo de uma linha visualmente indicam tal coisa, deixando ainda mais o leitor preso a sua percepção interna, o que não deixa de ser irônico contando que os personagens não possuem, ou vão perdendo, a visão. Então o foco está no entendimento do texto pela sua leitura e compreensão extensa e não visual.
Outra marca registrada é a crueza da narração. Ela é simples e direta, com muitas escusas do narrador. Ele se justifica dizendo que se assim se passou é assim que deve ser descrito. Essa crueza da narrativa cai muito bem com a realidade vivida pelas pessoas que ali estão, já que o ambiente sempre é destituído de facilidades, e muito cruel na maioria das vezes. Se um morto morre é enterrá-lo e nada mais. Se alguém passa fome é agüentar. E assim vai construindo o ambiente em que o leitor se sente tão angustiado, por muitas vezes, pelo simples motivo da incapacidade dos personagens os deixarem em situações tão parcas que angustiamos com o fato deles não enxergarem. O que está por vir, sempre, é tratado com máxima adequação a uma situação parecida se acontecesse na realidade.
Esse mérito da narrativa crua traz uma interessante característica ao leitor. Enquanto nós visualizamos aquelas cenas da maneira mais crua possível, deixamo-nos entrar pelas opiniões do escritor. Como a única pessoa que vê ele narra e nós imaginamos, de mesmo modo que acontece várias vezes ao longo da história com uma personagem, a única que vê. Essas imagens fortes só afetam em grande parte essa mulher, a mulher do médico. E por isso simpatizamos com ela, já que igual a nós é a única que pode ver e por isso sentir aquilo, dando espaço para que sintamos também. Mas ele, geralmente, se detém a narrar com clareza os fatos que acontecem com o grupo principal, como se sua visão onisciente estivesse presa apenas àquele grupo.
Isso nos serve bem para contrapor, assim como é desejo do narrador, as situações gerais e particulares. O grupo é a tábua de salvação da humanidade, em princípio, e o resto é a desordem e a barbárie. Assim como o leitor pode encontrar todas as manhas de escrita por si só eu deixo somente essas impressões nessa primeira parte, partindo assim para a segunda que é a principal, no qual o foco é a análise das analogias feitas pela história, o que considero mais importante que a dissecação literária propriamente dita. Assim passo eu para a parte seguinte.
2ª Parte
Se prestarmos atenção minimamente ao início da história, tudo vai bem, é a vida normal que as pessoas levam, com toda a tranqüilidade possível que possa existir. Os sistemas estão funcionando bem, telefone, sinais de trânsito, a polícia está em sua função de maneira adequada, os médicos estão atendendo e até as putas distribuindo o prazer. Nesse estado de coisas que o primeiro ser humano daquela região cega. Olhando para um farol. Aqui deixamos claro que a cor que o primeiro cego viu por último é o vermelho. Pode ser coincidência, mas o vermelho tem fortes significados políticos em nossa história recente.
Assim que o primeiro cego cega logo nos vemos defrontados com todas as instâncias de autoridade que temos. Primeiro, por se tratar de um caso de cegueira, temos o médico. Representando a medicina e por fim a ciência. Nesse caso nada pode ser feito. Logo depois, quando constata-se que a medicina é inócua na situação, logo recorre-se ao Estado. Que prontamente se mobiliza para tentar conter a crise. Mas como vemos, ao longo da narrativa o Estado se vê inoperante com a duração desta. E finalmente temos o estado de caos generalizado. Nesse ponto o autor nos diz o seguinte: a natureza é mais forte que a ciência e o Estado. Se os indivíduos que o integram perdem suas capacidades tudo rui. Enfim a natureza é mais forte que os construtos do homem, sejam eles científicos ou políticos.
A disseminação da incapacidade individual torna toda a organização que nos baseamos para viver inoperante e por isso mesmo algo de “a natureza é maior” pode ser depreendida do intuito narrativo. Ao caírem todas as formas de organização o ser humano primeiramente é reduzido ao estado natural. E um entendimento pode ser arranjado, como vemos nos primeiros capítulos quando o grupo é progressivamente colocado dentro do manicômio. Certas regras básicas são criadas pelo Estado enquanto ele ainda pode operar, mas assim que essas regras não são cumpridas o ser humano fica à mercê de si mesmo. E enquanto as coisas estão sobre controle é quando temos poucos indivíduos que se conhecem. O fato de as pessoas se conhecerem a si mesmas torna o ato dito imoral mais difícil de ser praticado. Mas assim que o número de pessoas cresce e as elas se tornam estranhas o instinto primitivo vai dando sinais de prevalência. É quando afinal temos uma das reviravoltas da trama.
Chegando ao manicômio um grupo de cegos mais fortes, munidos de armas e minimamente organizados tomam o controle da comida. E nesse ponto pensamos que é o cume da degradação humana, chegada a verdadeira barbárie. Enquanto uns comem a vontade outros são privados do simples ato de se alimentar pela imposição egoísta de outros. Que exigem pagamentos pela comida, e futuramente finda toda a sorte de objetos de valor eles passam a exigir mulheres como pagamento. Assim se torna completa todo o arco da degradação. A cegueira enfim encontra a morte, quando a única saída possível dessa dominação é matar ou morrer (de fome). Coisa muito bem ilustrada pela parte em que na narrativa um leite derramado encontra uma mancha de sangue. O vermelho (a morte aqui) encontra o branco (a cegueira leitosa).
Em contraponto ao grupo de fanfarrões armados temos o grupo primeiro, que lá chegou antes. Esse grupo é movido pela razão, aqui simbolizada pelo médio e sua mulher e o outro grupo movido pelos instintos. Nesse ponto é apresentado o primeiro confronto razão x instinto em forma de grupos. O que simboliza que só um grupo arrazoado pode sobrepor a barbárie injusta. Mesmo que seja para ver depois que há injustiça mesmo assim. Então a mulher do médico, a única que vê, se vinga dos bandidos matando seu líder. Que é quando há a união efetiva do branco e do vermelho, no esporro na boca de uma mulher que servia aos caprichos do líder com o jorro de sangue que espirra de seu pescoço. Esse é o mais baixo nível em que a organização pode chegar e o ato de vingança a sangue frio é o marcador de uma nova era.
Cabe ressaltar que mesmo não justificando o ato da mulher o narrador mostra que aquela era a única alternativa para o estabelecimento da razão sobre o instinto, matar ou morrer. Assim a saga humana é recontada dando vieses de que não poderia ser de outro jeito. E o desdobramento dessa barbárie é o fogo que consome todo aquele universo particular em que viviam os personagens. Terminada a fase de barbárie total daquela situação, os cegos se vêem livres no mundo. Mas se antes era desconfortável, mas viável, viver cego, já que toda a organização do mundo era conhecida, corredores, latrinas, quintal etc., agora seria praticamente impossível. O grupo se encontra fora do manicômio e se não fosse pela vista da mulher estariam perdidos.
A analogia aqui é clara e óbvia. Um grupo, uma comunidade, sobrevive melhor junta, regida pela razão, com a ajuda de uma pessoa, a única, que consegue ver o mundo melhor. Proximidade com a república de Platão pode ser feita, mesmo que de longe. Não sendo a mulher sábia, ela vê. E por isso é a única a vislumbrar a realidade como é. Mesmo assim não se fazendo de mais forte, mas de guia. Guiar aquele grupo é a função da esclarecida pela visão. E se ela pode se virar muito melhor do que os integrantes do seu grupo, não tem motivos para isso se não o próprio grupo. Sua função de vida agora é permitir a melhor vida para a comunidade, mesmo sendo reduzida.
Temos aqui o seguinte então. Há um grupo de cegos, que pela natureza (isso é importante) são menos capazes que sua líder. Essa líder por uma dádiva consegue se sobressair sobre seus comandados e por isso é a que deve comandar, por imposição natural, os outros. Esses sem ela estariam a vagar pelo mundo sem sentido. Podemos concluir que o narrador tem para consigo que um ser humano que seja embutido de um benefício natural (cegueira aqui é visão, esclarecimento, conhecimento) seja aquele que passa a conduzir a comunidade, menos dotada. Mas que não pode usar seu benefício em prol de si mesma, já que o sentido de sua existência é o grupo. Algo de muito perto da ideologia socialista temos por aqui. O que se pretendia a revolução comunista era muito perto disso.
E quando finalmente finda a narrativa as pessoas voltam a enxergar, mas a mensagem é clara, dada, justamente, pela mulher do médico, algo como: enxergamos, mas não conseguimos ver. Assim toda a história é a odisséia de um grupo que passa pelas fases mais insólitas do crescimento da humanidade para no fim dispor de uma simples conclusão, distanciamo-nos dos outros, mesmo vendo, não conseguimos ver o próximo, e isso é nossa ruína. A solução? A razão, o esclarecimento e o conhecimento, dado por quem? Por pessoas que são dotadas de uma diferenciação natural, mas que não usam isso para o seu próprio egoísmo.
Deixando esse ar melancólico no ar a narração termina como começou, simples, uma mulher em casa, olhando para o céu (seria a religião aqui?) achando que estava cega, mas ao olhar para a cidade (construto humano) a percebe como estava, mais cru impossível, mais real está para existir, mas mesmo assim ainda enxergamos nossas vidas através do véu, do instinto mais bárbaro que existe, e não conseguimos ver realmente os outros como seres humanos, nada mais perto da verdade, em temos de sociedade da imagem, creio que precisamos mesmo é rever o que vemos, com olhos nus.