CONTOS DA ERA DO FAX - Mathilda Kovak
“Não se conhece ao certo a trajetória do que é constante na incerteza”
Mathilda Kovak
Inicio a leitura do livro de Mathilda Kovak, ao anoitecer, intrigada com o título Contos da Era do Fax (Ed. Mondrian). Um leve folhear e as páginas me aprisionam no fascínio de suas palavras e na narrativa concisa e surpreendente dos contos.
Em Gentle Giant, sinto vertigem nas dimensões impossíveis, incorporo a personagem em sua relação com o gigante – outro/mundo – e encerro com a certeza do crescimento quando temos a percepção real das dimensões de nossa vida e da possibilidade de convergência com os horizontes de sonhos. Algumas vezes não podemos mais ocupar os mesmos espaços, somos outros ou eus renovados. Mathilda Kovak abre uma janela: “Porém, ao chegar à minha casa, não consegui entrar. Eu era muito maior do que a porta.”
Abandono o sono. Lendas de Hollywood são releituras de imagens gravadas no inconsciente. “Corta!” O corpo exposto na geografia do centro do Rio de Janeiro se confunde com imagens absurdas e tão cotidianas – um engolidor de vidros passa o chapéu em frente à barraca do Partido Comunista na Cinelândia. Com o corpo mutilado, entre vampiros, a autora sangra a mulher na perspectiva de uma nova concepção.
“Meus fragmentos estão espalhados por todas as mulheres do mundo, e elas, sem se dar conta, dormem, riem e amam, como eu faria.”
Em A Guerra do Bem, um embrulho inicia uma troca incessante de presentes, a tênue linha que separa o bem da perversão é abortada com a morte de um dos provectos competidores no final surpreendente: “Já não tinha nesse planeta um só inimigo a quem pudesse castigar com golpes implacáveis de solidariedade.”
Em alguns contos, a confissão da autora está assinada na primeira pessoa. Plural, sentimos as percepções inquietantes em nossas vivências e uma certa melancolia nas mortes diárias. Não há como não aprender na Aula de Anatomia e compreender o corpo dissecado com as pungentes incursões da alma. Uma conclusão precisa e fulminante: “A alma assassina tirou da mulher o corpo da menina.”
Clarice Lispector desperta nas linhas e nas entrelinhas da confissão de um eu profundo que abre feridas e as cicatriza numa prosa precisa e surpreendente que retrata o mundo moderno, nossas incompletudes e ilusões. Em outras narrativas, Mathilda Kovak cria pseudônimos para os nós existenciais e nos ata irremediavelmente ao papel da protagonista. Ana, Luzia, Hortência, Amanda, Olívia e Lázara são sombras iluminadas nos contos, personagens que poderiam permanecer à margem do mundo em seus casulos e ressecar com a aridez dos esquecimentos, mas a autora lhes deu asas e assim elas ganham os céus nublados dos olhares rotineiros e desvendam um horizonte distante das alienações, encravado no íntimo de cada leitor.
Adormeci com a última frase do livro reverberando em meus pensamentos: “Antes, apenas tentando, com a modéstia dos mortais, adivinhar o menu da ocasião”. Não lembro se sonhei, mas acordei com a necessidade de reler os contos da era do fax para tentar compreender as trilhas da humanidade.