Onde os fracos não tem vez (No Country for Old Men - 2007 - Ethan Coen e Joel Coen)
Onde os fracos não tem vez (No Country for Old Men - 2007 - Ethan Coen e Joel Coen)
“Onde os fracos não tem vez” é um filme forte, não pelas cenas de violência, elas existem em boa escala, mas, digo, forte, pois contundente. O cenário é praticamente o deserto. São regiões inóspitas, afastadas e vastas. Uma terra de ninguém onde a polícia não faz muito esforço para solucionar casos de bandidos contra bandidos. O filme não tem foco, não possui um personagem principal, embora todos os três homens do longa sejam protagonistas.
O filme começa com uma narração em off, do xerife Ed Tom Bell (Tommy Lee Jones) onde ele vai explicando pormenores de sua profissão, que seu avô e seu pai também tiveram. Logo sabemos que armas eram pouco usuais em seu meio, e ele nos relata um tempo que vai ser contraposto a todo o filme. Se os xerifes não tinham armas, os bandidos e homens que por ali vivem não partilhavam essa mesma realidade.
Temos então a apresentação de Anton Chigurh (Javier Bardem), que merecidamente levou o Oscar por sua atuação penetrante e amedrontadora. E por isso mesmo, não podemos levá-lo como uma pessoa ao longo do filme, mas sim como um símbolo. Do mal. Ouça sua voz mortificante e calma, sua expressão serena e sua potência de presença. Devemos vê-lo como esse símbolo que tanto nos afeta atualmente, o mal, e por conseguinte o medo. Mal e medo são a mesma coisa, e Zygmunt Bauman deixa claro em seu livro essa dualidade. O mal é o medo, o inexplicável, perfeitamente claro na cena que Ed Tom conversa com um parceiro e nos diz que aquilo é incompreensível, o que lia no jornal, sobre pessoas que torturavam idosos depois os matando e se apropriando de suas aposentadorias. Sequer pensaríamos em fazer aquilo, por isso incompreensível e, como só tememos o que não conhecemos, logo o paralelo com o mal é feito. Corroborado em uma ótima cena em que Anton Chigurh diz a um personagem “Todos sempre dizem a mesma coisa.”, logo após ela lhe dizer que (ele) “não precisa fazer isso.”, isso seria matá-la. O ciclo se completa perfeitamente deixando claro que Anton é um “fantasma”, que assombra e é multi-presente. E todos que o encaram de frente acabam morrendo. Sobreviver ao mal é raro, fato exaltado em outra cena quando um personagem diz a Llewelyn Moss (Josh Brolin), que ele é uma exceção de ter encarado Anton (o mal) e ter sobrevivido.
“Onde os fracos não tem vez” é uma ode aos velhos tempos, aos xerifes de antigamente, ao modo de vida mais pacato, mesmo nos crimes. E como uma orquestra que vai do calmo ao tempestuoso em uma troca sucessiva de acordes harmônicos, o filme vai da tranqüilidade de uma região inóspita a tiros e perseguições tensas, entre um combate psicológico entre o homem e o fim inevitável.
Pode-se fugir, ou até caçá-lo, mas ele no fim das contas te alcança, de um jeito ou de outro. Particularmente bem orquestrado o anti-clímax que é a catarse do final. Llewelyn Moss é um aposentado, ex soldado, que passa seus dias vagando e caçando, quando por um acidente de percurso encontra uma bolada grande em dinheiro, resto de uma transação entre traficantes que saiu errada terminando com todos baleados.
Encontrando o dinheiro e o levando para casa, o homem comum peca pela humanidade, pela consciência. Então volta à cena do crime para ajudar o único sobrevivente ferido que tinha largado por lá. Nesse momento os três homens se cruzam, mesmo sem se verem. Anton caça aquele que roubou o dinheiro enquanto Ed Tom, tenta como pode, resolver o caso, mais tarde oferecendo auxílio a Moss e no fim das contas o porta voz do novo mundo.
Ele tem a epifania. Não pertence mais aquele mundo, não se enquadra, não consegue achar seu lugar naquele caos absoluto. Aqui o título original serve muito mais que a nossa tradução para um entendimento: “Nenhum país para homens velhos”. Ele é o homem velho, cansado e exausto, que não mais compreende o meio em que vive e tudo que pode fazer é se isolar e sonhar com tempos melhores.
Em meio a essa metafórica analogia temos um filme tenso, angustiante, com planos bem orquestrados, como não passar mal de tensão com aquele duelo de inteligências em um hotel, onde as luzes e os sons falam mais que tudo? Tempos em que armas poderosas são usadas a esmo. Tempos em que misericórdia não existe e se o mal te caça, coitado de você se pensa que pode driblá-lo. Com uma fotografia soberba captamos o sentimento dos atos do filme. Primeiro em vasto descampado quando o homem é livre, está à vontade. Logo passando para a cidade média quando o mal se aproxima mais e terminando em uma grande cidade onde o sufoco é tanto que não podemos saber de onde vem o próximo mal a nos atingir, e se esperamos e nos preparamos para o que prevemos, algo completamente fora de cogitação pode vir a nos maltratar, ou matar. Podemos estar prontos para o que podemos prever, mas logo vemos que nossas capacidades de previsão são toscas e ínfimas.
O anti-clímax da perseguição é então o ponto central para o começo da análise, o mal como parte integrante da vida urbana. E ele, necessariamente, é totalmente desprovido de sentido, quando ouvimos “Eu sabia que você era louco quando o vi sentado aí.”, é a recusa maior de aceitarmos o mal como é, simplesmente, ele acontece! Está em todos os lugares e não precisa ser sensato nem racional, muito menos passional. O que enerva é que o mal, inexpressivo e sempre presente, é aquele que não tem nenhum sentido, e quando o confrontamos e ficamos cara a cara com aquele, antes desconhecido, não conseguimos colocar nossas mentes em ordem, e achar uma explicação. Tarefa tão admirada em nossos tempos, onde tudo tem uma explicação, causas, sentidos etc. Em nosso tempo o inexplicável escapa de nossas mentes e logo o negamos, como loucura. Tendemos a categorizar tudo, um assassino, cometeu um crime para sobreviver, um ladrão rouba para comer, e assim por diante, e mal sabemos que um ladrão rouba porque rouba, e um assassino acaba matando pessoas. Essa nossa compulsão por explicações é a causa primeira de nossa queda diante do mal. Como tão bem demonstradas para nós essas ações em Auschwitz, durante a matança de milhões de judeus, as pessoas que exterminavam outras, não eram monstros, mas como eu e você, com famílias, chegando até a serem amáveis, e por isso mesmo inexplicáveis quando fazem as vezes de mal, e o que o filme mostra somos nós, velhos habitantes do mundo velho, que cada vez mais nos recolhemos perante esse medo do mal, do inexplicável, retirando nosso time de campo para vivermos na nossa ilha de conforto, nossas casas, ignorando que mesmo que nos escondamos, o mal está presente, sempre e em qualquer lugar, basta abrir os olhos, um dia, podemos ver o mal refletido no espelho enquanto escovamos nossos dentes, e ele não vai ser especial, ele vai ter um rosto comum, mundano, assim como o seu.