RESENHA DO FILME “O GAROTO SELVAGEM”
André Akênio Diniz Alexandre
Thamara do Nascimento e Nascimento
O garoto selvagem. Adaptado no livro de Jean Itard. Direção de François Truffaut. Produção de Marcel Berbert. França: United Artists, 1969. (83 min); Filme - Vídeo: Dublado. Port.
O garoto selvagem é um filme histórico-biográfico lançado em 1969 com a direção do cineasta francês François Truffaut. A história é baseada em um livro escrito no século XVIII pelo psiquiatra e médico francês Jean Itard, que foi tutor de uma criança selvagem encontrada na em meio a natureza. O livro traz os relatos do psiquiatra sobre o processo de educação dessa criança, que recebeu o nome de Victor. Durante esse período, o doutor Jean Itard (estrelado no filme pelo próprio Truffaut) faz diversas anotações relacionadas ao processo de educação e também à evolução do menino. Seus relatórios contribuíram para a pedagogia, educação oral e psicologia, tornando-se um marco na medicina europeia. O filme aqui analisado retrata um recorte dessa história: do momento em que o menino Victor, que teria por volta de 12 anos, foi encontrado, passando pelo exaustivo processo de alfabetização até o momento em que ele se desprende totalmente da natureza e decide viver com seu tutor. É importante ressaltar que na história real, Victor viveu até os 40 anos de idade, contudo, nunca aprendeu a falar.
O diretor do filme, François Truffaut, é considerado um dos maiores ícones da história do cinema no século XX. Foi um dos fundadores do movimento cinematográfico conhecido como Nouvelle Vague, além de ter inspirado outros cineastas como Steven Spielberg, Quentin Tarantino, Brian de Palma e Martin Scorsese. Truffaut era alienado por cinema desde seus 7 anos, dali em diante sua paixão pela arte tomou dimensões maiores, o mesmo se tornou um ícone da indústria cinematográfica francesa. Truffaut realizou 25 filmes. Teve uma carreira promissora com o público e também críticos de cinema. Ele faleceu precocemente aos 52 anos, vítima de câncer.
A história que Truffaut reconta nesse filme se passa na França no ano de 1797. Na primeira cena, Victor, que está nu e apresenta comportamentos animalescos, acaba assustando uma mulher que passava perto da floresta. A mulher então relata no vilarejo ter visto um “animal estranho” em meio aos bosques, e, assim, caçadores vão em busca do menino. O menino é raptado e levado para a civilização, sendo tratado como uma verdadeira atração pela população. O professor Jean Itard (François Truffaut) se interessa pelo menino e o leva à Paris para estudar seu grau de inteligência e seu comportamento, pois desde cedo foi privado do convívio com humanos. Itard começa a educá-lo e todos pensam que o professor irá fracassar com sua missão, mas aos poucos Jean Itard percebe diversos avanços no processo de reeducação de Victor ao levá-lo para uma fazenda isolada no interior.
Contudo, Itard não consegue desenvolver bem a fala do garoto, que só consegue dizer a palavra “leite” e fazer algumas relações entre outras poucas palavras e objetos, mas sem conseguir pronunciar. O momento em que Victor pronuncia a palavra leite decorreu da percepção de Itard para o fato de que Victor gostava muito de leite de vaca. Então, ao identificar isso, o psiquiatra trabalhou com um processo de estímulo-resposta para ensinar o garoto a atribuir a palavra ao objeto. E Aqui está o primeiro ponto que chama atenção no processo de educação de Victor. Ele foi retirado do ambiente que viveu toda a sua vida até então e foi introduzido na civilização de maneira forçada. Esse é um novo mundo para ele. Victor não conhece os objetos da casa de Itard, nunca os viu antes, mas o médico insiste em tentar ensinar a linguagem para Victor ao propor a associação de objetos diversos, como tesouras, lápis, talheres, réguas e vários outros objetos pitorescos que Victor não faz ideia para que servem. Olhando sob essa ótica, podemos considerar os métodos de Itard ineficazes, pois para os métodos pedagógicos atuais é importante trabalhar com o universo já conhecido pelo aluno para desenvolver sua linguagem. Mas é necessário ter cuidado ao fazer esse tipo de análise para o filme em questão, pois no século XVIII essas ideias ainda não vigoravam, então esse comentário é feito com intuito de introduzir uma discussão atual sobre o tema, mas com cuidado de não cometer anacronismos. Outra hipótese que poderia ser levantada quanto a dificuldade de Victor para com a linguagem seria a possibilidade de ele ter alguma afasia, ou até mesmo autismo em algum grau. Mas novamente essa análise fica limitada pelo fato de nessa época ainda não haver esse tipo de diagnóstico. Assim, a história de Victor sempre será permeada por dúvidas, mas ainda há grande valor no estudo desse caso, que serve de exemplo para os processos de aquisição de linguagem abordados pelas teorias modernas.
Quanto às teorias, que já foram brevemente comentadas, podemos relacionar, ampliando essa discussão, as teorias de aquisição da linguagem para esse caso, tendo em vista o processo de desenvolvimento e os métodos utilizados pelo médico. Comecemos pela prática da teoria behaviorista. Chegamos à essa conclusão, devido ao professor passar coordenadas à criança e esperar a resposta considerada ideal, além de sempre fazer exercícios repetitivos e aguardar o retorno que lhe era esperado. Além de também se fazer presente no processo de reeducação, a teoria associacionista tendo em vista que Victor era sujeito a estímulos ambientais, o professor utilizava objetos para a educação do garoto, baseando-se em concepções associacionistas de aprendizagem, através do uso e significado das sentenças.
Por fim, cabe a recomendação da obra para o público geral pela excelente discussão acerca dos valores da sociedade moderna. O filme faz isso ao resgatar o debate social e psicológico entre o homem e a natureza, mostrando como a sociedade civilizatória é opressiva para com aqueles considerados “selvagens”, ou que tem sua cultura e costumes tratados como inferiores aos padrões ocidentais, que foram construídos, ao longo da história, em cima da ideia da superioridade cultural do “homem civilizado”.
Além disso, ao abordar os processos de aquisição de linguagem, o filme também se faz recomendado para estudantes e professores dos cursos de Letras, Pedagogia, Psicologia e qualquer outra área que trabalhe com a linguagem e o aprendizado, pois terão aí um bom estudo de caso para se discutir e abordar as diversas teorias que tratam desse tema.
Devido às várias camadas e possibilidades de debate que o filme proporciona, não há ressalvas quanto ao público que o filme “O menino selvagem” poderia ser transmitido. Cabe dizer na verdade que seria realmente vantajoso se o filme fosse mais conhecido e divulgado para assim trazer mais discussões relevantes para os vários segmentos da sociedade.