“A Substância”: Quando a existência aniquila a essência

Confesso que fui assistir “A substância” sem grandes expectativas e saí bastante surpreendido. Não imaginava, inclusive que me deixaria intrigado a ponto de querer rabiscar algumas opiniões e comentários. Trata-se de um filme inquestionavelmente impactante, não apenas do ponto de vista estético. Isso porque o impacto aqui vem de diversos aspectos: pelos enquadramentos de câmera, pelo ambientação e cenário (com uma pegada meio vintage, meio futurista), pelas brilhantes atuações (especialmente da protagonista Demi Moore), pelas cenas chocantes, muitas vezes até bizarras, como, sobretudo pela provocação que nos faz, uma provocação que, como aqui pretendo demonstrar, na opinião deste expectador, vai para muito além do drama de uma personagem envolta em crise de meia idade, transbordando a temática do envelhecimento e da imposição de severos padrões estéticos, especialmente às mulheres. A provocação aqui, dirige-se a todos nós.

Talvez a um expectador como eu, mais acostumado a uma linguagem estetizada, sutil, o filme possa, quem sabe, causar maior estranhamento. Contudo – sem receio de exagero ou juízo demasiadamente pessoal – penso que “a substância” pode ser mesmo definido como um filme aflitivo e angustiante. O desconforto e o pavor são constantes, muito bem administrados e sustentados ao longo das mais de duas horas de filme, à exceção da cena final, ápice do horrendo, que, no entanto, parece fazer a história descambar para o esdrúxulo, o grotesco, e até para o cômico ou trash – como diriam os mais jovens – não sei eu se por acidente ou por intenção.

Seja como for – e a despeito do final que, em minha opinião, classifico como decepcionante – “A Substância” é, sim, um filme excepcional, seja pelo roteiro ousado e intrigante, pelo excelente trabalho da diretora Coralie Fargeat, pela atuação espetacular de Demi Moore e, especialmente pelo mal-estar profundo e pelas inquietações que nos causa.

Aliás, eu que em geral opto (e até prefiro) formas de crítica mais sofisticadas, sou obrigado a admitir que o recurso ao tosco e ao brutal talvez funcionem na história melhor do que qualquer outro artifício ou ferramenta mais elaboradas, deixando a mensagem ainda mais direta, explícita e, por isso mesmo, penso eu, adequada e propícia a nossos tempos. O apelo a uma linguagem e estética sem grandes nuances e sutilezas, quem sabe, seja aqui intencional.

Trata-se, afinal, de uma história bastante grosseira, que se transcorre numa realidade repleta de exageros e excessos, contudo, sem grande refinamento nem, aparentemente, questionamentos profundos. A única beleza e delicadeza aqui é a dos corpos e formas físicas, enfim, das aparências.

Desprovido de camadas humanas, embora repleto de aspectos simbólicos, somos jogados num drama de personagem simples e sem qualquer complexidade (apesar das excelentes atuações que lhes dão vida, é claro), diálogos curtos e rasos, enfim, um cenário e uma linguagem que alcançam e refletem um mundo empobrecido e uma sociedade mergulhada até o pescoço na contemplação narcísica, em delírios de consumo e ostentação, enfim, limitada à satisfação de desejos absolutamente banais, fúteis e mesquinhos.

O único e maior feito da história, aliás, não é de nenhuma das personagens, nem mesmo da protagonista – uma pessoa visivelmente sem qualidades ou atributos para além da beleza física–, mas sim, da ciência, uma ciência anônima e despersonificada. A inusitada complexidade da história fica por conta do nosso esforço em tentar entender de onde vem a tal “substância”, como funciona o elixir maravilhoso e seu complexo funcionamento, um triunfo da técnica desumanizada que promete corrigir as imperfeições dos homens, construir vidas perfeitas de beleza e eterna juventude, mas que, como sempre fez e faz, produz apenas horror e reduz os sujeitos a nada.

Contudo, e essa é a boa sacada do filme, sua aparente pobreza – de personagens, diálogos e enredo –, oculta, na verdade, uma crítica intrigante e inteligente, ao menos aos que conseguem ver para a além das aparências – exatamente essa a dimensão que o filme mais explora e brinca.

Passando, enfim à história...

Elizabeth Sparkle é o que pode dizer, uma estrela, com direito a menção na calçada da fama. O filme não nos mostra detalhes de sua vida, história e carreira, mas deixa no ar a suspeita de que é a beleza física, ao fim e ao cabo, seu maior talento como protagonista de um programa de aeróbia na TV – um programa em que muito se exibe e pouco fala, enfim, uma confirmação irônica de suas incríveis habilidades dramáticas.

Após décadas de sucesso, Elizabeth é, porém, no presente, um astro em decadência, uma estrela, ainda bela, porém, um tanto quanto apagada.

Na data em que completa 50 anos de vida, Elizabeth recebe de seu chefe a notícia de sua demissão. Harvey, o diretor do canal, excelente representação de um desses tipos toscos e grosseiros de empresários magnatas da mídia – feita de forma irritante por Dennis Quaid –, comunica que Elizabeth já não se adequa mais ao gosto do público, deixando explícito que procura uma mulher mais jovem e bela para ocupar seu lugar no programa que seguirá no ar.

Elizabeth, fique claro, não é só uma mulher bela, é exatamente a personificação do padrão e da perfeição estética a quem, no entanto, a despeito da preservada beleza, o tempo não deixou de imprimir suas inexoráveis e indeléveis marcas. O expectador aqui imediatamente sofre, por e com a personagem, e certamente se revolta com a injustiça, uma mulher tratada como objeto simplesmente descartada por não ter mais a mesma beleza e forma que outrora deslumbraram legiões de homens babões e nojentos tais como Harvey e seu séquito de ricos investidores.

Esta é, a princípio, a grande questão da narrativa, um drama espantosamente comum e banal. Como convém a histórias-padrão o problema deve, ao fim, encontrar uma redenção. A solução, como era de se esperar, até aparece, no entanto, aqui não estamos diante de uma história padrão, inclusive, adianto, não há final feliz (risos),

A solução para o problema de Elizabeth, bastante incomum e exótica, será o desencadeador de dramas mais profundos, e pode-se até dizer, violentos. Apesar de tocar em temáticas um tanto comuns no cinema de hoje tais como a crítica aos padrões estéticos, à objetificação dos corpos (especialmente femininos), a descartabilidade da idade, o filme extrapola – e em muito, penso eu – esses limites e barreiras propondo uma crítica que pode ser lida para muito além dessas questões.

Para sustentar o que afirmo, peço aqui licença para reproduzir e contar um pouco da história, já me desculpando antecipadamente pelos spoilers que, acreditem, em nada estragam a experiência, indescritível e irreproduzível, de se assistir ao filme. Somente assim, (re)contando em linhas gerais a história é que será possível, espero, compreender a leitura que aqui proponho (desejando, ainda, que faça sentido).

Retornando à história, o drástico revés vivido por Elizabeth não se limita à inesperada demissão e ao insensível descarte sofrido. Desnorteada e chocada com a notícia, a protagonista se envolve em um acidente ao qual sobrevive fisicamente intacta, embora interiormente fraturada.

Ainda ali mesmo no hospital um enfermeiro de feições absolutamente impecáveis e beleza quase artificial, lhe anuncia algo que poderia mudar-lhe a vida. Já do lado de fora Elizabeth se depara com um pendrive personalizado com a inscrição “A substância” escondido no bolso de seu casaco pelo enfermeiro desconhecido enquanto é abordada por um fã e ex-colega de escola que ousadamente a convida para sair.

Em casa, Elizabeth, que inicialmente havia atirado o objeto ao lixo, confrontada com a dor e o vazio, decide descobrir o conteúdo do drive e, mesmo desconfiada, acaba cedendo ao apelo e à estanha promessa da “substância”, atraída pela ideia de fazer uma versão perfeita de si. Nada é muito bem explicado, mas, ainda assim, Elizabeth se dirige a um estranho lugar onde recebe seu kit da substância.

A ideia é fazer uma espécie de segunda versão da pessoa por meio da inoculação de uma substância desconhecida. O sujeito então se torna a “matriz” (como a próprio “rótulo” explica) de uma versão ainda melhor, aprimorada e perfeita de si. Não se trata de um clone, mas, sim, de um segundo eu, mais belo, jovem e fisicamente aprimorado.

Entretanto, um detalhe um tanto interessante e complicado: os dois corpos não (com)vivem juntos. Trata-se de uma existência compartilhada, de uma vida dividida entre as duas formas da pessoa. Isso porque o que misterioso medicamento permite não é a coexistência simultânea em dois corpos distintos de dois “eus”, mas, um revezamento da experiência da vida a partir de um revezamento de corpos.

Para simplificar a história, Elizabeth, após aplicar o líquido, dá origem a uma outra criatura que sai de seu próprio corpo a partir de um processo de duplicação celular. O que vemos não é um parto, mas, uma cena impactante – algo que beira o horripilante – como que saída das páginas de ficção científica ou de filmes de alienígenas. Não darei aqui os detalhes para não estragar a surpresa (e o choque).

Do medonho processo, no entanto, surge uma mulher ainda mais bela e perfeita que Elizabeth. O corpo imóvel e fendido da matriz jaz no chão de um banheiro branco e anódino. Contudo, a protagonista não está morta. Elizabeth recebe os remendos e uma fonte externa de nutrição que a manterá viva em uma espécie de coma, enquanto sua outra versão, a bela Sue, viverá por um período de sete dias, após os quais deverá trocar de lugar com a matriz, devolvendo Elizabeth à vida após um processo de transfusão, processo esse que se alterna e repete sucessivamente.

A existência assim, passa a ser dividida pois dois corpos que, em turnos de sete dias – coincidentemente o número que utilizamos para nos organizar em ciclos semanais – se revezam. Enquanto uma vive, a outra “adormece”, invertendo a posição a cada sete dias.

Duas advertências, no entanto, são dadas a ambas. A primeira é de que o mecanismo de trocas deve ser respeitado e obedecer ao cronograma. Durante os sete dias em que ocupa o lugar de Elizabeth, Sue deverá não apenas manter a sonda de alimentação como drenar do corpo da matriz e aplicar em si uma substância que lhe garante a existência. Devolvida à vida, o corpo de Elizabeth tem o tempo necessário para recuperar suas forças e regenerar a substância que alimentará seu outro eu.

Tal detalhe, aqui antecipado, fica claro apenas a certo ponto do filme. A experiência, porém, a despeito do posterior desastre parece incialmente perfeita e inofensiva, matemática e cientificamente garantida. Respeitado o tal “equilíbrio”, a conta aparentemente fecha a e alternância, em tese, pode se dar sem qualquer prejuízo ou risco às duas que, na verdade, são uma só.

Esse é, aliás, o segundo aviso dado pelo anúncio e pelo misterioso supervisor da experiência. Sue e Elizabeth, apesar de fisicamente e corporalmente distintas, são na verdade, uma mesma pessoa e disso não podem se esquecer. Nesse ponto, aliás, fica uma dúvida, que permanece ao longo de todo o filme, sobre em que mediada Sue e Elizabeth compartilham a mesma consciência.

Embora gerada como que da costela de adão – ou, para alinhar a metáfora, de Eva – Sue é, e ao mesmo tempo, não é, Elizabeth. Uma não se desconhece da outra, nem mesmo da relação que entre elas passa a existir. Contudo, em algum momento, mesmo sendo uma só, passam ter vontades e desejos independentes e até vidas distintas. Eis aqui o anúncio da tragédia.

Assim que “ganha vida” a bela Sue, ironicamente, ganha o posto no mesmo programa de TV em que sua matriz fora protagonista. Obviamente que algo tão perfeito não seria recusado pelo ambicioso Harvey que, deslumbrado com sua perfeição e certo de seu apelo junto ao público, passa a garantir a Sue um espaço e visibilidade cada vez maiores em seu canal dado o estrondoso sucesso de audiência.

Sue é, como Elizabeth – e todos os outros personagens do filme – uma criatura tosca e fútil. Criação engendrada de Elizabeth, carrega dela, contudo, não apenas a beleza aprimorada à perfeição. Sue demonstra uma ambição, uma vaidade e um desejo de aprovação, fama e sucesso dignos de quem a pariu. O aperfeiçoamento – e a perfeição – neste mundo são atributos exclusivamente do corpo e da forma, não da essência. Sue não é exatamente uma pessoa melhor, apenas mais bonita e aprazível. Assim, como a criadora, a criatura revela-se ao fim, profunda e igualmente egoísta e desprezível, capaz de qualquer sacrifício por aquilo que insaciavelmente deseja.

Lembre-nos, aliás, embora a certo momento o filme nos faça esquecer, de que Elizabeth foi capaz de um ato de absoluta insanidade, sujeitando-se a uma arriscada experiencia ao custo e sacrifício do próprio corpo, tudo isso para manter (ou recuperar) a beleza e a juventude. Nada mais fútil e mesquinho.

Aqui, aliás, faço uma breve interrupção na história para antecipar uma reflexão necessária à conclusão que, posteriormente, desejo encaminhar.

Em que pese lidar com o problema da busca da beleza e da perfeição, da imposição de padrões estéticos, tais questões me parecem apenas (e literalmente) problemas de superfície, logo superado por dramas mais profundos na história. Desse modo é que me permito afirmar que o filme não se trata apenas de uma crítica a padrões estéticos, mas uma crítica mais ampla a nosso modo de vida moderno

O filme não nos fala apenas da perseguição de ideais de beleza, uma vez que o problema também pode ser estendido à busca incansável por outros tantos padrões de aprovação – seja por dinheiro, poder, amor, fama ou sucesso. Tudo isso é ainda mais acentuado e estimulado em um mundo que, pela técnica, efetivamente nos permite criar diferentes versões de nós mesmos em um universo que, embora não corpóreo, imaterial – uma realidade virtual – já existe como um fenômeno “concreto” em nossas vidas modernas. Um mundo de ideais e de padrões

Assim, todos nós, a diferentes custos e sacrifícios, nos acostumamos a observar – ou mesmo exibir e ostentar – padrões de corpo, de trabalho, de sucesso ou felicidade. Muitos inclusive, já chegamos ao ponto de nos dividimos entre diversas contas e “perfis”, com diferentes finalidades e propósitos, fragmentando nossa existência e nossa percepção de nós mesmo.

Nesse sentido é que proponho e defendo que o filme também tem a ver com nosso mundo tecnológico e, especialmente com a questão das redes sociais, essas vitrines maravilhosas onde se exibem corpos, sonhos e apelos de consumo de toda sorte, sejam bens ou até mesmo seres humanos, reduzidos a objetos.

A pergunta que fica é: será que já não estamos todos a criar outros de nós? Será que não estamos exatamente nos duplicando, triplicando em versões mais produzidas, perfeitas, seja com a finalidade de lucro ou objetivo de mera aprovação.

Passamos assim, como no filme, a existir em função de uma parte de nós que vive por e para recompensas e que não se importa em drenar de um outro – nós, a matiz – a substância necessária para continuar existindo. O que faremos, no entanto, com nossa versão original, mais autêntica e real? Como lidaremos com aquela parte de nós mais intima e imperfeita, uma parte que, não é capaz de garantir os aplausos, likes ou qualquer tipo de aprovação da mesma forma que nossas versões concebidas e construídas exatamente para tal finalidade?

Mesmo os que talvez não procurem desesperadamente por fama, glória e poder, também estão de algum modo vivendo a partir de outros “eus” em uma alguma outra dimensão, nem que seja como meros consumidores do que se convencionou absurdamente chamar de “conteúdo digital”.

Fato é que, como no filme, tal processo tem um inevitável e pesado custo. Fazemos tudo isso ao abandono de nós mesmos, sem qualquer senso de responsabilidade para com nossas próprias “matrizes”, quanto menos em relação a terceiros.

Porém, qual o custo do nosso auto esquecimento nessa lógica de permanente exposição e perseguição de ideais fúteis e mesquinhos que o mundo nos ensina e nos vicia? O deslumbre com os resultados, os reforços positivos ou a espera cega de resultado – a confiança numa recompensa –, seguem nos mantendo presos, atados, “engajados” (como se diz no jargão da internet) a uma lógica com a qual não somos capazes de romper.

Ou seja, tornamo-nos reféns de um outro (ou outros) que, embora não existindo fisicamente como a alegoria de um segundo corpo no filme, nos toma e demanda cada vez mais tempo e nos drena cada vez mais substância

A metáfora pode ser inclusive expandida para um mundo que suga à exaustão seus próprios recursos naturais para alimentar esse louco sistema e abastecer esse grandioso delírio em que alguns vivem e outros sonham. Sinceramente, não sei se a crítica do filme pretendia alcançar isso, mas não me parece exagero tal leitura.

Diante disso, como lidar com a realidade de nossos tempos, como enfrentar esse mundo que opera cisões tão profundas nos sujeitos? Seria possível sobreviver, quem sabe até experimentar e participar de tudo isso de um modo minimamente seguro e saudável? Ora, basta se ter equilíbrio, afinal, como repete o mentor anônimo da experiência por diversas ao longo do filme – e como pregam muitos gurus de nosso tempo –, tudo seria uma questão de equilíbrio, meta, propósito ou algo que o valha, correto?

Ocorre, porém, que não existe balanço ou equilíbrio possível nesse mundo de exageros, excessos e deformações. Ademais, quem aceitaria se submeter e suportar 7 dias de “baixa” quando, em tese, pode experimentar sucessivos e intermináveis dias de aparente e plena satisfação? Quem escolherá lidar com a frustação de seus desejos, sonhos e vontades, enfrentar defeitos e aceitar imperfeições quando pode criar um mundo perfeito para e nele viver – ainda que ao custo da própria substância?

Revela-se assim uma matemática perversa. O equilíbrio se desfaz numa lógica brutalmente destrutiva de esgotamento de recursos, sugando e drenando até o limite de nossos corpos numa operação que nos levará todos à auto aniquilação.

Pois é exatamente o que vemos acontecer no filme.

Com o sucesso, Sue passa a demandar e desejar cada vez mais tempo para si e para a satisfação insaciável de seus apetites e desejos. A indiferença, aliás, que cada uma tem para com a outra já está presente desde o início da história se observarmos o descuido com que se tratam nas sucessivas mudanças de corpo. Tanto Sue como Elizabeth, em nenhum momento sequer retiraram o corpo da outra do chão, deixando-o lá, nu, sobre o piso frio ou escondido em uma sala escura.

Para manter-se no controle da vida, o “alterego” de Elizabeth trapaceia e extrapola os limites da experiência, drenando cada vez mais substância da matriz para além dos sete dias estabelecidos. A real substância, como a este ponto fica claro, é afinal a própria matriz. Isso porque o líquido verde que causara a duplicação e o aprimoramento do DNA de Elizabeth é apenas o início de um processo que somente se sustenta a partir da substância com que Sue, diariamente, se alimenta a partir do corpo de seu eu essencial.

O conflito entre as duas se acentua deixando claro que, embora sendo uma mesma criatura, já não se enxergam mais como tal. De um lado, Sue deseja cada vez mais “vida”, cada vez mais espaço (e exposição), tomando da outra não apenas os dias, como a própria substância sem qualquer chance (ou tempo) de regeneração. Sue justifica-se ao argumento de que sua vida e sua carreira seriam mais importantes e de que afinal, era exatamente aquilo o que ambas buscariam.

O custo da ânsia de uma, porém, logo se reflete na outra. Desfeito o aparente e precioso equilíbrio, vemos Elizabeth voltar à vida, cada vez mais decrépita, literalmente sugada e assustadoramente envelhecida. Elizabeth se vê às voltas com uma parte de si que engendrou e da qual não pode mais de livrar

Na consciência de que este outro eu – do qual a verdadeira Elizabeth se tornou refém e escrava –, agora lhe nega existência, lhe rouba o tempo e lhe drena a vida – a substância – surge um ódio profundo que Elizabeth passa a nutrir por Sue e, consequentemente por ela mesma.

Uma cena em particular me vem e me marca a memória. A certo ponto desse conflito, Elizabeth encontra numa estante o único livro a aparecer ao longo de toda a história, em todos os cenários do filme. Trata-se de uma lembrança, um “agradecimento”, oferecido por Harvey quando da demissão da protagonista.

Ocorre que ao desembrulhá-lo, Elizabeth se depara, ironicamente, com um livro de culinária, um livro do qual se valerá, não como forma de prazer, aprendizado ou satisfação, mas como uma espécie de punição e castigo, sobre seu próprio corpo, pela beleza da outra. A personagem revela assim um apetite, gula – ou mais provavelmente, uma raiva de Sue e de si – muito maior do que sua imagem poderia sugerir ou seríamos capazes de imaginar.

Temos nesse ponto, a imagem um tanto perturbadora de uma Elizabeth esquecida e abandonada, deformada e degenerada, que devora ferozmente pratos e mais pratos de comida. O ódio aqui vem à tona numa voracidade sem limites vivida em uma sala quase vazia cujas imensas janelas de vidro a protagonista cobre com jornais apenas para não ter de se deparar com a imagem perfeita de Sue em um outdoor que, estrategicamente, lhe encara – plena, feliz e bela – do outro lado do vidro. Uma relação de amor a ódio a si mesmo através de telas. A imagem aqui me parece uma clara e nítida referência a como as telas participam desse processo de criação, ostentação e exibição permanente em que vivemos, sem falar na contemplação de “eus” perfeitos que se vendem pelos outdoors virtuais.

Enfim, o ódio de Elizabeth se reflete num desejo de vingança literalmente autodestrutivo que alcança o ápice no momento em que, reduzida à ruína, Elizabeth decide interromper a experiência e pôr fim à vida da criatura.

O que a faz hesitar é o desejo de ser amada, algo que Sue, graças a sua beleza incomparável parece conquistar: “eles vão amar você”, diz o bilhete sobre a mesa. Essa é a cilada, a falsa promessa que nos faz acreditar que todo esse sacrifício desumano poderia valer a pena. Cabe inclusive indagar: que forma de amor é esse? De que tipo de compreensão de amor estamos falando? Do que nos tornamos capazes de fazer em troca dessas experiências deformadas de afetos?

Além disso existe ainda o medo da solidão. “Quando você parar não poderá voltar atrás. Você simplesmente ficará sozinha”, reflete Elizabeth. A voz que lhe sussurra ao ouvido interrompe o processo de “desligamento” acordando uma Sue que, ainda mais enfurecida ao ver que Elizabeth tentava se “livrar” dela, explode num episódio de cólera que desencadeará eventos trágicos exatamente em seu momento de maior glória.

O ato inconsequente de Sue, entretanto, pode lhe custar a própria existência e comprometer a noite mais importante de sua vida. Vendo-se privada de sua fonte, Sue tenta, ela própria engendrar sua criatura, mas acaba parindo um monstro, desprovido de substância, uma aberração feita de retalhos e remendos – da própria Elizabeth, inclusive – que, num ato desesperado clama ao público por compaixão. “Eu ainda estou aqui”, tenta dizer a criatura em um apelo à plateia. Os detalhes do surpreendente e inesperado desfecho da história não darei aqui até para preservar e permitir ao leitor tirar suas próprias conclusões. Seja como for – exagerado, grotesco ou adequado –, acho que o final parece de fato ter lá sua razão de ser.

O monstro é, a única possível depuração do drama das personagens, afinal, é só o que resta de todo o processo: uma criatura ao mesmo tempo assustadora, disforme e frágil que de certo modo, é até capaz de nos despertar, estranhamente, uma centelha de piedade. Aliás, fico a me questionar, inclusive, se a personagem – ou mesmo alguma de suas versões – seria mesmo digna ou merecedora de alguma compaixão. Elizabeth e Sue, aliás, em essência, são exatamente a mesma coisa, apenas expressões distintas de uma mesma substância. Não que isso realmente importe, foi o monstro, porém o único capaz de realmente me comover. Talvez seja ele o único traço de verdade e única coisa sincera nesse mundo de perfeições aparentes.

Fica, ao fim, as muitas provocações do filme. Falamos de um mundo no qual qualquer ideia de “substância” (ou conteúdo) se perde, se dilui e se esvai na mera contemplação da forma. Não à toa vemos e assistimos, a toda momento, milhares e milhares de porcarias sendo chamadas de “conteúdo”, alimentando uma dinâmica permanente e neurótica de consumo, de exposição, de busca e saciação primária de desejos e apetites. Uma sociedade que cultua formas, porém, apenas formas vazias e esvaziada, sem falar nos tantos modelos e padrões de perfeição que ocultam deformações e monstruosidades.

Estabelece-se e naturaliza-se, desse modo, ideais de vida sem consistência, sem conteúdo, uma lógica de existência narcísica que nos suga e aniquila qualquer possibilidade de realização na essência, levando-nos a própria destruição.

Vivemos todos em um mundo que nos força e obriga a criar, ou ao menos exibir, versões “melhoradas” e produzidas de nós mesmos, não como estímulo a qualquer forma autoconsciência e aprimoramento, mas, sim para a aceitação e validação de terceiros, para a satisfação de ideais e padrões, para interesses profissionais, para aprovação e adoração pública, ou mesmo, para a simples e pura ostentação narcísica. Nem mesmo o dissonante escapa à espetacularização. Numa mesma lógica, porém invertida, vemos a autocelebração até daquilo que se mostra como diferente. A mesma auto exibição, apenas com sinal invertido

O outro lado, bem como a consequência mais nefasta disso é que fomos todos transformados em objetos e mercadorias, sem falar nos casos mais extremos – expressão da crescente exploração sem limites – nos quais sujeitos são, por falta de melhor chance ou crença tola empreendedora, levados, consciente ou inconscientemente, a se venderem como produtos numa vitrine.

Como no filme, tudo isso nos fragmenta e leva a um abandono de nós mesmos. Tornamo-nos reféns de versões e personagens que tomam de nós o nosso tempo, nossa atenção, nossa privacidade e até mesmo nossa inteligência, fazendo com que nos percamos e nos esqueçamos de nós mesmo. Enfim, somos permanentemente sugados de nossa substância e drenados de nossa essência para que essas outras versões e realidades possam continuar existindo. Sem tempo ou possibilidade de, verdadeiramente, nos preenchermos nos reabastecermos de substância, somos levados ao esgotamento e a autoaniquilação.

Quebrar tal ciclo, romper com tal lógica que nos é imposta ou vendida, certamente, não é fácil. Entretanto, é, não apenas ilusório, como extremamente perigoso, crer que é possível fabricarmos criaturas perfeitas, versões sem defeitos de nós. O aprimoramento, o crescimento são sim possíveis, inclusive, são resultado de um processo interno, necessariamente lento e doloroso, cuja beleza nem sempre se revela na superfície. Não seremos amados nem aceitos seguindo padrões, inventando versões-modelo que acabam tomando o controle de nós. Em algum momento elas se apoderam e passam a tirar de nós mesmos o que precisam para continuar existindo.

No limite, pode-se dizer que criaturas perfeitas até podem “admiradas” por sua perfeição, porém não serão amadas por isso. Nem nós. Será, ainda, que elas poderiam nos amar de volta?

Gabriel Frias
Enviado por Gabriel Frias em 26/02/2025
Reeditado em 26/02/2025
Código do texto: T8273271
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