O ÚLTIMO FILME DE WALTER SALLES
“Fui sempre neutro, apolítico/ Nunca fiz nada contra ninguém/Não sou dos que são contra/ Eu sou um homem comum/Trabalho, tenho documento, mulher, filhos/Pago imposto/ Por que fazem isso comigo? Onde estão os meus direitos?” (Reginaldo Farias, Pra Frente Brasil (1982)
Não abrimos mão do contexto histórico como pano de fundo das estórias particulares. Qual dos cineastas mais se aproxima da conjuntura que vai do Golpe Militar de 1964 até 1985? Eunice e Rubens Paiva foram protagonistas da história oficial em Ainda Estou Aqui. Já, Pra Frente Brasil toca no cidadão anônimo que é vítima da desestruturação familiar e da violência da repressão. Walter Salles faz uma abordagem intimista mostrando que os setores de altas rendas sofrem perdas neste período histórico. Ambos, não levam perspectiva de luta de classes ou mesmo estão preocupados em falar das periferias. (ler Marcos Zibordi/ Terra ,05/01/2025).
O filme de Salles é lento detalhando o “dolce farniente” da família Paiva, com os sucessivos banhos de mar, idas e vindas das sorveterias em um “lar doce lar” beirando as areias do Leblon, bairro à época, calmo e bucólico. Fixou-se neste mise-en scène que prejudicou o ritmo do filme ao esconder dos filhos o movimento das ruas e a tensão pairando no ar. Esta fase de endurecimento do regime não se adequava ao cotidiano da família. O pai tinha sido deputado federal e era um empresário promissor. O detalhamento dos objetos, da decoração, do automóvel, da máquina de filmar (Super8) lembravam os filmes da década de 1920 que marcou o “American way of Life”. Mesmo com censura, como foi possível ocultar para a filharada as prisões, mortes e fugas constantes por todo o país? Como manter este “dolce farniente”? Se este era o propósito de Eunice para poupar os filhos, como conseguia esconder até de si mesma, as atividades políticas do marido? A resenha de Vassoler, Ainda Estou Aqui, BR 247,2024 diz: “Falta de fusão entre a micro e a macro história com H maiúsculo. Não é um grande filme. Não é uma grande narrativa”.
Por que não enfatizar a figura exemplar de Rubens Paiva, o seu discurso na Rádio Nacional sobre as Reformas de Base que foi o motivo de sua cassação pelo primeiro Ato Institucional? Era só vincular as condições de vida com as condições de trabalho para situar o filme em seu contexto histórico. Precisava um pouco mais de informação nacional e um pouco menos do cotidiano familiar. O Filme de Salles é chapa branca pronto para concorrer aos festivais internacionais, como de praxe em sua carreira de cineasta.
Eduardo Coutinho em Cabra Marcado para Morrer (1984) fala da repressão cotidiana que atingia as famílias rurais, deixando Elizabeth Teixeira viúva com 11filhos continuar a luta por Reforma Agrária, mas ela é obrigada a fugir com o Golpe Militar e deixar os filhos. É fato não é narrativa. Pra Frente Brasil é filmado na metrópole onde a violência aos opositores da ditadura era tão frequente que atingia até o cidadão comum. Com este argumento se faz um filme que é para a crítica “um libelo contra a violência” e foi censurado pela Ditadura que o liberou em 1983.Mostra a opressão, o medo, a tortura, as perdas familiares e a alienação do povo com a Copa do Mundo de 1970. Tanto Walter Salles como Roberto Farias são diretores de cinema que transitam e pertencem às camadas privilegiadas, sendo Salles o terceiro diretor de cinema mais rico no ranking mundial. É bem curioso constatar que na década de 1980 fazia-se filmes mais críticos que nos confusos anos das duas primeiras décadas do século XXI.
Entretanto o filme de Salles teve o mérito de reativar a memória nacional. Nas redes sociais brotam depoimentos de pessoas que perderam seus familiares na Ditadura. Embora o filme tenha colocado em segundo plano a figura central de Rubens Paiva e, en passant, a vida profissional de Eunice, eles vivenciaram momentos de intensa mobilização popular, época dos discursos de Jango no Automóvel Clube e na Central do Brasil, que com o Golpe Militar foram apagados historicamente. Na ordem do dia estavam o projeto Nacional-Desenvolvimentista e as Reformas de Base. O presidente João Goulart e o deputado federal cassado e morto foram punidos por defenderem a autonomia brasileira frente ao Imperialismo Americano e seus parceiros do Primeiro Mundo. Essas bandeiras de luta voltam a ser possíveis de serem recuperadas no século XXI. É sempre bom recordar que também existe uma política com P maiúsculo. Será que o governo Lula vai assumir tal desafio?
Consultas: Fabiane Albuquerque Um olhar negro, feminista e periférico sobre “Ainda Estou Aqui”, Le Monde Diplomatique, Brasil, 2024 / Entrevista de Fernanda Torres no Roda Viva, dez/2024 /Entrevista com Marcelo Paiva no Roda Viva, dez/2024/ Live de Marcelo Auler, uma novela macabra que Ainda Estou Aqui não pode revelar, BR 247/09/01/2025/ Flávia Castro, Filme “Deslembro” (2018) , Coletivo Memoria/ Comissão da Verdade , Mostra 60 x 6 CCJRJ/ Marcos Zibordi, Terra,05/01/2025 /Elizabeth Teixeira mulher marcada para morrer ainda está aqui,diariodonordesteverdesmares.com.br/colunista xicosa, 06/01/2025/ Walter Lima Junior Filme “Os Desafinados” (2009),Mostra de 2024, Caixa Cultural RJ, 30/Abril a 19/ Maio, 2024/Perfil do cineasta Walter Salles, Google/Perfil do casal Eunice e Rubens Paiva, Google/ Vassoler Resenha de Filmes, Ainda Estou Aqui, BR 247,18/11/ 2024/ Roberto Farias, Filme “Pra Frente Brasil”(1982)/ Eduardo Coutinho, Filme “Cabra Marcado para Morrer” (1984) /Walter Salles, Filme “Ainda Estou Aqui” (2024).