Robô selvagem - uma metáfora da aprendizagem que transforma
Assisti duas vezes – no mesmo dia – a animação da DreamWorks Robô selvagem (2024). Não é comum que um filme chame minha atenção a esse ponto. A animação é uma adaptação do livro escrito por Peter Brown e traduzido no Brasil pela Intrínseca (2017). Brown é um autor norte americano de literatura infanto juvenil consagrado, até mesmo, bastante premiado por suas obras.
Uma robô (Roz) é a única ‘sobrevivente’ de um acidente. Nas primeiras cenas do filme ela precisa urgentemente proteger sua existência. Ela ‘descobre então que se encontra numa ilha onde não existem humanos. Aos poucos fica evidente sua capacidade de aprender com as situações, seja para sair da praia e subir a falésia, seja em seu esforço de se comunicar com os animais que ela encontra. Roz é uma robô provida de IA (inteligência artificial).
Seguindo sua programação original Ros ‘decide’ que precisa entender a linguagem dos animais – únicos seres vivos ao seu redor – e, para isso ela para e aparentemente ‘desligada’ vai ‘aprendendo’ a língua de cada animal. Isso é essencial pois ela foi programada para cumprir missões que lhe fossem atribuídas. Segundo seu fabricante: ‘missão dada, missão cumprida’!
Situações imprevistas a colocaram como a ‘mãe’ de um filhote de ganso (Bico Fino) e completando o início da trama temos um auxiliar improvável, uma raposa (Astuto). Com esses três personagens será construída toda a narrativa presente na animação.
Porque ‘Robô selvagem’ chamou minha atenção?
É próprio da IA (inteligência artificial) que ocorra aprendizado, isso é, que aquele mecanismo desenvolva novas habilidades tendo em vista o cumprimento de sua programação. É um conhecimento voltado para algo bem específico: cumprir a missão que lhe foi atribuída. O que surpreende é o fato dela (Roz) estabelecer generalizações e ‘fugir’ de sua programação.
Explicando um pouco mais – sem contudo, dar spoilers do filme – ela desenvolve algo que se assemelha a uma ética e, passa a pautar seu comportamento por obrigações de fundo moral. Assim, ela se coloca como mãe de Bico Fino ao lhe ensinar as habilidades necessárias à sobrevivência de um ganso. E efetivamente, por inúmeros caminhos, cumpre devidamente sua missão. Em sua programação original, finda a missão ela deveria assumir uma nova ou, voltar ao seu fabricante.
Ela, propositalmente ignora sua programação – que ordena seu retorno ao fabricante -, universaliza a missão de cuidar dos demais animais. Isso ocorre a partir de duas situações: a) Bico Fino seguindo seu instinto, sua ‘programação’ partiu na migração anual; b) Em meio a um inverno extremamente frio ela se atribui a tarefa de resgatar a todos que estivessem correndo risco de morte, independente de sua condição de presa ou de predador.
A situação vivida naquele inverno rigoroso explicitamente aponta para um dado novo na realidade, isso é, ocorreu também, uma profunda mudança no comportamento dos animais. Eles rompem sua programação (instinto) ao decidirem e, efetivamente, viverem uma trégua onde todos deixaram momentaneamente de ser presa ou predador. Surge nessa ocasião o senso do coletivo e a ideia de comunidade reunida em torno de uma causa comum: a sobrevivência.
Não existe bem ou mal que dure para sempre e, neste sentido, a animação trás uma nova situação em que os laços de comunidade serão postos à prova: o fabricante de Roz a encontra e, força seu retorno a base e a programação original. É uma sequencia marcada pelo drama e, mesmo pelo heroísmo dos animais na defesa de Roz, que agora se assume como um robô selvagem.
Cada um dos personagens protagonistas desta animação: Roz, Bico Fino e Astuto chega ao fim do filme mudados em sua ‘natureza’ e, claramente, com comportamentos bem definidos: senso de família, amizade, colaboração, percepção do coletivo... enfim, presença de sentimentos que estão além ou mesmo fora do que pode ser programado. De certo modo, o mesmo ocorre com os demais animais presentes na animação. Emociona, a quem está assistindo, a declaração de amor materno/filial como síntese da relação entre Roz e Bico Fino.
É uma animação que vale a pena assistir, e rever mais de uma vez! Porque?
Estamos necessitados – todos nós seres humanos – de romper nossa programação individualista e cada vez mais carente de pertencimentos que ultrapassem o eu. Sim, o filme abre uma janela para causas coletivas, esperanças de dias melhores e desejo de bem viver.
Como toda boa e ‘velha’ utopia existe uma enorme distância entre o presente e aquilo que se sonha. Entretanto, seguir mudando, aprendendo e reconstruindo nossas identidades é o que fez da humanidade o que ela se tornou (para o bem e para o mal). Ao mesmo tempo, é a mesma condição que nos abre permanentemente ao novo, e se até mesmo uma IA/ROZ pode romper e relativizar sua programação, o que dizer de nós e do livre arbítrio que carregamos desde a aurora de nossa existência.
Dados da resenha: The Wild Robot (Original , no Brasil Robô selvagem) 2024; CHIS Sanders; DreamWorks. A animação é baseada no livro de Peter Brown. Robô selvagem. Rio de janeiro. Intrínseca. 2017.