"Ainda Temos o Amanhã" perfila-se junto aos clássicos do neorrealismo italiano
O filme “Ainda Temos o Amanhã” (Itália, 2023), embora realizado em tempos atuais, nada fica a dever aos clássicos do neorrealismo italiano, apresentando as características peculiares intrínsecas a estes filmes.
Propositadamente feito em preto e branco, como os famosos “Noites de Cabíria” (Itália, 1957), de Federico Fellini, e “Ladrões de Bicicleta” (Itália, 1948), de Vittorio De Sica, tem em comum com estes o pano de fundo das misérias e dificuldades de sobrevivência vigentes principalmente nas famílias empobrecidas da Itália pós-Segunda Guerra Mundial, retratadas nos filmes do movimento citado. Mas o tema principal que o diferencia daqueles filmes é a violência sofrida por mulheres que se ligam, inexplicavelmente, a homens misóginos e violentos, ainda presente nos dias atuais (veja-se os frequentes casos de feminicídio no Brasil).
A diretora Paola Cortellesi, que também é atriz, resolveu, numa decisão acertada, escalar-se a si mesma como a protagonista Delia, uma esposa dócil e subserviente que sofre calada com as arbitrariedades do truculento marido Jaino (ator Valerio Mastandrea), que a espanca à menor das contrariedades que o assaltam, cujas causas atribui injustamente a ela. A família de Delia parece ser típica das famílias italianas empobrecidas da época: pai embrutecido pela pobreza, mãe dedicada à família, uma filha adolescente sonhadora, dois pirralhos indomáveis, um sogro adoentado na cama, mas tão autoritário como o filho.
Um agravante psicológico em Delia é que ela na verdade não precisa ser dependente do marido, pois tem vários pequenos empregos que ajudam a sustentar a família. Sua situação é devida unicamente à sua própria personalidade, incapaz de se contrapor ao marido, que abusa de sua superioridade física sobre ela.
Mesmo quando a filha adolescente Marcella (atriz Romana Maggiora Vergano) a confronta, criticando-a duramente por não reagir à violência do pai, Delia não se convence, como que a desejar antes a preservação da família, mesmo que à custa de seu próprio sofrimento.
Mas algo inesperado e grandemente satisfatório para a família, será, paradoxalmente, a causa inicial de sua libertação. O namorado de Marcella, supostamente apaixonado por ela, é um rapaz de família rica da cidade, que propõe que as duas famílias se conheçam num jantar na casa de Delia. Todo o jantar, preparado com minúcias na casa pobre para receber à altura a família rica, tem o desfecho cômico que seria de se esperar em situações semelhantes, em que as aparências calculadas sempre correm o risco de se desnudarem ao menor tropeço.
Entretanto, apesar de toda a torcida da família para que a união dos dois se concretize no casamento, Delia muda totalmente de ideia, ao presenciar, escondida, uma cena de idílio ambígua entre os dois jovens, na qual vê no pretendente à filha, embora implícita e incipiente, uma conspícua personalidade do marido. Toma então uma decisão drástica para não ver a filha enveredar para seu próprio destino infeliz.
Mas, ao mesmo tempo, uma misteriosa carta que Delia recebe apresenta-se a ela como uma alternativa psicológica para libertar-se da vida sofrida que leva diante do marido opressor. Assim, toma uma decisão mais drástica e importante em relação a si mesma, que poderá libertá-la daquela vida.
PS: O filme atualmente encontra-se em cartaz no Cine Belas Artes, de São Paulo, e está disponível na seção Cinema#emcasacom sesc da plataforma gratuita Sesc Digital (aqui por prazo limitado, podendo a qualquer momento ser retirado do ar).