Impressões sobre o filme "Lavoura arcaica"

Esse é um filme que fala, mas não diz. Devorei as 2h50 seguintes com bastante fome. É preciso olhar com atenção as imagens que Walter Carvalho nos produz, pra entender. Não, não, entender é pouco, é menor. Pra enxergá-las com as nossas mãos e com os poros.

"Antes mesmo do início das filmagens de Lavoura Arcaica (...) , toda a equipe se isolou em uma fazenda. Lá, havia oficinas teóricas ministradas por convidados como Leonardo Boff, e outras em que as atrizes aprendiam, por exemplo, a marcar os passos da Dabke, a dança folclórica árabe que aparece na clássica cena da grande roda. “Éramos felizes”, afirma o cineasta Luiz Fernando Carvalho, diretor do filme."

Tentei descobrir um filme que se fundisse tão bem com poesia e é um exercício interessante. Talvez, dos que eu posso lembrar agora é "Hiroshima meu amor". Ou então, outro exemplo, "Capitu", minissérie de cinco episódios que Luiz Fernando Carvalho também assina.

Lavoura arcaica é um filme que não vacila um só segundo em ser sonho, em se pintar de poesia. Que sugere e se esgueira entre o sangue, o suor, o sêmen, a retidão, um pai com um ar professoral, austero, a ternura de uma mãe que acorda um filho, uma luz solar, um escuro que deixa só um olho de fora, um olhar escopofílico e muitas, muitas outras coisas.

Eu chorei um pouco. Me vi sendo André, mais especificamente, me vi sendo um filho que foge de sua mãe. Eu gosto de filmes que me machucam. Gosto e tenho medo deles, me lembram que sou gente e não bicho.

Esses dias ouvi de uma amiga querida que poesia nunca era demais, e eu concordo. Mário Quintana, quando perguntaram o que era poesia, disse que se enganava quem achava ser uma fuga da realidade, que a coisa era mesmo um ampliar e se aprofundar na vida. Lavoura arcaica foi uma explosão que eu não achava que existia.

Lembrei também dos filmes de Abbas Kiarostami e suas contemplações ou de Tarkovski, mas não adianta, querer comparar esse filme a um ou a outro, é apenas uma falsa correspondência. É como dizer a uma outra pessoa a palavra "Canário". O canário imaginado pelas duas, ainda que guarde as mesmas qualidades do pássaro, vai ser diferente e novo, e fresco na memória. É assim que esse filme é, ele simplesmente aparece. As palavras se falam como em um livro, (como o de mesmo nome que deu origem ao filme.)

Há também um feminino oculto, que na verdade, reafirma um olhar masculino sob as coisas. Ana é sempre quem é vista e quem é dita, mas nunca quem vê, ou quem diz e isso é, em algum grau, um problema. O apontado por Laura Mulvey quando falou sobre "Male gaze". Queria um lavoura pelas lentes e vozes de Ana. Seria legal.

O som dessa história é miúdo, mas é gigante. É alquimia, é invisível, é chuva, é terra, é sagrado, é arado, é uma lixa que raspa os olhos, é um pão sendo feito é um sol de infância. Não há porque não assistir com fones, ou então, com o melhor som possível.

Olhando de longe, toda história já existe, e essa também. Mas de perto, vejo uma parábola, a parábola do filho pródigo, só que essa é contada dentro de um vidro luminoso, fragmentar, caleidoscópio.

A flecha dessa história se desvia entre as várias eras de um mesmo André, mas nem de longe é um desses filmes sobre a idade que chega, cresce, se assenta e que olha para trás. Há uma eterna sensação de descontinuidade, de um fluxo de uma cachoeira que se recorta e se interrompe em vários pedaços.

As imagens ainda tão deitando sob a minha cabeça, ainda não sei muito bem o que achei, mas sei que depois de muito tempo ainda, elas vão estar gravadas, se farão lindas e se farão dolorosas também, eternas. Lavoura arcaica é um grandes filmes do nosso cinema.