O POLÊMICO e INDIGESTO IRREVERSÍVEL
Esse filme não agradará a todos. É polêmico e indigesto. Tem uma cena de estupro de 10 minutos e mostra uma cabeça sendo dilacerada por um extintor de incêndio, tudo isso sem cortes.
Eu só consigo assistir colocando a mão na frente, mas filosoficamente é tão brilhante que eu resolvi escrever a respeito.
O filme é de Gaspar Noé, um dos meus diretores de filmes prediletos. Ele é um diretor telúrico e dionisíaco. Gosto dele por ser corajoso ao abordar assuntos do submundo, como drogas, violência e sexo. E tudo isso alinhado com muita técnica.
Irreversível é seu primeiro filme que conta com atores renomados como Vincent Cassel e Monica Bellucci. Noé ganhou repercussão em sua carreira inicialmente com o polêmico "Carne", que fez muito sucesso em Cannes, ganhando o Prêmio do Júri Jovem. O curta começa mostrando um cavalo sendo abatido e aberto por um vendedor de carne de cavalo. Depois desse filme, ele filmou um longa que mostra a sequência desse longametragem e o destino do açougueiro. A parte polêmica do filme é quando aparece uma mensagem dizendo que, se você é uma pessoa que se impressiona com cenas fortes, ele te dava alguns minutos para sair do cinema. Posteriormente, veio o mais polêmico "Irreversível".
"Irreversível" começa de trás para frente, com Marcus e Pierre indo a uma boate em busca do estuprador de sua namorada Alex. A boate se chama "The Rectum", em alusão a parte terminal do sistema digestivo. A câmera de Noé gira e vai revelando, só por partes, que se trata de uma boate sadomasoquista gay, que mostra o próprio diretor do filme, Gaspar Noé, se masturbando, tudo isso em pequenos flashes. A fotografia é escura e vermelha, e temos a impressão de que eles estão descendo na direção das profundezas do próprio inferno em busca de Enia, o estuprador.
Chegando lá, Marcus acossa Enia e tira satisfação com ele, mas leva a pior. Ele o imobiliza, o vira de costas e está prestes a fazer com ele o que fez com sua namorada, sodomizá-lo. Eis que surge o amigo de Marcus, Pierre, e desfere uma pancada na cabeça de Enia com um extintor de incêndio, mas não contente, ele não dá um só golpe, mas várias pancadas até dilacerar a cabeça do agressor. É uma cena tão forte que dá até pra escutar os ossos da cabeça de Enia se partindo.
E aqui há a questão da irreversibilidade das nossas ações que, uma vez praticadas, nunca mais voltam atrás. Pierre é filósofo, e era, portanto, esperado que ele fosse racional. Na busca implacável pelo estuprador, é ele quem diz para Marcus agir com a cabeça, ser racional. Mas ironicamente é ele quem acaba amassando a cabeça do transgressor e irá pagar eternamente por essa ação. Mas se coloque no lugar dele, ao ver sua amiga sendo estuprada e observar seu melhor amigo prestes a sofrer o mesmo destino. A ação que ele toma por impulso nos faz questionar se o ser humano é de fato um ser racional ou age apenas de acordo com os afetos do seu corpo, como diria Espinosa.
Voltando ao filme, Pierre é levado da boate direto para o camburão ao som do público o chamando de "filósofo de merda" e dizendo que ele vai "mofar e pegar AIDS na cadeia."
Na segunda parte do filme, mostra simplesmente Marcus e Pierre indo pelas ruas de Paris à procura de Enia. Até que interpelam um travesti que diz que Enia foi para a boate gay.
Ao contrário do filme "O Fabuloso Destino de Amélie Poulain," "Irreversível" mostra uma Paris suja, fétida, sórdida, o submundo que só revela o pior da cidade, mostrando que até o belo tem seu lado feio.
A terceira parte do filme mostra uma discussão entre Marcus e sua namorada Alex. A decisão de ela ir sem ele e entrar num beco escuro, no qual ela encontra Enia, que a persegue, imobiliza e estupra. A sugestão de que a violação foi anal propicia que não só mulheres se sintam aflitas com a cena, mas também homens.
A quarta parte do filme destoa de todas as outras porque mostra Marcus e Alex ao ar livre, numa cena em que impera o verde, cor da esperança, e eles fazem planos para o futuro. Planos esses que certamente foram interrompidos pela tragédia que se abateu sobre o casal, no qual nada pode ser como antes.
E se eles não tivessem discutido na festa? Se ela não fosse embora sozinha? O destino foi implacável e joga luz sobre o fato de que nossas ações mais comezinhas não são gratuitas. Será que temos de fato controle sobre nossos destinos?
Todas essas discussões são suscitadas por esse filme indigesto de Gaspar Noé, uma recompensa para quem conseguiu chegar ao fim depois de ser exposto a tantas situações abjetas. E o desconforto é proposital. Noé usa técnicas do teatro do absurdo, no qual há sempre um ruído no som, que vai causando mal-estar a quem assiste. Apesar de ser um filme que se assiste uma única vez, a reflexão e a impressão que ele causa permanecem para sempre.
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Se você é mais sensível e se sentiu ofendido por este texto, peço perdão, mas a vida também é feita de coisas não tão belas.