"Dias Perfeitos" dá respaldo a Proust, mas vai além
(Disclaimer: o texto contém alguns spoilers)
O escritor francês Marcel Proust, autor da seminal obra "Em Busca do Tempo Perdido", que conviveu tanto com os criados de sua família como com os aristocratas e burgueses ricos de sua época, traça um perfil nada abonador destes últimos, em um longo trecho de um de seus romances que resumi mais ou menos nesta paráfrase: "Vejo mais nobreza de caráter no meu motorista ou na minha cozinheira do que nos 'nobres' com quem convivo, em quem, por definição e associação semântica, tal qualidade devia ser uma obrigação, mas em quem, na verdade, encontro vícios e defeitos que não vejo naqueles".
Enxerguei no filme "Dias Perfeitos" (Alemanha, Japão, 2023), do cultuado diretor alemão Wim Wenders, um retrato perfeito para esse pensamento progressista do rico Proust, mas o filme vai além, ao idealizar uma personagem cativante, o faxineiro das privadas públicas de Tóquio chamado Hirayama (ator Koji Yakusho).
O filme deve obrigatoriamente ser visto por todos que estejam social ou profissionalmente bem situados ou se orgulhem de ter um diploma acadêmico de prestígio e que, por suas posições supostamente "superiores", desprezem os humildes em posições sociais ou profissionais "inferiores". É um tapa na cara difícil de esquecer. Daí a grandeza do filme.
Não se sabe o motivo de o diretor ter escolhido um país diferente do seu país natal para realizar um filme tão poético e, ao mesmo tempo, tão disruptivo. Talvez para mostrar que o tema de sua história e o recado moral que esta quer passar sejam universais, que do que trata é possível em qualquer país. De qualquer forma teve a ótima intuição de escolher para sua personagem um grande ator para seu trabalho, ganhador de melhor ator em Cannes em 2023.
Que recado é esse? É o de que não precisamos ser poetas ou intelectuais sofisticados formados na academia para apreciarmos e sermos felizes com as coisas simples da vida.
Um humilde e simples faxineiro pode apreciar as ideias dos grandes escritores sem que possua um título acadêmico. E, concomitantemente, ter um espírito humilde para salvar pequenas plantinhas que morreriam sem seus cuidados, delicadamente borrifando água nelas. E apreciar uma linda manhã de céu azul que se descortina aos seus olhos todo dia ao sair de casa.
E também nunca julgar as pessoas que o olham com desdém pela sua profissão tão desprezada para odiá-las por isso (não está na sua natureza humilde cultivar esse dom nefasto). Porque, ao confrontar a irmã rica que se sente envergonhada por ele, que desce de seu carrão luxuoso para questioná-lo com extrema rudeza: "Você é mesmo limpador de privadas?", Hirayama não se ofende, nada responde, mas apenas sorri para ela e a abraça. A cena é emblemática, representa todo o simbolismo da comovente lição que o filme quer passar: qual dos dois é realmente o "superior" ali? Para Hirayama o que a irmã lhe diz representa apenas uma opinião sem importância nenhuma, como a do senso comum de que seja um pária na sociedade, porque ele não se sente assim. O que lhe importa é que é feliz com o que faz, é o que as pessoas amigas pensam dele e que veem seu verdadeiro valor, como a dona do restaurante que frequenta, uma excelente cantora amadora.
Quando, no final do filme, um homem socialmente bem posto se revela a ele em toda sua fraqueza por estar condenado por um câncer terminal, Hirayama se solidariza com ele, ao invés de desfrutar de uma vingança por tudo o que homens supostamente "superiores" como ele pensam a seu respeito. Brinca com ele um divertido "duelo" de sombras, ao tentarem descobrir se uma sombra sobreposta a outra torna a sombra resultante mais escura.
O seu sorriso redentor na cena final é apoteótico nesse contexto. Não há vingança nem "schadenfreude" (prazer ou alívio com a desgraça alheia). É apenas ele mesmo em sua natureza íntima, feliz com um bom dia de trabalho honesto, com suas plantinhas crescendo graças aos seus cuidados, com seus livros trazendo-lhe o prazer da leitura, com a linda árvore no parque que ele fotografa diariamente enquanto come um lanche, extasiado por sua beleza. E feliz com a sobrinha que prefere a sua afável companhia à da insuportável mãe que tanto despreza o irmão.
Por que preocupar- se com a opinião alheia, eivada de preconceitos sem fundamento e de total ignorância do que realmente vale a pena na vida?
PS: O filme atualmente encontra-se em cartaz no Cine Belas Artes, em São Paulo (SP), e disponível no streaming pago Mubi.