Domicílio Conjugal: especial Antoine Doinel

De praxe, eu costumo resenhar nesse espaço literário somente filmes inéditos, que eu nunca vi. Mas me surpreendi que o acervo do Mubi disponibiliza 'Domicílio Conjugal', um dos meus filmes prediletos de Truffaut.

 

Essa produção faz parte da série de filmes cujo personagem principal é Antoine Doinel, que apareceu inicialmente nas telonas no filme 'Os Incompreendidos', que ganhou a Palma de Ouro em 60 e foi aplaudido de pé, inaugurando a era da Nouvelle Vague. Posterior a ele vieram 'Antoine e Colette', 'Beijos Proibidos', 'Domicílio Conjugal' e 'Amor em Fuga'. Cada filme mostra um diferente momento da fase de Antoine Doinel, da juventude até a adulta.

 

Antoine é um personagem fictício com o qual eu me identifico, por ele ter um lado infantil bem preservado mesmo na vida adulta e pelas dificuldades que passou na vida. Dizem que ele é um alter ego de Truffaut. Ele é leve, divertido e carismático, interpretado pelo lendário ator francês Jean Pierre Léaud.

 

'Domicílio Conjugal' mostra a vida de Antoine Doinel depois dos acontecimentos de 'Beijos Proibidos', filme anterior.

 

Antoine casou-se enfim com seu grande amor, Christine, uma moça de boa família que o acolheu em sua casa. E o filme mostra como anda a vida conjugal dos dois. Christine de fato tem uma conexão incrível com Antoine; assim como ele, ela parece uma menina. No começo do filme, aparece ela fazendo compras e todo mundo a chama de senhorita, por ser ainda muito jovem, e ela corrige: senhora. Depois, o filme mostra o novo trabalho de Antoine Doinel, ele tem uma espécie de floricultura. Ele tinge as rosas brancas de vermelho com algum tipo de produto químico. Um vizinho de Antoine comenta que não tem nada melhor do que ver um preguiçoso trabalhando.

 

A vizinhança onde moram parece a do Chaves. Entre os vizinhos, há uma figura misteriosa; um aposentado que nunca sai de casa; uma vizinha que deseja Antoine Doinel de qualquer jeito, e muitas outras estranhas personagens…

 

Antoine e Christine começam de baixo, como muitos casais, pois não têm sequer telefone em casa. Quando a mãe de Christine os convida para jantar, precisam ligar para um comércio próximo a eles. O pai de Christine ajuda muito o casal, ele levou o projeto de autoatendimento para vender flores que Antoine havia concebido a um contato seu, que também irá providenciar a instalação de uma linha telefônica. Mas Antoine Doinel não está mais interessado no projeto de auto serviço das flores, agora o objetivo dele é alcançar 'o vermelho absoluto' na coloração das flores. Enquanto Antoine trabalha na floricultura, Christine dá aulas de violino para crianças. De volta ao conforto de suas casas, há as passagens memoráveis em que Antoine Doinel chama os seios de Christine de o gordo e magro, por eles serem de tamanhos diferentes, segundo ele, e também fala sua teoria de que a visão de um homem nu é abominável.

 

Na manhã seguinte, trabalhando na floricultura, Antoine Doinel também diz sua filosofia de que quando se interessa por uma garota, se interessa pela família toda. Que gosta de garotas com pais gentis. Depois ele compra para casa uma escada de biblioteca, apesar de eles não terem uma biblioteca, mas é preciso começar de algum lugar, ele responde. À noite, Antoine e Christine têm uma breve discussão devido à carta que Antoine escreveu ao senador agradecendo ao telefone, que foi meio ríspida, e durante a discussão ele fala que queria que o dia tivesse 30 horas, porque ele nunca fica entediado. E mais: gostaria que já fosse velho, para ter que dormir só 5 horas por dia. É por isso que me identifico com ele.

 

Antoine então vê um anúncio de jornal de uma vaga de emprego de multinacional americana procurando jovens que falam inglês. Ele vai à entrevista. Devido a uma confusão nas cartas de indicação, em que ele se passou por outro candidato, ele arrumou o emprego, mesmo falando inglês parcamente. O trabalho dele consiste em operar um navio por controle remoto. Depois de um tempo, o casal recebe a notícia que serão pais de um garoto. Antoine diz que o filho é mais do que esperava e faz planos dele ser um grande escritor, o que ele não conseguiu: 'o que o Napoleão fez com a espada, você fará com a caneta', ele diz sobre o menino.

 

O fotógrafo chega para tirar o retrato da criança, mas Christine fala que está muito cansada, ao que Doinel responde que ele não, que poderia tirar fotos dele. No outro dia, ele e a mulher divergem sobre o nome da criança: ela quer Ghislam e ele Alphonse. Doinel acha a escolha dela nome de aristocrata; ela acha o dele, de camponês. Como ele que vai registrar a criança, ele escolhe Alphonse. Entre os próximos dias, Doinel convida sua vizinha Silvana para conhecer o espaço da casa que estão reformando; ela é uma bela italiana bem enxuta, e Christine jura que ele ficou olhando para ela durante mostrava o apartamento, porque ela tem seios fartos e boca voluptuosa. Mas à noite, eles se entendem, e os dois relembram como foi o primeiro beijo deles. O vizinho deles, o cara estranho que todos achavam que era um estrangulador, descobrem que na verdade é um imitador. Aí todos passam a admirá-lo na vizinhança. 

 

Já no trabalho, Antoine Doinel é apresentado a Kyoko, uma bela nipônica que vai visitá-los. Antoine Doinel fica admirado com sua beleza. Quando Kyoko manuseia os barquinhos de Antoine Doinel, ela deixa sua pulseira cair na água. No outro dia, Antoine Doinel a recupera e vai até a casa de Kyoko só para vê-la novamente sob o pretexto de devolver a pulseira dela. Como agradecimento, Kyoko se despede de Antoine com um beijo nos lábios. Antoine volta ao apartamento dela dias depois para irem ao cinema, mas ela prefere jantar no seu apartamento. E os dois ficam juntos até a noite, com um recado de 'não perturbe' na porta.

 

Doinel chega em casa nas pontas dos pés já de madrugada, e sua mulher o questiona onde esteve e ele responde que estava trabalhando até tarde.

 

Ele recebe flores da Kyoko no trabalho com um recado de que ela o ama dentro da rosa, para ele aparecer quando a pétala desabrochar. Mas Antoine Doinel joga as flores no lixo perto de casa. Mas o garoto que mora perto deles as vê no lixo, lê o nome do remetente, e as entrega na casa de Antoine para Christine. E o safado do Antoine Doinel continua saindo com a japonesa. Para o azar dele, as flores que a Kyoko deu finalmente desabrocham, revelando os recados secretos dela para Antoine. Quando chega em casa, a mulher dele o recebe vestida toda com trajes, maquiagem e roupas de japonesa, denunciando que ela já sabia de tudo. Após esses acontecimentos, eles passam a dormir em quartos separados. Quando a família de Christine vai visitá-los, eles tentam fingir que está tudo bem. Paralelo a isso, Antoine continua trabalhando no seu livro, uma biografia. E as coisas entre ele e a mulher vão de mal a pior, como ela não quer mais nada com ele, decide ir morar de vez em um hotel. E continua saindo com a nipônica pivô da separação.

 

Com uma amiga do trabalho, Antoine reflete sobre o que mais gostava em Christine, sua educação anglo-saxônica e seus modos reservados, mas que passaram a irritá-lo com o tempo. Além disso, ele diz que ela parecia uma criança brincando que era adulta. Christina para Silvana, sua vizinha, igualmente diz o que mais gostava em Antoine. Apesar disso, os dois saem juntos uma última vez. Quando Antoine fala para sua mulher sobre seu livro, há uma clara alusão à briga de Jean-Luc Godard com Truffaut na época: porque ela diz que uma obra de arte não deve ser um acerto de contas. Que não gosta dessa coisa de ficar falando mal do seu país. Ao se despedirem, há a célebre frase que Antoine diz que ela é um doce: 'você é minha irmã, minha filha, minha mãe' e ela responde que gostaria de ter sido também sua mulher.

 

Depois disso, Antoine Doinel vai procurar as mulheres de vida fácil, e no caminho de volta encontra o pai de Christiane. No outro dia, ele vai jantar com Kyoko mas já não aguenta mais, ele fica ligando toda hora para Christine, dizendo que sua acompanhante espera que seja seu papel exclusivo que ele a divirta. Ele sai para ligar tantas vezes para Christine, que a Kyoko vai embora deixando um recado 'vai se ferrar'. O filme avança um ano e mostra Antoine esperando Christine para sair, igual o vizinho deles do lado da casa faziam: então Silvana diz para o marido: agora assim eles se amam.

 

Embora o filme seja do período que abarca a Nouvelle Vague, ele não tem propriamente as características desse movimento. É um filme mais clássico. É uma ótima comédia romântica mais sofisticada para quem tem preconceito com o gênero começar a assistir. Eu me identifico com o personagem Antoine Doinel. Eu brinco que minha personalidade é uma mistura dele e do personagem Hans Castorp, da 'Montanha Mágica'. Mas eu não sei se a comparação é verdadeira. Fato é que 'Domicílio Conjugal' é um excelente filme, que trata de um assunto delicado como a infelicidade, mas de maneira leve e divertida. Por isso merece ser eternizado.

 

Dave Le Dave II
Enviado por Dave Le Dave II em 19/01/2024
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