Green Book: O Guia - Quando o Oscar Acerta!
Eu queria ser capaz de escrever uma crônica tão boa quanto esse filme. Eu não costumo concordar com o Oscar: mas esse filme ganhou nas categorias de melhor roteiro original, melhor filme e melhor ator coadjuvante, e foi com merecimento. Apesar de achar que o personagem de Mahershala Ali era um dos principais, e deveria concorrer entre os atores protagonistas, não coadjuvantes. Será que a premiação é racista? Creio que não, foi uma alternativa para premiá-lo porque esse ano ganhou o cara que fez o Freddie Mercury em Bohemian Rhapsody, aí fica difícil de concorrer.
"Green Book" conta a história de um pianista negro, Dr. Don Shirley, talentosíssimo, prodigioso, finíssimo, sofisticado, educado, genial, de boa aparência, e com muitos outros predicados, mas sem lá muita consciência de classe (ou melhor, racial), apesar de no começo do filme ele aparecer com trajes africanos, mas acho que era só estético. E aqui é impossível eu não me identificar com ele, embora ao lado dele eu pareça um albino; eu também não tenho muita consciência de classe. Meus amigos, preconceituosamente, falam que eu faço coisas de branco. Mas eu sou um pouco como Dr. Shirley, alheio às questões raciais, embora em determinado momento eu já deva ter sofrido preconceito. Mas eu sou moreninho, no Brasil. Dr. Shirley é negro nos EUA da década de 60, que é quase equivalente a ser judeu na Alemanha na década de 40.
A verdade é que Dr. Shirley procura um motorista para dirigir durante a sua turnê nos EUA, e ele acaba contratando Tony Lip, que é o estereótipo do italiano carcamano, malandrão, que com uma oportunidade poderia ter sido da máfia italiana. Ele não poderia contrastar mais com seu patrão negro. E é aqui que o filme cria um alívio cômico muito agradável. Um personagem é a antítese do outro. Um é extremamente sofisticado, o outro um caipira. E a troca que um tem com o outro é muito bonita. Um aprende com o outro, um absorve as experiências do outro. E a atuação dos dois atores contribui muito para essa sinergia. A cena em que Tony Lip ensina Dr. Shirley a comer frango é impagável. O filme acerta também em abordar as questões sociais. As diferenças e alheamento de Dr. Shirley com seus irmãos negros, que ficou explicitado na cena em que ele, trajado elegantemente, espera que seu chofer troque o pneu, e enquanto isso o filme mostra negros trabalhando na lavoura.
Chama a atenção também que o círculo luxuoso pelo qual Dr. Shirley anda é composto exclusivamente por brancos, exceto os negros que são serviçais. Outra cena marcante que demonstra a tensão racial é quando Dr. Shirley precisa usar o banheiro na casa luxuosa na qual ele tocou e foi a principal atração, e indicam para ele uma espécie de banheiro químico, que é o exclusivo para negros. E, quando ele diz que prefere ir no hotel, que demora cerca de 20 minutos de onde ele tem que continuar o show, só falam para ele que vão esperar, tudo para que o negro não use o toalete dos brancos.
O próprio título do filme, "Green Book", refere-se a um guia onde os negros da década de 60 podem se hospedar, em sua maioria, grandes espeluncas. Mas o filme enfatiza que sair por essa turnê foi escolha dele, e por isso ele se submete a tudo isso, como se fosse uma atração do circo dos brancos. Outro momento cômico foi quando Tony Lip vê um manequim branco e diz que é muito parecido com Dr. Shirley. E o pior que é mesmo. Pela postura, é difícil de dizer. Mas, ao provar o terno, ele é impedido, por ser negro! Isso me faz refletir, será que é porque ele não age como negro? Ora, mas isso é muito preconceituoso, porque pressupõe que o fato da pessoa ser negra define o seu agir, que todos os negros são um só, como raça.
Além das questões raciais, o roteiro acerta em mostrar as contradições de Dr. Shirley, seus vícios, o fato de ser alcoólatra. Por que o homem tão talentoso se torna alcoólatra, eu me pergunto. Será a solidão? O filme mostra momentos que os outros estavam confraternizando com lindas mulheres, e ele estava isolado se acabando no vício. O que leva o ser humano a tomar essa escolha? Eu ainda estou tentando entender por conta própria.
É por suscitar todas essas perguntas, é que gostei tanto desse filme. E digo que ele foi o melhor filme que já vi no Amazon Prime até hoje. Por que demorei tanto? Além do mais, é encantador quando Dr. Shirley começa a ditar as cartas para Tony Lip escrever para sua mulher, e a leitura dessas cartas passa a ser um evento da família, onde as mulheres admiram a bela escrita e os sentimentos contidos nas epístolas. E uma delas até deseja que seu marido escreva cartas também. Isso deixa meu coração quentinho, por que quem sabe a pessoa que amo também me admire pelas coisas que eu escrevo para ela. E eu estou escrevendo bem mais, né? É que percebi que escrever me faz muito bem, ainda mais com a possibilidade de ter quem tanto amo como audiência.
Espero ser capaz de escrever coisas tão bonitas como Dr. Shirley, porque quem amo com certeza é merecedora dessas palavras. E será que um dia isso serei valorizado por ela igual Tony Lip foi pela sua mulher?