O Homem e a Aranha

(Gabriel Resgala)

Aluguei ontem aquele filme, "Homem-Aranha 2". Deu na telha, fui lá e aluguei. Aquela história sempre me intrigou, tem algo ali que sempre me chamou a atenção... O conflito de um jovem que tem de decidir entre salvar o mundo ou ter uma vida normal. Entre gozar dos seus poderes ou simplesmente curtir a vida.

Mas ontem, ao rever o filme e desvendar todos os inúmeros making-offs e extras do DVD, percebi algo mais. Percebi que aquilo não era só comigo. O Homem-aranha é uma saga universal, que reflete conflitos inerentes ao ser humano. E nós temos muito a nos identificar com o pobre Peter Packer...

Vejamos!

Peter é um cara nerd, esquisito, desengonçado, que sonha com um amor impossível com a vizinha. Ignorado por todos, motivo de chacota para os poucos que percebem que ele existe, em meio à típica escola americana em que não há lugar para os diferentes que não se adaptam, os "loosers".

Um dia, porém, ele é picado por uma aranha mutante, que lhe dá poderes magníficos: um sentido especial, propiciando uma nova maneira de ver o mundo; uma força descomunal para enfrentar as dificuldades; e a capacidade de construir uma teia fortíssima, para uso acordo com sua criatividade: de voar entre prédios a segurar um helicóptero em pleno ar. A princípio, quando descobre esses poderes, ele pensa em usá-los para resolver seus problemas: não ser mais motivo de chacota, ganhar dinheiro, comprar um carro, sair com sua garota. Mas descobre que o mundo não é tão simples assim...

Tenta usar seus poderes pra ganhar dinheiro, mas não recebe o pagamento que merecia, por pura malandragem de quem prometera. Se revolta, mas não pode fazer nada no momento. Subitamente, porém, o tratante que lhe enganara é assaltado, e nosso herói tem, por um segundo, a possibilidade de tentar segurar o ladrão, ou simplesmente não fazer nada. Num ímpeto de vingança contra o malandro que lhe passara a perna, ele opta por não fazer nada. Sente-se, então, com 100 anos de perdão...

É o sentimento que assola a todos, hoje em dia. A impressão de que ninguém olha por nós, só há malandros neste mundo. Quem devia nos proteger só quer saber de nos roubar, se aproveitar da nossa impossibilidade de agir, explorar dos mais fracos. Nos vemos de mãos atadas, sem poder fazer algo pela nossa própria liberdade, e por vezes da liberdade dos outros. E, quando temos nas mãos algum segundo de poder, não queremos perder a oportunidade de nos saciar, de pelo menos uma vez não passamos como bobos. "Se não podemos mudar tudo, pelo menos nós é que não iremos sair sofrendo", é o que pensamos... Afinal, "a vingança também é um modo de fazer justiça: 'Olho por olho, dente por dente', dizia uma lei. Se o outro não se importa comigo, tenho que fazê-lo reconhecer que isso é errado. É questão de justiça ele pagar o que deve, de um jeito ou de outro"...

Mas Peter, mais uma vez, descobre que as coisas são bem mais complicadas. Ao não fazer nada, ele deixou de combater o mal. Deixou livre um criminoso que, horas depois, assassinou seu tio Ben, que para Peter era um pai, ainda que em momentos de impulsividade ele não reconhecesse isso. O tio morreu simplesmente por não ceder ao mal, não aceitava dar seu carro ao ladrão. Como reconheceu Peter ao relembrar desse fato, anos depois: "Meu tio morreu porque foi a única pessoa que fez a coisa certa, naquele dia".

Naquele dia Peter entendeu que seu tio fora, na sua vida, mais que alguém que representou o papel de pai. Foi um anjo que lhe ensinara a sua primeira grande lição: "A grandes poderes correspondem grandes responsabilidades".

E começa a encarar a vida de herói, dedicando-se a lutar por causas realmente importantes, a salvar vidas. Não tem nenhuma recompensa; pelo contrário, a imprensa taxa o herói de vilão em nome do espetáculo; o Homem-Aranha ganha o ódio de seu melhor amigo Harry (inconformado com o fato de ele ter matado seu pai, que Harry não sabia ser um vilão), e Peter tem que abrir mão da paixão por Mary Jane, para a própria segurança da garota. E tudo isso sem contar a solidão de não poder revelar a ninguém quem ele verdadeiramente é; uns conhecem o Homem-Aranha, outros o Peter Packer, que continua sendo o "sonso" de sempre, o azarado que tem de vender a imagem de seu próprio alter-ego para um jornalista sem caráter, em troca de um trocado qualquer.

Após algum tempo nessa vida de herói, então, o conflito volta a se revelar. No segundo filme da série, Peter cada vez mais sente na pele todo o peso de ser um herói. As grandes responsabilidades, somadas à sua natural distraibilidade e dificuldade de organização (Peter parece ter traços do que a psiquiatria chama de DDA, "Distúrbio de Défcit de Atenção", que na verdade não seria bem um distúrbio, mas uma forma diferenciada de funcionamento cerebral, caracterizando atenção instável, impulsividade e hiperatividade mental, mas também alta criatividade, energia, inovação e ousadia), fazem com que ele não consiga dar conta das suas responsabilidades cotidianas. E agora já leva uma vida mais adulta, tem que se sustentar, dar conta da faculdade, e resolver sua vida amorosa. Mas ele vive em outra realidade, nem lembra a data de seu aniversário...

É ele mesmo, com seus conflitos psicológicos, que faz seus próprios poderes irem enfraquecendo. A partir do momento em que se questiona sobre a vida que quer ter, sobre quem ele quer ser, a sua crença no super-herói que carrega dentro de si se enfraquece. Não tem mais certeza de quem ele é. A teia começa a falhar, bem na hora em que ele mais precisa. Já não é tão fácil escalar paredes, sua visão vai deixando de ser perfeita.

Ele não sabe quem ele é. Procura ajuda, e o médico tenta ajudar: "será que é mesmo pra você ser um super-herói?" Sempre temos escolha. E onde estão os seus sonhos?...

Estão na casa de um desejo maduro. Talvez Peter não se dê conta, mas os sonhos que têm nesse momento já são outros. Aquilo que ele quer já não é mais o que queria na época que a aranha o picou; naquela época lhe bastava simplesmente não ser mais um "looser", um perdedor, motivo de chacota, queria "somente" ser respeitado por todos, ter um carro pra impressionar. Mas, agora, seus sonhos são mais nobres, mais adultos: quer ser um brilhante cientista (e sabe que tem potencial pra isso), quer poder se dedicar e ajudar sua tia, reconhecendo e retribuindo o apoio que ela sempre lhe deu, e sonha em viver com Mary Jane - agora um grande amor, e não mais somente uma vizinha encantadora...

E de repente ele se sente no direito de querer uma vida só dele, e não mais viver "os sonhos do tio"...

"Sempre que falamos sobre honestidade, lealdade, justiça... Sempre achei que você teria coragem de realizar seus sonhos nesse mundo", diz uma voz em sua cabeça. "Não, tio Ben. Esses são os seus sonhos, e não os meus. Sou apenas Peter Packer. Homem-Aranha, nunca mais", responde.

E volta a usar óculos, a tropeçar, a ter seus defeitos como qualquer ser humano. "Agora eu sangro!", ele comemora. E pode se dedicar aos estudos, ser um aluno brilhante na faculdade. Consegue ser pontual, já pode voltar a tentar reconquistar o amor de Mary Jane, e saborear um hot-dog enquanto a polícia se preocupa com os criminosos.

Mas... até quando ele está sendo ele mesmo?...

Ao passear pela rua, se vê arriscando a vida para salvar uma criança em um incêndio (e sem receber nenhum grande mérito por isso). E cai em si... Não foi a aranha que lhe fez herói, nem tão pouco o tio Ben; foi ele mesmo. "Não tem jeito, ser herói faz parte de mim, está no meu sangue", ele deve ter pensado. E ver que ainda existiam mais vítimas o faz parar para pensar. Para repensar-se...

"Mas... Será que eu não posso ter o que eu quero? O que eu preciso?... O que eu devo fazer??"

É interrompido em seus pensamentos por uma vizinha oferecendo um bolo de chocolate - um pequeno prazer da vida. A garota, mais desengonçada que ele, é uma das personagens secundárias que acreditam nele. Como tantos que, mesmo não sabendo "tudo" o que ele é, têm uma grande confiança nele. E Peter então ouve de sua tia, uma das pessoas a quem ele mais se sentia devedor por não ter uma "vida normal", um desabafo sobre o sumiço do Homem-Aranha, que é quase uma súplica:

"Há poucos indivíduos voando por aí para salvar senhoras como eu. E Deus sabe como as crianças precisam de heróis! Gente corajosa, altruísta, dando exemplo para todos nós. Todos adoram heróis... Acredito que há um herói dentro de todos nós... Que nos mantém íntegros. Que nos dá força. Nos enobrece. E, por fim, nos deixa morrer com dignidade. Mesmo que, às vezes, seja preciso ser firme e desistir daquilo que mais queremos. Até dos nossos sonhos..."

A tia May sabia quem ele era? Talvez nem sabia que sabia. Como revelou Mary Jane, quando ele lhe revelou a verdade: "Acho que eu sempre soube, esse tempo todo, quem você era, de verdade". Quem ama conhece, sabe quem o outro é. Mesmo que não conheça os detalhes, que o outro insiste em manter em segredo, quem ama conhece a essência.

E talvez a grande lição que Peter tenha aprendido aqui é que, se a vida é feita de escolhas, a confiança nos outros é o que faz com que elas sejam menos penosas. Revelando a verdade, uma outra realidade é possível. É através da verdade que é possível viver seu amor com Mary Jane: sabendo quem ele é, ela passa a ter a liberdade de escolher ficar com ele, mesmo com todos os riscos. É através da verdade que ele retira dos ombros da tia a culpa pela morte do tio Ben, revelando-lhe sua culpa no incidente. É através da verdade que ele faz o vilão Dr. Octavius, o símbolo do homem bom que se distancia dos seus ideais pelo excesso de confiança na ciência, voltar a si mesmo, lembrar quem ele era, e corrigir os erros que ele próprio cometera. E talvez, se Peter tivesse contado a verdade ao amigo Harry à tempo, a loucura não o teria consumido a ponto de o desejo de vingança contra o Homem Aranha ser mais forte que a longa amizade por Peter... A mentira de Peter por tanto tempo talvez tenha alimentado a locura no coração de Harry a ponto de a verdade não interessar tanto mais quanto o ódio.

Mas há quem ainda acredite na verdade, apesar de tudo. Para Mary Jane, a verdade foi o alívio que faltava a seu coração. "Não podemos viver a vida pela metade, sendo metade do que somos", diz ela para si e para seu amado. E escolhe a verdade cruel, mas que lhe complete, do que uma mentira que lhe deixaria sempre em falta, o casamento com um rapaz "perfeito". É como escolher a pílula azul de Matrix...

Bem, mas a história ainda não acabou. Mesmo não conhecendo a história dos gibis, posso prever que "Homem-aranha 3" trará novos conflitos a maltratar o pobre jovem nerd. Além da loucura iminente de Harry (a se tornar talvez o maior inimigo do Homem-aranha, justamente por ter sido o maior amigo de Peter Packer), com certeza não será nada fácil a Mary Jane lidar com as conseqüências de abandonar um casamento seguro para viver com um herói de quem até a sociedade é inimiga, às vezes. E Peter ainda está sem dinheiro, é bom lembrarmos! Será que vai continuar se subjulgando ao sistema, tirando fotos de si mesmo para vendê-las ao jornalista patético que só quer saber do lucro que difamar a imagem do Aranha pode lhe dar? Será que vai conseguir ser um motoboy capaz de cumprir os prazos loucos desse mundo corrido? Ou será que enfim vai conseguir usar todo seu potencial e criatividade para descobir uma forma de se sustentar que seja condizente com toda a maturidade e grandeza de espírito que ele agora possui?...

Pois é. Para Peter, o fato de ter se assumido tanto como "Homem" quanto como "aranha", trará com certeza ainda mais dificuldades à sua jovem vida. E, mesmo que ele as resolva ao fim do 3º filme, e mesmo que não haja uma continuação da triologia, com certeza ele não viverá "feliz para sempre". Cada vez os obstáculos serão maiores, e sempre que superar um conflito, outro mais profundo virá...

Mas, a cada batalha, ele terá a oportunidade de descobrir um pouco mais toda a beleza de ser um Homem-aranha. Se sentirá cada vez mais seguro, e mais consciente dos ideais que o levam a ser um herói, sem deixar de ser um homem, um ser-humano com todas as virtudes e defeitos, todas as dores e delícias de ser o que é. A escolher fazer o certo, e descobrir que isso não necessariamente o impede de realizar seus sonhos! E sentir o prazer de voar se apoiando em sua própria teia, de ter uma vista da cidade que ninguém mais pode ter. E, sobretudo, a felicidade inenarrável de ajudar os outros, salvar vidas...

E, se seus poderes não o podem ainda fazer mudar o mundo inteiro, podem ao menos dar esperança a muita gente. Podem fazer velhinhas como sua tia ainda acreditarem em jovens idealistas, podem fazer crianças comer mais verduras, podem fazer com que jovens não prefiram simplesmente fingir que não vêm quando se deparam com um assaltante espancar um inocente, como ele próprio fazia. O Homem-Aranha vem para que ninguém mais se sinta inútil, de mãos atadas, sem poder fazer nada a não ser lutar para defender o seu próprio umbigo, obedecendo apenas ao "instinto de sobrevivência", o único que nos restaria...

Quantas vezes nos esquecemos dos sonhos do "anjo" que há dentro de nós, caracterizado pelos ideais de justiça e honestidade do tio Ben, achando que eles são contrários aos nossos desejos pessoais, aos nossos sonhos de amar, de ter uma vida realizada e sustentável... Na verdade, só quem conseguir ter sua realização pessoal será capaz de realizar o sonho de construir um mundo um pouquinho melhor - e vice-versa. E, conseqüentemente, será mais feliz. Não para sempre, mas para si mesmo...

O homem-aranha nos mostra que sempre podemos escolher. Afinal, cada um tem um herói dentro de nós, como dizia a tia May...

E aí? O que você faz com o seu lado "aranha"?...

(Juiz de Fora, 14.03.07)

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